Vamos voltar para o ano de 1995; uma época sem internet onde a Rede Manchete imperava nos corações de todos nós, nerds, devido aos catálogos de animes famosos exibidos pelo canal, que incluíam Saint Seiya, Yu Yu Hakusho e Sailor Moon; sem contar com os incríveis super sentais como Jaspion, Jiraya e Patrinie.

Nesses tempos onde o mundinho nerd fervilhava mais que panela de pressão, dois nerds manauaras visionários tiveram uma ideia simples e criativa: “vamos criar um fanzine destes personagens”. 

Nascimento de um mito

Estes nerds eram Jucylande Paula e João Vicente, que em 1996 começaram a produzir localmente a então fanzine “Hyper Comix”.

“Inicialmente não possuíamos um objetivo específico; queríamos apenas criar e desenhar histórias de aventura, suspense, comédia ou qualquer coisa que atraísse nosso interesse; tudo inspirado nos quadrinhos e mangás que líamos tanto na época”, contou João Vicente, criador da Hyper Comix.

Apesar deste começo meio incerto, a publicação caiu bem rápido nas graças do público nerd local, principalmente devido a um fator especial: o gênero escolhido. “Com algum tempo de publicação, percebemos que as nossas histórias de comédia começaram a chamar mais atenção que as outras, daí voltamos nosso foco para esse gênero em especial”, explicou João Vicente.

Com o sucesso cada vez maior que a fanzine alcançava em Manaus, os autores dela se sentiram encorajados a tentar subir o nível do trabalho deles.  “Depois que as duas primeiras edições do fanzine ficaram prontas, tiramos várias cópias para divulgação e enviamos para todas as revistas, editoras e fã-clubes mais importantes da época: Revista Wizard, Herói, Abrademi, Orcade e Animax”, lembrou.

Não demorou muito para a resposta aparecer: a dupla teve uma resposta completamente positiva, além de uma oportunidade de produzir uma revista com essa abordagem cômica.

Foto: Capa dos quatro primeiros fanzines Hyper Comix publicados em Manaus (fonte: Pinterest do Clube dos Quadrinheiros de Manaus)

O fanzine vira A revista

O convite partiu da Editora Magnum, situada em São Paulo, que possuía na época em publicação a revista Animax, além de outras publicações voltadas para o gênero de mangás/animes.

A Magnum gostou bastante dos fanzines enviados pela dupla e convidou-os para lançar o fanzine em formato de revista quinzenal em todo o território brasileiro, recebendo contribuições de histórias de outros entusiastas pelo Brasil todo; todas selecionadas e chefiadas pelo editor-chefe, Sergio Peixoto.

A dupla de criadores então trabalharia em Manaus, produzindo e recebendo pelas histórias que enviariam para a Editora Magnum e o Sergio Peixoto trabalharia na própria editora em São Paulo, selecionando histórias vindas dos fãs brasileiros.    

Assim, em 1997 foi lançada a primeira edição da revista Hyper Comix, uma revista repleta de humor escrachado, que não levava nada a sério, seja os animes, seja os criadores, o editor e mesmo até a própria revista em si, ou seja, tinha piada em tudo. 

“Na época da revista, eu criei uma brincadeira e um trocadilho com minhas iniciais João Vicente Cardoso, e a empresa japonesa JVC (Japan Victor Company), criando o JVC ou João Vicente Company”, contou rindo. “Com o tempo essa brincadeira acabou virando meu apelido na vida real”, revelou.

Fotos: Capa da primeira edição da revista Hyper Comix e da primeira história publicadas (fonte da capa: Guia dos Quadrinhos)

Aumentando o grupo

Nem preciso dizer que com tanto humor a revista explodiu de sucesso; não demorando a ganharem mais espaço algumas histórias extras. Foi quando o “Company” convidou outros amigos para contribuírem com a publicação.

Participaram dela diversos ilustradores locais, que na época eram amadores ou em desenvolvimento artístico e atualmente são incrivelmente famosos no meio. Entre os nomes estão o Ademar Vieira, o Daniel Lima, o Crystieê Santos e até o Paulo Teles Yonami, autor da The Midnight Witch.

“Todos esses nomes contribuíram, em maior ou menor escala, para que a Hyper Comix atingisse o sucesso que foi, sendo todos importantes para a história do grupo”, lembrou João Vicente. 

Apesar do grupo ter crescido, ele ainda permanecia com a premissa de quando era só a dupla de autores: “ser um grupo de amigos que se reuniam nos finais de semana para desenhar e trocar quadrinhos e filmes” ou seja, nada de algo muito formal.

