As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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Ela esperou ser aviltada, mas um peso súbito recaído sobre seu corpo a imobilizou. Com o rosto inerte virado na lama, viu o sangue carmesim formar uma grande poça ao seu redor e ouviu grunhidos inexprimíveis perto de seus ouvidos. O uivo se misturou ao rosnar de um grande lobo cinzento, que cheirando o corpo do malevolente Jotuh, dilacerava seu pescoço com repetidas mordidas. Aturdida, Ranemann fitou o animal, que a lambeu no rosto com sua língua áspera e úmida, tentando desatar a mordaça delicadamente com os dentes pontiagudos. Até conseguir.

Seu grito seco de alívio misturado aos soluços se ouviu até as fronteiras da floresta com as praias do Grande Mar. Já liberta, levantou-se com dificuldade e quase voltou ao chão com a luz intensa que se fez subitamente em seus olhos. “-Sabia que nos encontraríamos mais uma vez. E é uma pena que não compreendo vosso falar, mas sei que o Uno as enviou em meu auxílio! ”– Pensou ela. As Friyjuhim1 celebravam ao seu redor, puxando-lhe as mãos e os cabelos. E o lobo atento, dançava com elas alegremente saltando e uivando dando-lhe boas vindas junto aos passarinhos que felizes entrecortavam os ares entoando o cântico da Alegria de Orath2 como os Antigos dizem que os Guardadores das Pilastras de Bel Zemital, Zilcadosh, Zidorah, Zimeril, Zakiradiah, Zekilameh, Zelmiaelin, Zotia, Zortiemeu, Zamiterioh, Zatemias, Zofielau, Zokedash, Ziperath, Zimori, Zemetiah, Zimatrion e Zeturin3 fizeram ao aprisionarem as chamas da Alegria do Maioral dos Prazeres Lícitos4 nas pilastras que sustentam no firmamento a Cidade Abençoada quando do nascimento de seus filhos Sinorah, Mokau, Kileu, Familah, Vilcmah, Beninona, Simarit, Semit, Diriri, Nuh, Siderur, Zitriu, Xituh, Ashiter, Fildenas, Riltrash, Gaduda e Ashimita.5

A alegria então tomou a essência de Ranemann e das criaturas que ali estavam, pois, a melodia era mui bela e a voz das cotovias mui doce. E os gamos e coelhos se compadeceram de Ranemann e ofereceram-na sementes pois imaginaram pela sua aparência que tinha fome. Os pássaros dela se compadeceram também e ofereceram pequenos vermes como alimento. E o grande lobo cinzento a guiou até um baobá próximo para obter água. “-Tuas amigas me tiraram de minha parentela nos extremos dessas terras para te ajudar. Dessas terras, donde tenho visto podridão e ódio, os meus me alertaram que seria perigoso. Se andarmos um pouco aqui, desceremos um barranco longo e avistaremos homens loucos que de lá das águas salgadas montaram guarda para a última cilada contra os teus. –“ Dizia o animal em pensamento, sem, no entanto, compreendê-lo Ranemann. As lambidas e afagos da fera no entanto, eram por ela aceitas de bom grado.

E assim Ranemann se afeiçoou ao lobo cinzento da Floresta das Sequoias Colossais e mui amou o grande animal que lhe salvara da maldade de Jotuh. “-Te chamarás Gwlaud6, pois salvaste minha honra na hora mais escura.-“ Pensou, afagando-lhe o focinho frio e úmido. E Gwlaud retribuiu a afeição de Ranemann e amou nobremente até o fim.

***

Segura e alimentada, Ranemann olhava pensativa ao seu redor. O corpo de Jotuh estava tomado por um exército de formigas, que devoravam sua carne rapidamente enquanto confabulavam com as Friyjuhim. A grande poça de sangue já coagulado, atraiu moscas e os pequenos animais curiosos se aproximavam para presenciar a queda do abusador. “-Para onde ir? -“ Sem saber qual caminho tomar, demorava decidir. Deveria retornar para Atelith e Vatrehuh? Estariam ao menos vivos? Os ecos das últimas palavras de Claekuth em Thelim naquele momento lembraram-na da demanda. “-Mas afinal, ela ainda me pertence? –“ Melikae se fora. E seu amor por ele, minguara. E as vicissitudes levaram-na ao envolvimento com Vatrehuh. A ponto de quase amá-lo. Tal confusão de sentimentos mui a preocupava, pois, a interpretação da Profecia era clara: deveria haver nobreza no Amor do Herói. “-Sendo assim a demanda não mais me pertence.-“ Cria ela.

