(Essa é a oitava parte deste conto. Leia as outras aqui: Parte 1, Parte 2, Parte 3, Parte 4, Parte 5, Parte 6 e Parte 7)
Revoadas do Uirapuru – Contos na Paris dos Trópicos
Parte 8: O Chá de Hibisco
Manaus, 14 de outubro de 1900
Amanhecia quando acordei no meio da mata. Não fazia ideia de onde estava. Eu era um senhor de aproximadamente cinquenta anos, calvo com um bigode engraçado e pontudo. Era caucasiano e parecia muito ser o Sr. Maldovan quando ele entrou apressado em sua casa naquele sonho em que era a Srta. Maldovan.
Ele havia caído de seu cavalo que estava mais adiante e percebi que eu tinha relação com sua queda. Mas ainda não quis interferir em suas ações. Ele se levantou e caminhou em direção ao cavalo bastante sujo de terra e com algumas escoriações.
Presumi que estes eram momentos antes do Sr. Maldovan chegar à sua casa e os fatos que ocorrerem agora ajudarão a entender porque ele entrou com tanta pressa naquele dia como se fugisse por um motivo. E sentia que esse motivo estava para acontecer.
O galopar de um cavalo quebrava o silêncio. Notei novamente o mesmo silêncio artificial que já enfrentei outras vezes, mas agora dissipava-se com o som do cavalo que se aproximava. Um homem vinha, e o sr. Maldovan parecia reconhecê-lo.
– Sr. Maldovan! o Sr. está bem? Ví sua queda ao longe! O que aconteceu? Até então o Sr. estava cavalgando sem dificuldades!
– Eu não sei bem o que aconteceu, Roberto. Estava indo em direção à chácara do nosso ex-governador quando senti perder os movimentos do meu corpo… Como se meu corpo desligasse… e quando acordei estava caído. Mas não se preocupe – disse sorrindo – estou bem.
Seguiram então para a chácara que não era muito longe dali. Eu lembrava daquele caminho. já havia passado por lá no caminho para a mansão de Enis.
Pegamos um ramal e seguimos já vendo ao longe a modesta chácara. Era uma casa de alvenaria no meio da mata. Possuía inúmeras e enormes janelas brancas que estavam sempre abertas o que deixava o local extremamente arejado, entretanto eram vias fáceis para entrada e saída, considerando a possibilidade de sumir na mata em seguida.
Tinha grandes árvores ao redor e uma pequena cerca de madeira de meio metro de altura que delimitava sua posse.
Encostamos e amarramos os cavalos. Um dos seguranças me acompanhou até a sala. Haviam quatro outros seguranças um em cada canto, cadeiras de madeira entalhada com animais em alto relevo adornavam e transformavam as cadeiras em algo digno de apreciação. Cinco delas formavam um circulo junto à cadeira de Eduardo Ribeiro, que estava de frente para a porta do outro extremo do cômodo, onde o mesmo se encontrava virado de lado para mim, olhando pela janela alheio à minha chegada.
Não haviam quadros, pinturas ou qualquer obra de arte. Além das cadeiras, alguns vasos de trinta centímetros de altura em cima de mesinhas e um espelho oval na parede em cima de um dos vasos que estava na parede direita de quem entra.
O segurança que me acompanhava me indicou um dos assentos e curiosamente, percebi que começava a acessar a mente do Sr. Maldovan. Meus poderes deveriam estar melhorando. Pois começava a sentir o que ele sentia, e lia seus pensamentos e emoções.
O Sr. Maldovan estava ansioso. Ele sempre foi da oposição de Eduardo Ribeiro, embora admirasse suas conquistas sempre foi contra ele e seu governo desde quando ouviu o nome do ex-governador pela primeira vez.
E estava extremamente preocupado por ser convocado em sua chácara. Apesar de não aparentar ameaça alguma visto que perdera todos os seus aliados, estranhara e motivado pela extrema curiosidade a convocação tão repentina.
Sentei e logo em seguida chegou a Sra. Lorraine Esmé, a dona da maior “Casa de Lazer” de Manaus. Uma mulher de traços europeus, alta, mas não era magra como a maioria das arianas de sua idade… Tinha curvas estonteantes que faziam qualquer homem se desconcentrar de qualquer coisa que estivesse fazendo.
Seus longos cabelos castanhos e ondulados cobriam sempre parte do seu rosto que era bastante afilado e adornado com algumas sardas embaixo de seus grandes e penetrantes olhos azuis.
Detinha um porte admirável e uma presença incrível. Era impossível não notá-la. Sempre com os melhores vestidos e os mais inebriantes perfumes.
Sua presença desconcentrou Eduardo Ribeiro que mesmo continuando a olhar para o exterior da janela ao sentir a presença da Sra. Esmé apertou um pouco os olhos sem sair de sua posição.
Entretanto a mesma permanecia em silêncio. Olhou para mim e cumprimentou com uma suave inclinação de sua cabeça seguida de um sorriso acolhedor. Havia um segredo nesse sorriso.
O Sr. Maldovan e a Sra. Esmé tinham segredos que agora eu acessava. Além de um affair, compartilhavam mercadorias proibidas. Que variavam desde partes de animais dissecadas a drogas como anfetamina, ópio, mescalina e a mais recente heroína.
Já tinha passado quase uma hora desde que a Sra. Esmé havia chegado e ninguém mais apareceu. As outras três cadeiras permaneciam vazias. Nesse momento a Sra. Esmé tirou da bolsa uma embalagem de alumínio, abriu e cheirou um pouco de rapé. Espirrou em seguida. Parecia extremamente entediada.
Esperamos mais alguns minutos quando vi um pássaro uirapuru pousar no dedo de Eduardo Ribeiro onde o mesmo levantou o braço levando o pássaro para o mais próximo possível de seu rosto.