A revista vira “uma revista de respeito”

Entre 1997-1998, os autores da Hyper Comix tinham carta branca para a criação de todo o estilo de comédia. E quando eu falo “todo”, era TODO MESMO. Eram comuns histórias com comédias de duplo sentido, de teor erótico e daí para baixo. Normal para uma revista de fãs, mas nem todo mundo curtiu e começaram a mandar cartas reclamando para a editora.

“No início da revista, o editor pediu que o tom fosse o mesmo do fanzine, sem censura ou limites, porém, mais tarde, os donos da Editora Magnum acharam que uma revista com humor e situações adultas não pegava bem para a imagem da empresa, e por isso pediram que eliminássemos as piadas de baixo calão e as cenas eróticas. Foi assim que a partir da edição nº 5, a revista ganhou um humor mais comportado (mas não menos frenético)”, contou João Vicente.

Foto: História vinculada na quinta edição Hyper Comix

Dificuldades para a Hyper Comix

Apesar de ser muito divertido produzir a Hyper Comix, nem tudo foi uma calmaria para a equipe de João Vicente.

“Tivemos vários problemas como prazos apertados, comunicação à distância e o pior de tudo, pagamentos atrasados. Como tínhamos outros empregos na época em que produzíamos a revista, a produção ficava restrita aos finais de semana, e pelo menos uma vez, precisei faltar no trabalho para fechar uma edição no prazo. Além disso, eu gastava muito dinheiro (e tempo) com ligações interurbanas para a editora, tentando negociar datas mais razoáveis e cobrando pagamentos atrasados, o que era muito frustrante”, lembrou o criador da revista.

(Situando na história: Em 1997, a internet no Brasil ainda era novidade, sendo assim BEM cara e lenta)

Analisando o sucesso

Ao todo, a revista Hyper Comix publicou mais de 14 edições e durou cerca de dois anos, alcançando grandes sucessos de tiragens graças ao comercial de boca em boca (em uma época sem internet) e do talento de todos que trabalharam nela, porém para o criador da revista, o sucesso principal da Hyper Comix se deve a época em que ela foi lançada.

“Tivemos histórias publicadas em todas as edições, até porque éramos os criadores dela; além de outros artistas de diversos estados que publicavam histórias curtas a convite do editor, porém acredito que as revistas fizeram sucesso porque surgiram na época de auge dos animes da TV aberta, com animes como Cavaleiros, Yu Yu Hakusho, US Mangá, Dragon Ball e Street Fighter”, analisou João Vicente. “Nunca se viu tantos animes fazendo tanto sucesso entre a garotada; então tivemos a chance de aproveitar esse momento específico para lançar nossos trabalhos”, completou.

E uma nova edição?

O criador da revista acha difícil que a Hyper Comix faça tanto sucesso nesta geração pós-internet quanto no fez no passado, caso voltasse.

“Se houvesse uma nova publicação, não sei se faríamos o mesmo sucesso do passado principalmente porque os animes praticamente sumiram da TV aberta, migrando para a TV paga e os serviços de transmissão online, como o Netflix e o fato de que demanda pelas mídias impressas estão cada vez menores, realidade que já atinge os quadrinhos, que vêm vendendo menos da metade do que vendiam antigamente”, contou João Vicente.

João Vicente contou ainda que se houvesse uma volta da publicação, só seria para ser algo mais saudosista. “Se publicássemos hoje, acho que seria apenas para os fãs de longa data, não para os jovens leitores, consumidores mais de online e menos dos impressos”, concluiu João.

O criador nos anos 2000

Hoje em dia, o autor da Hyper Comix, João Vicente, já é um senhor que além de não ter perdido seu senso de humor, aperfeiçoou ainda mais o seu traço. “Hoje em dia continuo trabalhando com publicidade e dedicando meu tempo livre a produzir material para meus blogs e redes sociais”, disse. 

João Vicente aproveitou para agradecer os fãs da Hyper pelo carinho e as mensagens positivas que recebe até hoje pelo trabalho realizado no tempo da revista. “Foi uma época maravilhosa, apesar das dificuldades, mas a recepção calorosa do público nos deixa orgulhosos de nosso esforço. Um abraço a todos!”, agradecendo a todos.

Para conhecer mais trabalhos de João Vicente, entre no site Deviantart, no Blogspot ou ainda a sátira de humor erótico (+18) de Saint Seiya, Los Caballeros Ridiculos.   

Você pode conhecer ainda trabalhos do também fundador da revista, Jucylande Paula, pela plataforma Deviantart. As obras mais atuais dos colaboradores da publicação estão disponíveis clicando nos nomes deles acima.

Leia a Hyper Comix você também

E se você acha que a Hyper Comix se perdeu pelo tempo, pense de novo. O sugestivo blog O Tolo Fala! reuniu TODAS as publicações lançadas pela extinta Editora Magnum (e até outras publicações da mesma), em uma publicação bem interessante. Porém para pular logo no download das revistas, acesse o link do Mega do blog.

