As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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A vivaz imaginação guerreira de Vatrehuh seguia povoada de imagens sangrentas e gritos de agonia e fúria enquanto as formigas continuavam com seu falar copioso. Até que ele as interrompeu, dizendo:
— Que terrível, minhas amigas! Sempre admirei a tenacidade e força do exército tremar, além da imponência da Cidade de Pedra. Não é a toa que descendem dos orgulhosos Milcah, que ouviram a voz do Uno e saíram da Formetalion antes dela ser derribada! Tanto me impressiono com a história que por um momento quase me esqueci da resposta de Notrum! Mas agora terminem de me contar sobre a guerra, pois dela quero saber!
Elas então continuaram:
— Assim, a Cidade de Pedra resistiu ao cerco oriental até o terceiro dia, quando finalmente os orientais libertaram beseras e Draquons incontroláveis que seguiram da cidadela Tremar sobre o monte Fatsiam próximo dos extremos do Norte, pelo caminho que segue o rio Trufhontis, até os muros de Ziporih. Porém, as bestas detinham tamanha fúria indomável que não obedeciam seus batedores! E muitas se desgarraram e algumas até atacaram as fileiras orientais que estavam encampadas na cidadela e ao longo da estrada sinuosa onde pelotões de mais de mil homens marchavam rumo ao cerco. Foi um duro golpe nas forças orientais, mas algumas feras obedientes desceram o planalto e atravessaram a planície. E duas beseras lançavam pedras contra os exércitos tremares nos adarves leste e norte, tentando escalar a muralha com suas longas unhas semelhantes a cutelos, mas eram rechaçadas com óleo e água fervente que desciam constantemente dos barbacãs.
—Vejam! Nos céus! Malditos sejam! — Sorbam, no topo da torre norte, viu os riscos nos altos do voo ágil dos Draquons que se lançavam ao chão em rasantes, causando grande destruição nos edifícios com suas grandes garras. Houve grande debandar do exército que guardava o interior da cidade, pois os soldados escolhidos para ali estar eram os menos experientes na guerra e assim mui temeram os Draquons, que atacavam e enfurecidos os devoravam vivos!
— Bem conheço a fúria de um Draquon possuído pelo Mal! – Disse Vatrehuh, instrospecto. – Mas… e Notrum? Onde estava o senhor de Ziporih? Até agora não falastes nada a respeito dele. Por ventura estaria refugiado em alguma câmara de prece? “
A resposta das formigas se misturou muito bem ao sentimento zombeteiro expresso na indagação de Vatrehuh.
— Ah, amigo! Então sabes muito bem como Notrum se comporta! Pois ele, por todo esse tempo, esteve no Templo da Ordem em orações e queima de incenso! Enquanto Sorbam descia da muralha com duzentos de seus homens para reunir o exército que debandava e combater a fúria dos Draquons, a pequena corte de Ziporih se escondia no salão central dos cultos. Estavam todos assustados e apreensivos! Descrentes que o Uno ouvisse a voz de Notrum, pois enquanto a cidade padecia as agruras do cerco, ele proferiu palavras enganosas de que o Uno rechaçaria os orientais e que não haveria guerra! Os estrondos e explosões contorciam o semblante dos mais de cem homens e mulheres nobres, entre crianças que ali estavam também, reunidas aos pés do grande altar de rocha maciça retiradas das Femiaren finamente entalhado. O cheiro suave das ervas secas queimadas podia ser sentido por todo o grande salão, sustentado pelas doze grandes pilastras que o cruzavam de um extremo ao outro. Lá fora, um Draquon com olhar endemoninhado combatia fileiras de homens com sua cauda e pescoço, subindo tenaz a estrada central após o poço da praça, rumo às portas do Templo.
– Soldados! Flanqueiem com lança a fera! Vamos! — Sorbam não podia crer que seus homens caíam como folhas perante as investidas do temível animal, já próximo da suntuosa fachada de mármore do Templo. Assim, duzentos peltastas valentes correram juntos de seu general estrada acima, até os jardins embranquecidos pela neve, enquanto a cauda sinuosa da fera demolia as estátuas de três gerações dos reis de Ziporih e o sangue dos homens esmagados por ela tingia ali o inverno de carmesim.
