(Essa é a sexta parte deste conto. Leia as outras aqui: Parte 1, Parte 2, Parte 3, Parte 4 e Parte 5)

Revoadas do Uirapuru – Contos na Paris dos Trópicos

Parte 6: Resgate em Uma Espiral de Folhas Secas

Manaus, 16 de outubro de 1900.

Estava deitado quando recobrei a consciência. Recordei do que acontecera em segundos, como uma avalanche de lembranças que me acertavam em cheio. O torpor havia dissipado e o desespero começava a me tomar.

Assustado, tentei me mover de todas as formas. Estava preso. Ao meu lado, o homem mascarado sentava de frente para mim e ao lado da sua pintura, agora finalizada. Não emitia nenhum som e tampouco se movia. Estávamos apenas nós dois naquela sala e eu não conseguia emitir nenhum som, independente do quanto tentasse.

Era como se ele me analisasse meticulosamente, observando cada movimento meu. Pior: era como se olhasse para dentro de mim e pudesse ver tudo. Meu passado. Desde meus momentos mais felizes até as lembranças mais obscuras e vexatórias que trancafiava dentro de mim a sete chaves.

Ele via e eu sabia. Eu sentia. Era como assistir ao filme da minha vida tendo nós dois como espectadores. Desde meu nascimento até este instante.

Estava completamente exposto. Ele não só via cada acontecimento que vivi, como também ouvia meus pensamentos diante de cada situação que já vivi.

Em alguns minutos ele me conhecia como jamais alguém me conheceu e sabia mais sobre mim do que eu mesmo, uma vez que muito do que aconteceu comigo eu já havia até esquecido.

Estava na mesma sala, voltado para a pintura. Começava a perceber o quão hipnotizante era olhar para aquele quadro.

Como uma pintura viva, a mulher, os animais, o rio… Tudo se movia em câmera lenta. Instante a instante.

Como uma dança, os movimentos coordenados me atraiam, como se me levassem para dentro da pintura.

Podia sentir a água fria relaxando meu corpo enquanto a mulher que se banhava me olhava com ternura, me trazendo alento e conforto. Nunca antes havia me sentido tão relaxado. Estendi a mão e senti a maciez do pêlo dos animais que passavam por mim.

Ouvia o canto dos pássaros fazendo com que meus pensamentos flutuassem, minha mente era como uma extensão do meu próprio ser. Estava completamente absorto nesse relaxamento extremamente contagiante.

Comecei a perceber que a pintura começava a perder a cor. Iniciava uma onda em escalas de cinza que a tomava pouco a pouco. Ao longe, vindo do centro da pintura, uma onça pintada com uma lua minguante em sua fronte caminhava pomposamente em minha direção.

Não havia mais calmaria. Não estava mais absorto. Voltara minha concentração. Seus passos rasgavam a tinta como uma espiral de folhas secas. Até que a pintura começou, pouco a pouco, a se desfazer.

Já não estava na pintura. Já não fazia parte dela. Havia voltado à realidade. O homem então se levantou e disse:

– Excelente! Helena está aqui! Você deve ser realmente importante para ela, Liam! Não imaginava que ela viria ao seu resgate assim tão rápido! Você é realmente o preferido dela! Entretanto, ela ainda não sabe… Mas DESSA vez ela não escapará! – o homem mascarado parecia feliz e extremamente empolgado.

Ele foi até a porta com pressa e falou algo com um capataz que esperava frente à porta, que seguiu para as escadas. Eu continuava imóvel. Havia perdido realmente o controle do capataz e só podia olhar.

Ele então veio em minha direção e segurou o rosto de meu hospedeiro.

– Vamos trocar? Cuidado com meu corpo, viu? Ele já está bem gasto! – ele disse rindo enquanto olhava no fundo dos meus olhos. Em seguida me vi pelos olhos do homem mascarado.

Sentia a fragilidade do corpo do homem mascarado, embora não conseguisse falar, conseguia me movimentar normalmente. Sentia um ardor no rosto como se fosse uma ferida sob a pele de toda a sua face. Após a troca, o homem que agora habitava o capataz apenas sorria para mim.

Sem pensar duas vezes, tentei voltar a 2015. Mas não consegui. Já imaginava que ele tomaria esse tipo de cuidado. E assim, percebi que minha única opção era fugir. Não sabia quem ele era e nem do que ele seria capaz. E não ficaria ali para descobrir.

Ele provavelmente imaginava que eu ficaria em choque e confuso pela “troca” e não que eu correria para longe dali, estragando assim seu plano.

