(Essa é a segunda parte deste conto. Caso não tenha lido a primeira parte clique aqui.)

Revoadas do Uirapuru – Contos na Paris dos Trópicos

Parte 2: Anis

Manaus, 15 de outubro de 1900.

Estava divagando sobre coisas que agora mal poderia lembrar quando fui interrompida pelo canto de um pássaro que acabara de pousar em minha varanda. Era um pássaro pequeno, muito parecido com um rouxinol. Tinha asas negras e sua cabeça e dorso possuíam uma variante de cores entre laranja e amarelo. Seu canto possuía notas que alternavam constantemente. Impossível não notar algo tão suave e ao mesmo tempo tão chamativo.

Ao redor de seus olhos, círculos brancos davam ainda mais expressão ao seu olhar que me fitava incisivamente. Comecei a me aproximar lenta e gradativamente. Ele cessou seu canto. Cada vez mais notava seus olhos ainda mais estáticos, como vidros circulares que escondiam um negro infinito em sua pupila. Parecia querer me dizer… algo.

– Mas vejam só! Um Uirapuru, filha! – Minha mãe nos assustou com sua voz estridente fazendo com que ele fugisse para longe na mata. – Você não lembra das histórias que ouvíamos quando visitávamos a madame Van der Helst? Ela é fascinada pela fauna local. Assim como pelas lendas e histórias dessa terra. Sua companhia chegava a ser entediante por falar apenas desses assuntos a noite inteeeeeeira! – Ela insistia em falar e, como sempre, era tão egoísta a ponto de permanecer completamente alheia às consequências de seus atos.

Minha mãe era aquela tradicional aristocrata europeia. Preocupada mais com a aparência e a repercussão de sua imagem na sociedade do que com qualquer outra coisa. Tinha a beleza impecável dos mais puros descendentes de Ingleses aqui instalados. Seus olhos azuis que mais me lembravam ódio e repreensão. Seus longos cabelos loiros ondulados, para com os quais ela detinha mais carinho e orgulho que para com sua prole.

– Senhora Maldovan! – Respirei fundo em profunda decepção. – Se não há mais nada a tratar, gostaria de… – Fui interrompida pelo barulho estrondoso de madeira estalando, da porta principal da casa sendo aberta violentamente. Corremos em direção às escadas para tentar entender o que estava acontecendo.

Ao chegarmos à entrada, meu pai, esbaforido, suado, gritava por nós a plenos pulmões enquanto caminhava a passos rápidos em direção à sala de estudos.

Meu pai era descendente de holandeses e cearenses. Tinha traços europeus, mas o porte dos índios guerreiros, como costumávamos brincar. Aparentava seus 50 anos, calvo e com um bigode engraçado e pontudo. Dizia que era o bigode, que deixava a aparência amistosa, que garantiu seu sucesso por aqui. Era um dos homens mais influentes da cidade e em todos os 16 anos da minha vida, era a primeira vez que o vira em desespero como hoje.

– Peguem o que puderem carregar de mais importante e vão para a carruagem que as aguardam em frente à nossa casa e me encontrem em nosso sítio o quanto antes.

Sem pensar duas vezes fui para meu quarto, peguei minha caixa de jóias e corri da maneira que permitisse a meu longo vestido italiano sujar o mínimo possível. Havia acabado de chegar de sua lavagem em Paris e, pelo visto, eu iria passar bastante tempo com aquele único vestido.

Já minha mãe decidiu fazer o que toda mulher em sua posição egoísta e frívola faria: reclamar com meu pai sobre sua falta de postura e as coisas sem sentido que ele mencionara.

Desci as escadas e passei direto para a saída. Mas antes pude ver meu pai mexendo embaixo da escrivaninha e gritando com minha mãe algo sobre ele precisar fugir porque iria “cair” assim como Eduardo Ribeiro.

Saí, subi na carruagem e fiquei olhando para a entrada de casa. Não havia mais barulho da discussão entre meus pais. Agora um silêncio totalmente desconcertante tomava o lugar.

O cocheiro desceu, verificou as portas e as rodas e, ao subir novamente para seu posto, olhou pra mim e sorriu. Ele então sentou, tomou as rédeas e iniciou nossa saída sem esperar minha mãe.

Preocupada, bati no vidro tentando chamar sua atenção sem sucesso. Verifiquei as portas e janelas e percebi que estavam trancadas. Eu estava presa. Comecei a gritar desesperadamente. O cocheiro então me olhou por cima dos ombros e puxou uma corda próxima ao banco em que estava sentado, liberando assim uma leve fumaça com um cheiro parecido com anis.

Em poucos segundos percebi que meu corpo relaxara. Não conseguia mais gritar. Encostei involuntariamente minha cabeça na janela, tentando me movimentar de alguma forma. Logo estava paralisada e a única coisa que conseguia fazer era olhar pela janela o movimento de pessoas, cavalos, carroças e charretes nas largas calçadas da Avenida Eduardo Ribeiro.

