(Essa é a quarta parte deste conto. Leia as outras aqui: Parte 1, Parte 2 e Parte 3 )

Revoadas do Uirapuru – Contos na Paris dos Trópicos

Parte 4: Ressonâncias do Tempo

Manaus, 02 de novembro de 2015

Acordei imerso em uma exaustão dilaceradora. Era uma mistura de duas horas de crossfit com uma daquelas ressacas cavalares de réveillon em que você acha que perdeu as pernas em algum lugar. Sentia aquela dormência que você sente quando dorme em cima do braço, porém aplicada ao corpo todo. O formigamento generalizado ia devolvendo a sensibilidade gradativamente e começava e concluir minhas linhas de raciocínio.

Imagino que tudo isso seja consequência do controle corporal do… meu deus! O rapaz! O que será que aconteceu? Obviamente deve ter sido preso injustamente. Mas quem era ele? Devia ter ido para a frente de alguma vitrine para ao menos ter visto seu rosto… não acredito que ajudaria muito mas ao menos poderia reconhecê-lo em outros dias…

Mas o que estou falando?! Eu posso voltar ao mesmo dia e consertar isso! Eu tenho todo o tempo do mundo! Tenho todas as chances! E eu só preciso de uma para fazer dar certo dessa vez!

Sentia que havia dormido com a roupa do dia anterior. Preciso lembrar nas próximas vezes de colocar pelo menos uma roupa mais leve que minha calça jeans. E aos poucos começava a enxergar com mais clareza e nitidez.

Havia algo errado: o teto estava pintado de azul. Não era a cor creme com teias de aranha nos cantos como sempre foi. Meu quarto estava diferente. A cama era de solteiro, só havia uma janela… aos poucos começava a movimentar a cabeça e ao olhar ao meu redor percebi que o Xbox One não estava lá… a tv… o guarda-roupa… Tudo estava diferente.

Ouvi passos no corredor. Tinha, definitivamente, alguém na minha casa! Moro sozinho desde os 17 anos e a Silvia, única que tinha uma cópia da chave, a jogou na minha cara no dia que terminamos. Podia ser um ladrão! Eu nem sequer sei onde estou. Tenho apenas uma certeza: nada aqui é familiar.

Ao que parecia eu não havia sido notado até o momento. Me esforcei para levantar. Precisava pegar algo para me defender. Embora pudesse ser o dono da casa onde estava, também poderia ser um assaltante. Ou eu poderia ser o intruso! Sei lá! Em todo caso, eu precisava de algo para me defender!

Olhei ao meu redor e ao lado do rack da tv tinha um ukelele. Aquela seria minha arma! A tv era muito pesada e almofadas estavam fora de questão. Peguei o ukelele e fui me aproximando lenta e silenciosamente em direção a porta. Já tinha total controle dos movimentos embora meus reflexos ainda deixassem a desejar.

Abri a porta devagar e vi uma mulher. Aparentava seus cinquenta anos, seu cabelo loiro tinha uma raiz preta tão grande que parecia que ela havia feito californianas denunciando o descuido com a aparência. Estava acima do peso embora roupas de ginastica mostrassem que tentava “correr atrás do prejuízo” a todo custo.

Estava terminando de preparar o almoço, imaginei pelo horário e pela fome que sentia. Ela estava de costas e ao avançar pelo corredor fui me aproximando da cozinha. Era um apartamento muito pequeno, não devia morar muita gente. Passei por uma porta entreaberta que, ao olhar, parecia ser um quarto e em seguida um banheiro.

Ao chegar na cozinha vi que à esquerda havia uma mesa e um homem lia o jornal. Parecia muito família. Tinha o mesmo jeito do meu pai… as mãos… o modo de sentar… o porte físico… e.. seria meu… pai? Na hora abaixei o ukelele.

Me aproximei lentamente quando a loira das californianas acidentais se virou pra mim. Ambos se assustaram. – Liam, meu filho! Venha almoçar! – Ela disse sorrindo.

– Você precisa parar de dormir tanto, meu filho! E arrumar um emprego! – Meu pai reclamou.

Sentei e tomei café com eles. Embora quisesse desesperadamente saber o que estava acontecendo, precisava disfarçar que estava tudo bem. Afinal, começar a fazer qualquer tipo de pergunta sobre quem ela seria e onde eu estava só faria com que achassem que estivesse louco ou drogado o que iria piorar mais ainda as coisas pro meu lado.