Corri da maneira que pude. Refiz o caminho de volta para a saída. Peguei um cavalo e fui para o mais longe possível. Tentava a todo o custo falar, gritar… gerar algum tipo de som pela boca, mas não conseguia.

Não havia nenhum empregado ou capataz no caminho, e eu não queria me certificar realmente disso. Precisava ir para longe, me esconder e assim tentar encontrar a Ruiva (ou Helena, se esse for mesmo o nome dela) para assim entender como sair do corpo do homem mascarado e voltar para 2015.

Estava começando a escurecer quando peguei a estrada em direção ao centro de Manaus. Tentaria voltar à casa dos Maldovan numa forma de descobrir onde ficava o sitio deles. Sabia que a Srta. Maldovan estaria lá, assim como Helena. E que ela saberia o que fazer.

Não me distanciei mais que dois quilômetros quando senti que estava sendo seguido. Algo corria pela mata e vinha em investida na minha direção. Tudo foi muito rápido. Percebi que era uma onça pintada quando ela subiu em um pequeno morro à beira da estrada antes de saltar na minha direção.

Caí do cavalo com o peso da onça em cima de mim. A máscara caiu, se quebrando ao tocar o chão. Senti algumas costelas trincarem e minhas costas machucarem-se bem ao cair. A onça continuava a me atacar incessantemente.

– Fale, Enis! Onde está Liam? Fale logo! Senão não sobrará nada desse seu corpo! Ambos sabemos o quão difícil é para você vagar na sua situação atual. – Disse a voz da Helena em minha mente.

Tentei me comunicar, mas não consegui. Não sabia o que esse tal de Enis havia bloqueado em mim para que cortasse qualquer forma de comunicação. Mas tentava, falava, gritava. Fazia de tudo. Enquanto tentava me comunicar com Helena, ela me atacava e despedaçava o corpo de Enis com fúria e gritando à procura do meu paradeiro.

Percebi também que ela não conseguia me ver através do corpo de Enis. Ele havia feito algo com esse corpo que impedisse Helena de ver quem o estava ocupando. E como ela sabia que era ocupado por Enis, não imaginou que eu poderia estar lá.

Eu sentia a dor de cada mordida. Era desesperador, uma dor incrível e dilacerante. Sentia que logo o corpo morreria e comecei a temer o que aconteceria se o corpo que eu habitava morresse enquanto eu estivesse preso dentro dele. E, honestamente, duvidava que não morreria junto.

Eu precisava fazer algo urgente e percebi que naquela situação só podia fazer uma coisa: Com o pouco movimento que ainda tinha, estendi minha mão na areia da estrada e escrevi com o dedo indicador “Ana”, o nome da filha da minha vizinha, a qual Helena usou para falar comigo na primeira vez em 2015.

Helena percebeu meu gesto com a mão e parou de me atacar. Enis não sabia quem era Ana, apenas eu e Helena. Então ela olhou para mim e pude ouvi-la falar meu nome com ternura. Ela estendeu a pata direita sobre meus olhos e disse algumas palavras que presumi serem em tupi antigo.

Ela respirou fundo e olhou pra mim, dizendo que havia me libertado de todos os bloqueios e que eu poderia voltar para 2015.

Mas antes que eu pudesse agradecer ouvi o barulho de um tiro. Em seguida, a onça caiu no chão ao meu lado. Com a pouca força que ainda me restava, virei-me para ver de onde veio o tiro e vi Enis no corpo do capataz com a espingarda ainda apontada pra nossa direção. Ele então começou a recarregar a arma para o segundo tiro e eu tive certeza que esse era para mim.

Sem poder me mover mais, encostei a cabeça no chão de frente para Helena. Ela havia recebido um tiro na cabeça e tinha apenas alguns segundos de vida. Ao olhar nos seus olhos, pude vê-la pela primeira vez. E ela era exatamente como a mulher na pintura.

Ambos íamos morrer em segundos, eu sentia isso. Sem pensar, olhei profundamente nos olhos da onça pintada e sentia como se pudesse alcançar Helena. Fiz todo o esforço que pude e quando finalmente senti que ela estava ao meu alcance ouvi o estalar da espingarda engatilhando.

Nesse momento sabia que tinha poucos segundos de vida. Abracei Helena forte e gritei as palavras de ativação com o resto de forças que detinha:

gûyrá nhe’eng gûatá Îy


Para ler a parte 7: clique aqui