Mas então o que dizer de tudo que vivera com Melikae? A força nobre do amor que nasceu desde quando fora apresentada a ele menino por Claekuth no pátio próximo aos sinos dos poços de Mithmard ainda lhe produzia longos suspiros. A memória ainda vívida recolhida nos recônditos de suas lembranças agia como bálsamo quando recordava de como prometera a ele seu coração debaixo da última macieira de Nelmitri7 após seu primeiro ciclo de regras. E o frenesi pelo tocar tímido de seus lábios naquela cálida noite primaveril do Ritual da Lua8 em meio às danças para Zetricon e Illil9 ao som da música sensual produzida pelos tamborins e vielas onde ambos, com suas fantasias mágicas de peles de gamo recém bordadas por Claekuth, em secreto finalmente se entregaram ao amor na noite encantada. Enquanto observava a fúria das formigas no devorar do cadáver de Jotuh, percebeu que todas aquelas sensações boas e ruins ainda estavam entranhadas na sua carne e essência. Não podia negar a si mesma, apesar de nutrir bons sentimentos por Vatrehuh. Sabia que seu coração ainda era de Melikae, e nem a astúcia de Atelith em usar encantamentos através das tatuagens ritualísticas da concepção feitas por Morjal para atraí-lo naquele festival a abalou. Porém, a descoberta de sua gravidez foi algo inesperado. Como sua irmã poderia ter lhe feito tamanho malfazejo? Mesmo alegando inocência em desconhecer a profundidade de sua relação com Melikae naquela terrível discussão, nunca acreditou em suas palavras. Tudo isso em mui a devastara e acreditava ser esse o motivo de seu ventre secar. “-As marcas desse amor nunca cessarão-“ Dizia chorosa a Melikae cada vez que suas regras desciam mesmo após várias luas se deitando com ele. Por isso, teve de aguentar durante o tempo que estivera sendo treinada em Ziporih na arte do combate os cochichos e pilhérias de Safretin, a oposição do velho grão-mestre Fartriohn e até a dos próprios pais de Melikae, Drovaton e Aziydaeh –à época membros do Conselho dos Separados. “-Que estejam todos no Outro Mundo Inferior sofrendo pelas mãos de Fyr. Mereceram o fim que tiveram-“. A mágoa ainda lhe era presente. Mesmo depois de Notrum ter dado cabo de todos seus opositores e a doença ter levado seus pais, Ranemann ainda não se sentia plenamente vingada. “-Sempre me esforcei para que me amassem. Mas não fui aceita. O Uno é meu reto juiz. –“ E o crânio já quase todo descarnado de seu abusador lembrava-lhe de como o castigo de Bel por vezes vem com urgência. Afinal, quem imaginaria que a súbita praga de sangue ruim recairia sobre a casa de Melikae? “-Todos nós acumulamos dores. As minhas por não conhecer meus pais de sangue me perseguem bem como meu ventre seco. Mas ele perdeu os seus inesperadamente. E sofria, mesmo quando ria. Astuto! Como podia se esconder em risadas e canções!?-“ Era a sua constante impressão desde que deixaram Thelim próximos do amanhecer, pois com frequência ele ria até chorar das piadas mais bobas e por vezes as lágrimas lhe caíam da face ao dedilhar sua castina. “-Ah, meu amor! Como foi bom nosso deitar naquela última noite, às margens do Acherontis! Por que te perdeste de mim? Aqueles malditos homens degenerados nos atacaram e caíste naquelas águas escuras! Para morrer no interior das cavernas do Norte gelado! Mas bem que cumpriste o Ciclo como guerreiro! Fyr deve te recompensar por isso! Melikae de Ziporih, podem mil amores surgir em minha vida. Mas de ti nunca esquecerei.-“ Suspirou, acariciando seus ombros, enquanto observava o esqueleto de Jotuh já com os ossos limpos como a neve. As formigas haviam-lhe vingado finalmente.

Continua…


1-As gotas da Alegria de Orath quando do nascimento de seus filhos com as dezoito esposas dadas a ele pelos Censores do Povo das Tendas. Pelo Uno foi permitido que habitassem até o fim da Era do Declínio. Afeitas aos homens por conta dos negócios de seu pai Orath com os Vilca, porém mais e mais se tornaram ariscas com o avançar do Caos em movimento em Acheron, se escondendo nas florestas e aparecendo apenas a noite  por conta de sua intermitente luz.

2-Entoado quando do nascimento dos Filhos de Orath.

3-Servos do Uno, criados anteriormente ao surgimento das lágrimas alegres e melodiosas do Senhor da Cidade Abençoada que se uniram para formar as torrentes de águas do Lago da Criação, este princípio de Acheron.

4-É dito pelos Antigos que tamanha foi a alegria de Orath ao ouvir o riso de seus infantes quando de seu nascimento que de suas narinas saíram labaredas para servirem de sinal de Bel no firmamento.

5-Os Míticos Alados. Filhos de Orath com suas esposas Vilca Amelá, Derach, Sounit, Cinepit, Sefarit, Etrich, Jedil, Maliq, Policuat, Illil, Jeúd, Suaba, Liput, Mitrileh, Matril, Silbesh, Oret e Buedah dadas a ele por Lemach, Lamech e Limeuth, os Três Censores dos Vilca.

6-Gwla: “acudir” (dor), u-d: ???. Tal nome provavelmente é alguma corruptela da palavra “gwlar” que os Antigos usavam para admitir a “a cura súbita” de uma febre qualquer. “Gwlar edi Beul. ” “ (A) cura vem de Bel. ” Assim Ranemann chamou o senhor dos grandes lobos cinzentos. Amigo das Friyjuhim e que amou Ranemann mais que a si mesmo.

7-A árvore que conferiu longevidade aos oraculares Claekuth e Morjal. Antes da queda do Bosque de Bel, foram eles com as formigas e levaram os últimos frutos de Nelmitri e assim plantaram após a descida da Água Súbita a derradeira macieira.

8-Para saudar o Maioral dos Prazeres Lícitos, pois assim os Vilca se tornaram fecundos e puderam sobreviver a matança de seus irmãos Milcah. Orath, satisfeito pela saudação dos Vilca, lhes tornou fecundos.

9-Sobre esse negócio muito se discutiu entre o Povo das Tendas e os oraculares de Thelim. Pois após a revelação de Bel que as danças do Ritual da Lua eram oferendas dos Vilca aceitas por Zetricon, mui temeroso ficou o povo. E Orath, na época furioso, lançou praga de ventre seco nos muitos que assim procederam, mesmo em inocência.