 Mas logo meu pai se despediu e saiu apressado, me deixando sozinho com aquela mulher. Talvez ela pudesse dizer algo. Comecei uma conversa sobre o tempo e o que ela iria fazer durante o dia… até que ela parou de enxugar o prato e se voltou para mim apreensiva.

– Você não precisa disfarçar e fingir que está tudo bem! Eu sei que você me odeia, Liam! Eu sei que jamais irei substituir sua mãe! E mesmo que tenha oito anos que ela tenha falecido, eu ainda não me acho no direito de tomar seu lugar e…

Levantei e corri de volta para o quarto batendo a porta. Eu precisava respirar. Eu não podia acreditar que minha mãe havia morrido. Algo estava errado. Algo estava muito errado. Eu precisava respirar. O que será que aconteceu? Será que voltei para outro futuro? Não fazia sentido! Será o fato de ter incriminado acidentalmente aquele rapaz gerou esse karma pra mim?

– Bem… quase isso! – meus pensamentos foram interrompidos por uma voz feminina na minha mente. – aqui na janela! – Insistiu a voz.

Olhei para a janela e tinha um gato preto arranhando o vidro tentando entrar. Abri a janela e sentei. O gato veio em minha direção, subiu em minhas pernas e sentou. Ele me transmitia uma sensação familiar. Sua voz em minha mente era muito parecida com a da ruiva misteriosa.

– Achei que não seria necessário lembrá-lo que tudo que você muda tem consequências! Há oito anos, sua mãe quase sofreu um acidente que lhe tiraria a vida. Entretanto nem ela sabia disso porque um homem morreu no seu lugar. No instante em que ela iria atravessar uma rua, um homem apressado esbarrou nela o que a fez cair na calçada impedindo-a de atravessar. E nesse instante ele foi atropelado por um carro que vinha em alta velocidade. – a voz continuou.

– Aquele rapaz que você acidentalmente incriminou é um ancestral desse homem que salvou sua mãe acidentalmente. E como você o incriminou, ele foi preso e não conheceu a mulher com quem casaria e toda uma linhagem foi perdida e todo o curso da história alterado. – concluindo ainda me encarando com olhos vidrados.

Não poderia dizer que não acreditaria em tudo que ela disse. Já tinha visto isso nos filmes era como se fosse uma mistura de De volta para o Futuro e O Curioso caso de Benjamin Button. Mas agora não era hora para divagar. Precisava consertar tudo isso.

– Deixa comigo! – disse sem hesitar. Estava envolvo em um turbilhão de emoções. Nada fazia sentido. A perda da minha mãe. A conexão com sua morte. Tentava ignorar o fato de que indiretamente a havia matado além de ter incriminado um inocente. E agora estou ouvindo a voz da ruiva em minha cabeça com um gato olhando pra mim. Esperava encontrá-la novamente e tentar saber um pouco mais sobre ela, mas não havia tempo pra nada disso. Precisava salvar a minha mãe.

Deitei, peguei o amuleto e iniciei as quatro palavras de ativação e assim começava a perder a consciência conforme as runas brilhavam. Já tinha decidido, iria voltar e controlar o rapaz de forma que ele não vá para a casa dos Maldovan.  

O gato foi para a janela e antes de sair, virou-se para mim e ouvi uma última frase sua:

– Acredito que não preciso dizer também que é possível vagar por entre animais! Mas agora vá, Liam! Salve sua mãe! Adoro vê-lo assim tão determinado, mocinho! Não é à toa que és o meu Wander preferido!

Manaus, 15 de outubro de 1900

Havia voltado.  Mas não estava dentro da carruagem. Não estava com aquelas roupas caras e tão pouco de cartola. Estava guiando uma carruagem. Eu voltei como cocheiro! Algo tinha dado errado! Era como se não pudesse voltar para a mesma pessoa consecutivamente! E mais uma vez a falta de informações da ruiva me causavam mais problemas.

Rapidamente olhei para dentro da carruagem e tinha um rapaz lá. Não tinha visto seu rosto e as roupas e o bigode poderiam ser de qualquer jovem de família rica da cidade. Mas eu precisava tentar.