Antes que pudesse pensar no que fazer, vi uma mulher de cabelos vermelhos correndo em minha direção. Aqueles cabelos vermelhos e ondulados, seu vestido branco e azul… Me traziam uma sensação familiar que agora tomava conta de mim. Atrás dela, dois homens usando roupas iguais ao meu cocheiro a perseguiam impiedosamente. Ela vinha pelo meu lado esquerdo em sentido perpendicular ao da minha carruagem.

Ela então saltou em direção ao cocheiro usando a força de seu corpo para empurrá-lo acrobaticamente para o chão, tomando o controle das rédeas. Não podia acreditar na cena que via e tampouco podia acreditar que ninguém a notara. Com a queda, as pessoas agora notavam o cocheiro no chão. Uma multidão se aglomerava em torno dele e pouco ao pouco me distanciava cada vez mais de tudo aquilo.

A mulher então olhou pra mim, quebrou o vidro da janela atrás dela fazendo com que a fumaça começasse a se dissipar. – Vai ficar tudo bem, Srta. Maldovan! Eu prometo! – disse, sorrindo.

 

Manaus, 01 de novembro de 2015

Acordei tomado por um leve gosto de erva doce em minha boca. Estava em casa. Apesar de ainda estar entorpecido pelo sono e com uma ressaca dilaceradora, estava feliz por sonhar novamente com aquela época. E ainda por cima sonhar novamente com a ruiva misteriosa. Parecia uma sequência do sonho de dias atrás. Como se após ela ter esbarrado no garoto ela tivesse ido em direção à carruagem.

Era realmente muito estranho ter sonhos interligados dessa forma e, mais estranho ainda, sonhar que era uma mulher. Era bom eu guardar isso pra mim mesmo antes que fosse zoado pelos meus amigos e, principalmente, pela Silvia. Ah é, nós havíamos terminado. De novo. Achei que só iria ouvir suas reclamações por horas naquele dia.

Acho que contar que me atrasei porque estava sonhando com uma ruiva sensacional deve ter motivado o tapa na cara. E o término, pela desculpa em ter parado para pegar o pingente na parede do Teatro Amazonas, alegando que é o mesmo pingente que a ruiva derrubou em meu sonho, ter soado como uma das minhas clássicas mentiras.

Desde então olhava todo dia para aquele pingente. Cheguei a mostrar para um amigo meio antropólogo meio arqueólogo metido a Indiana Jones da Barelândia, mas o máximo que ele pôde dizer é que as runas são escritas indígenas. Símbolos de ativação de algum ritual. Algo tão complicado quanto entediante.

É engraçado como os domingos passam rápido… Principalmente os domingos véspera de feriado. Estava retornando após um churrasco na casa de um amigo e deveriam ser por volta das três horas da manhã quando decidi ir pra casa pela rua de baixo. Era uma parte bem deserta do meu conjunto e preferia assim para evitar motoristas bêbados, ladrões ou qualquer surpresa indesejada.

Havia uma pequena praça com brinquedos para criança no fim da minha rua e era por lá que meu caminho me levava. Era uma daquelas praças que ninguém frequentava e estava tão descuidada que algumas lâmpadas de alguns postes estavam queimadas há semanas e, ao passar por essa praça, vi que havia uma criança balançando e rindo sozinha na penumbra.

Parei o carro e resolvi ver o que estava acontecendo. Devia ser bem a Ana, filha de 8 anos da minha vizinha da esquerda. Ela sempre foi uma criança estranha e solitária que costumava ficar na rua até tarde. Mais uma vítima da moderna geração de pais mais preocupados com vidas no Candy Crush do que com seus filhos.

Respirei fundo. Desliguei o carro e fui em sua direção, chamando-a pelo nome. Mas ao me aproximar ela correu para cima daquela casinha com escorregador. Esperei. Como vi que ela não desceria tão cedo e não atendia ao meu chamado. Resolvi subir e, ao me apoiar na escada, a mesma quebrou e meu leve estado alcoólico me impediu de evitar a batida de cabeça com força naa estrutura enferrujada daquele brinquedo e caísse de costas na areia.

Acordei com a Ana me cutucando com um galho de árvore – Até que enfim o senhor acordou! O senhor estava roncando alto! – disse ela, rindo em tom de deboche.

Minha cabeça doía muito e hesitei em levantar de imediato. – Uma pena não ter sonhado com minhas aventuras na Manaus Belle Époque dessa vez – pensei alto, deixando escapar as palavras.

Ela se aproximou. Se inclinou olhando pra mim e, apoiando as mãos nos seus joelhos, disse:

– Ué! E quem te disse que era só um sonho?


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