Eduardo Ribeiro estava extremamente concentrado. Seus olhos permaneciam vidrados no pássaro. Como uma espécie de transe. Que terminou quando ele disse: eu entendo, e aceito meu destino.
Tanto o Sr. Maldovan quanto a Sra. Esmé olharam sem entender. O pássaro voou de volta para a mata sumindo em meio a selva. Eduardo Ribeiro deu um longo suspiro e então se voltou para nós pela primeira vez.
– Tão poucos vieram… – O Ex-Governador disse enquanto olhava para nós dois.
– Sim, mesmo que sejamos seus inimigos políticos sua falta de hospitalidade é assustadora e essa demora é totalmente inexplicável! – bravejou assim a Sra. Esmé ao se levantar.
– Não se engane se lhe estou fazendo algum favor! A Sra. veio porque quis, diferente de meus outros três convidados. Mesmo que a extrema curiosidade seja a sua única motivação para estar aqui, a Sra. é livre para sair no momento que quiser. São meus convidados e mesmo sendo negro e não tendo mais poder ou influência alguma, ainda sou digno de tal espera. Não se esqueça de quem eu sou e o que eu SEI. – replicou o Ex-governador com mais classe que a Sra. Esmé.
– E para quê tantos seguranças? Se esse é um convite, não parece nada amistoso! – retrucou a Sra. Esmé irritada.
– Se isso a faz melhor… – Respondeu Eduardo Ribeiro ordenando que seus seguranças saíssem.
Ela se calou e sentou-se novamente inalando mais uma vez um pouco de rapé e abanando nervosamente seu leque.
– Pois bem – continuou Eduardo Ribeiro – os chamei aqui pois tenho um grande anúncio a fazer. Algo que… sim! Já ia esquecendo! Não servi nenhuma bebida a vocês!
Ele então chamou um criado que trouxe em seguida os chás, como se já aguardasse o pedido de seu patrão. O rapaz nos serviu um chá de menta e um de hibisco para o nosso anfitrião e saiu da sala retornando para a cozinha.
Todos beberam seus chás e Eduardo Ribeiro ia começar seu discurso quando começou a engasgar e caiu no chão enquanto se debatia tentando respirar.
O chá havia sido envenenado! Os dois se entreolharam percebendo que isso provavelmente os incriminaria e ambos estavam em choque sem saber o que fazer quando um zumbido vindo pela janela em direção à Sra. Esmé mostrou ser um dardo que espetou seu pescoço.
Em poucos segundos aconteceu o mesmo com o Sr. Maldovan. Em instantes ambos estavam no chão paralisados. O Sr. Maldovan caiu olhando para o Ex-governador que já estava inconsciente. Eu não conseguia controlar o Sr. Maldovan. Não era capaz de quebrar a sua paralisia. Eu estava preso novamente.
Comecei a ouvir passos que vinham em direção da sala. Um homem com longas botas pretas entrava no meu campo de visão. Ele se inclinou e sentou Eduardo Ribeiro no chão. Tirou sua roupa. Revelando um pijama que havia por baixo. Amarrou uma corda em seu pescoço e a prendeu no punho de uma rede que havia em cima dele, preso à parede.
O homem se virou rapidamente para nós dois para confirmar a paralisia e era Enis com sua máscara que já se tornara sua marca. Não olhou para mim tão perto e assim não conseguiu me reconhecer, ele se voltou para o ex-governador e começou a puxar a corda em seu pescoço enforcando-o.
– Para você ser meu hospedeiro, meu caro “Pensador” você precisa chegar bem próximo à morte. – Disse Enis enquanto puxava cada vez mais a corda.
A dor fez Eduardo Ribeiro recobrar a consciência que o fez engasgar e lutar para soltar a corda sem sucesso.
Enis então começou a proferir palavras em tupi antigo que eu mal poderia reconhecer mas sabia a língua que era.
Ao ouvir as palavras, o ex-governador começou a rir e a gargalhar olhando fixamente nos olhos de Enis. Juntou o máximo de esforço e disse compassadamente:
– Você não vai conseguir. Já havia me preparado para isso. Desde ontem à noite, quando nos encontramos… sabia que viria até mim…
Enis gritou de raiva e puxou mais ainda a corda. Mas sem a menor explicação, o Sr. Maldovan saiu do estado de paralisia. Era hora de agir. Eu precisava interferir. Precisava salvar o Sr. Maldovan. Era preciso haver uma testemunha. Precisava fugir.
Tomei o controle do Sr. Maldovan e aproveitando-se da distração de Enis me movi lentamente para fora da sala. Ao chegar lá fora ví que os seguranças e Roberto estavam desacordados e pareciam dormir.
Eu precisava fugir: ser a testemunha desse crime era a única coisa que poderia fazer para incriminar Enis e salvar Helena. Peguei o meu cavalo e corri o mais rápido que pude.
Ao sair do portão principal da chácara olhei para trás e vi Enis olhando para mim da porta de entrada. O ignorei e me concentrei em cavalgar o mais rápido possível.
Após alguns metros, ouvi barulhos atrás de mim: dois homens em seus cavalos me seguiam. Tinham a mesma veste dos capatazes de Enis e se aproximavam cada vez mais.
Seus cavalos pareciam ser mais fortes e mais velozes e logo me alcançariam. Eu precisava fazer alguma coisa e não podia sair do Sr. Maldovan e deixá-lo à própria sorte. Ele seria facilmente capturado. Eu precisava fazer algo agora e não podia usar o corpo do Sr. Maldovan. Afinal era um senhor de idade e sabia que meu tempo era curto…
Eles estavam quase conseguindo me alcançar…. eu precisava fazer algo urgentemente.