Fotos: Uma das histórias vinculadas na Hyper Comix (e uma das minhas favoritas por ser completamente atemporal)


Para profundar mais

Quem fez acontecer na Hyper Comix

Entre a galeria de pessoas talentosas que fizeram o sucesso da Hyper Comix acontecer está o Ademar Júnior. O ilustrador conheceu a dupla ainda durante a sua adolescência, aos 16 anos, em um evento do Clube de Quadrinheiros de Manaus. “Na época, eu não conhecia ninguém que fizesse HQ em Manaus e tão pouco sabia que existia um Clube de Quadrinheiros, ou ainda um evento deles, tanto que foi um primo mais velho que me levou no evento”, revelou Ademar Júnior.

A paródia e o convite

Durante o evento, Ademar exibiu as suas obras para os ilustradores locais, que tinham opiniões “interessantes” sobre elas. “Eu desenhava ainda de uma forma bem amadora, mas entre esses desenhos tinha uma paródia do filme ‘O Corvo’, que chamou mais a atenção do pessoal. As pessoas que viam essa paródia geralmente riam e me olhavam com uma cara de: ‘esse moleque não pode ser normal’”, contou rindo.

Entre as pessoas que viram os desenhos (e a tal paródia) estava a dupla Jucylande Paula e João Vicente; este último, Ademar conhecia um pouco por ser o criador do Jacarezinho Cri-Cri, que saía no Jornal A Crítica na época.

“Nesta época a Hyper Comix já tinha lançado três volumes e tive a chance de mostrar meus traços para eles, que apesar de acharem toscos os desenhos, gostaram das ideias. Então, trocamos ideias por semanas e acabei integrando a equipe meses depois; começando fazendo alguns roteiros para a revista Hyper Comix”, lembrou.

Foto: um dos primeiros roteiros de Ademar utilizado na revista

Crescendo com a revista

Ademar revelou ainda que na época mal sabia o que era mangá, sendo que dos três que compunham a Hyper Comix naquele momento, o Jucylande era o mais familiarizado a desenhar o estilo.

“O Jucylande havia aprendido a desenhar copiando mangás como Lobo Solitário e Hokuto No Ken; eu ainda estava aprendendo a desenhar naquele estilo (o meu antigo traço era bem cartunesco e simples), quando o Jucylande achou que eu já poderia lançar a “Conexão-X”, que era uma história que eu estava preparando para a revista”, revelou. “Eu achava que ainda estava muito verde, mas não dei para trás com a oportunidade”, contou.

A história foi lançada na Hyper Comix nº 14.

Processo criativo da revista

O ilustrador/roteirista da revista conta ainda que todo mundo que participava do processo criativo das publicações se divertia muito fazendo as paródias dos animes. “Tudo começava com as conversas depois de assistir as séries, em seguida, ia tudo para o papel. Lembro que a gente rabiscava e mostrava um para outro e se o outro risse, a ideia estava aprovada”, revelou Ademar.  

Um sucesso inacreditável

O ilustrador conta que o sucesso das publicações de suas histórias era algo tão incrível que ele chegava até a achar difícil de acreditar que era verdade.

“Parecia inacreditável que aquilo estava acontecendo, porque foi muito rápido. Primeiro eu estava trancado no meu quarto, rabiscando cadernos e meses depois, meu trabalho estava saindo em uma revista de circulação nacional. Demorei para assimilar aquilo, mas como a maioria esmagadora do público se concentrava nos outros estados e não existiam redes sociais para nos aproximar mais do público, nada mudou para mim, a não ser o sentimento de alegria de poder fazer parte de algo tão legal”, revelou.

Um pagamento sentimental

O ex-colaborador da Hyper Comix revelou ainda que durante esse período recebeu o seu primeiro dinheiro por algo autoral feito. “Entre as melhores coisas que aconteceram comigo durante o período da revista foi que eu ganhei minha primeira remuneração na vida realizando uma HQ autoral e isso tem um valor sentimental e simbólico enorme para mim”, disse Ademar. “ Acho que bem pouca gente pode falar o mesmo”, contou.

Ademar em novo patamar

Atualmente, Ademar Júnior não exibe mais sua paródia de “O Corvo” para o público, melhorou bastante na arte da ilustração e está trabalhando profissionalmente como roteirista da empresa de criação de conteúdo, Petit Fabrik. “Estou atuando em uma série animada de 13 episódios para o público infantil, que está em processo de produção, porém antes disso me formei em jornalismo e trabalhei na área por 12 anos, até perceber que nunca deveria ter largado a área da criatividade e do roteiro”, contou.