Parei a carruagem logo que pude. Puxei as rédeas com firmeza mas sem muita força. Lembrava da época que andava de cavalo na infância. Os cavalos pararam e eu não sabia como prender as rédeas para descer da carruagem sem que os cavalos começassem a seguir em frente. Eu não queria arruinar mais uma vida e muito menos uma que possivelmente interferiria na minha família.

Enquanto analisava como prender as rédeas ouvi um barulho de moedas.  Virei e vi que o rapaz tinha acabado de deixar as moedas do meu lado e seguia a passos largos para uma rua menos movimentada.

Eu olhei ao redor e vi que tinha parado exatamente onde o cocheiro parou na vez passada. Era de frente para o mesmo armazém e a rua era familiar também! Era ele! amarrei as rédeas no eixo que prendiam os cavalos e corri para alcançá-lo.

 Ele parecia estar incrivelmente rápido e não estava conseguindo alcançá-lo. O cocheiro parecia ter seus sessenta anos e os músculos doíam e ameaçavam ceder ao esforço contínuo que aplicava. Eu não iria conseguir alcançá-lo. Então comecei a chamá-lo! “rapaz! Ei! Você aí!” eu gritava mas nenhum som saía da minha boca.

Estávamos próximos da casa dos Maldovan e reconhecia o mesmo silêncio perturbador. Aquele silêncio não era natural. Nenhum barulho podia ser escutado mesmo que gritasse com todas as minhas forças.

Quando consegui chegar à frente da casa dos Maldovan percebi os guardas vindo ao longe. Tinha receio de avisar o rapaz antes dele encontrar as chaves no compartimento secreto na escrivaninha e o livro que poderia dar acesso à passagem secreta e quando retornasse pra o ano de 2015 tudo isso tenha sido apagado da minha memória.

Sim! Eu precisava encontrar aquele molho de chaves enquanto estivesse no corpo do rapaz, eu precisava que tudo acontecesse até o momento dos guardas chegarem. Não poderia interferir senão tudo terá sido em vão.

Só me restava fazer uma coisa: distrair os guardas até que perdesse o controle do rapaz e o rapaz fugisse da cena do crime antes dos guardas o flagrarem. Ele era um garoto rico com muito a perder, ele iria fugir sim. Tenho certeza.

Enquanto pensava em como atrair a atenção dos guardas de forma que não piorasse as coisas pro cocheiro senti uma presença vindo por trás de mim. Me virei e vi os meus cavalos arrastando a carruagem pela rua dos Maldovan passando do meu lado em completo silêncio. Não havia tilintar das rodas batendo nas pedras ou o barulho das ferraduras dos cavalos.

Pelo visto a forma que prendi as rédeas não foram suficiente e isso me deu a ideia perfeita. Peguei as rédeas e parei os cavalos. Os soltei do cabresto disfarçadamente como quem parecia dar carinho a eles e quando estavam soltos dei um tapa na garupa de cada um que começaram a correr desvairadamente. Em seguida corria atrás deles simulando desespero em alcançá-los.

O silêncio cessou em poucos metros. Pensei que o efeito dele não durasse tanto e começasse a se dissipar. Comecei então a gritar pedindo ajuda aos guardas que prontamente decidiram me ajudar.

Eu começava a sentir a perca do controle do cocheiro. Virei-me para a casa dos Maldovan e vi ao longe o rapaz saindo disfarçadamente. Olhei ao redor e não havia ninguém nessa rua além dos guardas totalmente distraídos com os cavalos.

Já não conseguia mais mover os pés. Começava a sentir um leve alívio por tudo ter dado certo. Sabia que em poucos instantes estaria em casa e tudo tinha dado certo. Todos estavam bem com exceção do jovem que deve ter voltado a sí numa sala com uma mulher morta sem entender nada do que estava acontecendo. Entretanto, duvido que isso tenha algum reflexo na linha do tempo.

Já estava pronto para voltar quando comecei a ouvir um barulho vindo em minha direção. Me virei para a rua e vi que um dos cavalos desgovernados vinha ao meu encontro. Eu seria atropelado e duvido que um homem de sessenta anos atropelado por um cavalo sobreviveria com a tecnologia médica dessa época.

Espero de verdade que esse cocheiro não faça falta pro mundo.


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