– Vamos! Ataquem! Formação de basilisco! Esquerda e direita! — O ritmo de arremesso das lanças posicionadas entre os chanfros de bronze dos peltas da infantaria leve tremar era ditado pelo seu movimentar lânguido à média distância e as rajadas perfuravam a criatura seguidamente em seus lados e asas. Intimidada com a investida serpêntica, refugiou-se debaixo do pórtico do Templo e, entre grunhidos e berros, se lançou com violência contra os portões imponentes. Uma. Duas. Três vezes. — Encurralar! Formação de abraço! Rá! Filho do Caos em movimento, agora morrerás! — O vermelho sanguinário nos olhos de Sorbam o impulsionou a pular à frente da fera com sua espada em riste enquanto seus homens a golpeavam com as lanças. Mas ela detinha grande força e balançou duas vezes a cauda, derribando muitos homens.
— Sorbam é um grande guerreiro! Não teve medo do Draquon! Imagino como Notrum devia estar enquanto se escondia! — O olhar de Vatrehuh brilhava ao se deleitar com o relato de suas amigas. — Me contem! Como Sorbam derrotou a fera?
— O general se lançou com sua espada sobre o peito do Draquon, mas foi rechaçado com suas asas, que o jogaram longe. Do lado de dentro do Templo, o suo gélido dos nobres aumentava a cada estrondo, pois o animal ferido insistia em derribar os grandes portões, que ainda resistiam apesar dos golpes furiosos.
— Mentiroso! Estamos prestes a morrer nas mãos de selvagens por conta de tuas falsas palavras! O Uno não te ouve, Notrum! Que hoje mesmo receba a paga de Fyr por teus maus atos! — O grito anônimo vindo do meio da multidão concentrada próximo à mesa ardente da proposição atravessou como seta o âmago do que restava do orgulho do temeroso velho rei. Finamente vestido e portando o seu suntuoso Matrih, ele mantinha-se à frente do altar, mas suas mãos trêmulas o impediam agora de jogar a canela e o alabastro sobre o fogo. O semblante se contorcia junto aos seus olhos reticentes. — Bel me abandonou, meu amor. Agora é hora de partir. — Disse ele baixinho à Taremil que, ao seu lado, lhe acompanhava no serviço das preces. — Não me ouviste, homem teimoso. E se não formos rápidos, todos morrerão. Ah! Notrum! O quanto amei Ziporih e até a ti mesmo! Mas agora tens que ordenar teus guardas a abrir a passagem para que todos possam escapar antes que os inimigos invadam o Templo! Pois te disse que o Uno não colocaria a mão nessa guerra!
Ele a fitou em silêncio por um instante, e a viu jovem como na primeira vez, adentrando seu aposento coberta com o véu de ornamentos coloridos típico dos Vilca. Seu rosto, apesar de delicado, não detinha beleza, mas havia algo de magnético no tom severo de seu olhar baço que se misturava às sobrancelhas espessas e à fronte alta. Naquele momento, ainda jovem, sentiu que sua essência se afeiçoaria à dela como se afeiçoou pelos fios revoltos de seus cabelos ruivos e suas curvas exageradas. Temperadas com o comportamento enérgico nas palavras. E assim a amou pelo que julgou ser sabedoria ao perceber que ela o protegera com o dom da Visão em meio à turbulência e mesmo enquanto houve paz em seus domínios. Sim, Taremil foi fiel no propósito que tomou para si ao compreender a personalidade de Notrum. Pois o jovem príncipe que passou a infância recluso para não ser assassinado pelos seus não poderia tornar-se homem diferente. Ali, naquele derradeiro e breve momento de eternidade, mais uma vez declararam seus sentimentos um ao outro apenas com o olhar em meio ao balançar do portão prestes a ser escancarado. E ouviu seu último pedido a ele feito.
— Ziporih está prestes a cair. Reúne-os, Notrum. Instrui a todos como escapar da morte certa.
O senhor da última Cidade de Pedra, convencido, virou-se para os que estavam ali. E com a voz ainda trêmula, disse
— Soldados! Venham aqui. Súditos! Ouçam todos! Por todas essas luas estive a cada noite no Salão das Preces me humilhando ao Uno, com a esperança que se assim o fizesse, alcançaria sua misericórdia. Mas Bel se manteve silente e a ameaça está às portas! Ainda assim, vos digo que temos uma chance! Embaixo deste altar existe uma escadaria que leva a dois caminhos. Todos nós devemos seguir por ela até seu fim e tomar o caminho da direita. Assim, sairemos longe dos muros da cidade. Nos campos à margem oeste da Malem, na altura dos limites com o Malgaroth. De lá, cada um deve tomar o rumo que lhe aprouver. E que o Uno nos proteja!
O pavor monstruoso produzia gritos e choro em todos ali.
Continua…