As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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Se ele estivesse comigo, meu coração se acalmaria. E meu correr pelos campos do Malgaroth naquele fim de tarde seria de paz. Mas eu deixei para trás a coragem e guardei apenas o medo, e só me restou o fugir frenético quando Melikae me livrou daquele desgraçado. Como pude desafiá-lo? Bem, dizem os Antigos que o amor nos transforma de súbito, apesar de que chance nenhuma eu teria contra o homem do Leste. Ou talvez tenha sido a vontade de viver. E não, não peço que não me recriminem. Pois não titubeei ao descer aquela escadaria sem olhar para trás, derrubando todos os que estavam à minha frente, correndo por um tempo que não contei no corredor escuro e úmido repleto de ratos. Até tomar o caminho da esquerda e finalmente a saída debaixo do velho carvalho na bifurcação da Malem. Sim, eu estou viva. E talvez tenha sido castigada por isso. Da pior maneira, Bel me mostrou.
– Mulher, aqui! – Ele disse ofegante, parado por entre as pedras na curva da estrada para o Oeste. Devo tê-lo ouvido com o auxílio do sobrenatural, pois eram tantos os gritos dos outros que corriam! Nossos inimigos estavam espalhados pelos campos e nos perseguiam como as espertas raposas fazem na penumbra atrás da caça. – Vem aqui, está escuro! Estará segura! – Já terminava a viração do dia, e a sisudez da luz da Lua cheia clareava o branco da neve que cobria os campos. Aquela voz, tão familiar, que eu desejava à cada noite em meus aposentos pertencia ao homem que fiz feliz no tempo em que habitei na Cidade de Pedra. Não era delírio por conta do medo.
– Sorbam? És tu? – Foi o que pude dizer antes de me lançar sobre seus braços carmesim. Eu já sabia que era ele. Pois o senti muitas vezes em meio ao prazer por entre minhas coxas. Mas o frio do vermelho que tingiu minha pele me mortificou dos pés à cabeça. – O que aconteceu contigo? – Não havia brilho nos olhos apesar do intenso luar. Seu peito trêmulo ofegava. E por um instante eu duvidei que era ele, pois meu amor, o guerreiro, o general dos tremares, era destemido e implacável. Sorbam não conhecia o medo. Afinal, que homem frágil era esse que transparecia temor até no respirar?
– Disse que viria. Mas não seguirei contigo.
Do profundo corte no ventre saiam jatos carmesim e eu via em seu partir o meu castigo. Semelhante ao de quem teve sua vida tirada do meio dos seus ainda na infância. De ter sido serva dos seus irmãos. De ter sido forçada a deixar sua única filha nas mãos de uma estranha. Mais uma vez eu recebia ali a paga de perder o amor. Pois Notrum se fora e agora Sorbam também o seguiria. E eu perdi ambos. Ali, sobre as rochas da curva da estrada para Oeste, tive o último encontro com o maior dos generais de Ziporih, a Cidade de Pedra.
– Por favor, deita um pouco. Fico aqui contigo… tenho algumas ervas na minha bolsa. A mandrágora é cicatrizante… – O gosto salino das lágrimas embargava minha voz. E eu sentia sua carne tremer enquanto encarava seu olhar fosco de morte. Mas a força ainda não o abandonara, pois segurou firme meus ombros, me colocando contra as rochas.
– Não há tempo. Olha os campos, vem um levante de bárbaros descendo a planície. Tenho que ir até o Sopro do Atalaia avisar Lemael. Corre, meu amor, segue para Thelim.
– Sorbam! Ah, Sorbam! – Tentei me atar nele, mas seu suspiro parecia ter-lhe dado o fôlego de força para seu último feito. – A Lua é o teu guia. Segue-a, mulher. Te esperarei ao lado de Fyr! Notrum já deve estar lá me aguardando! Saiba que eu e meu rei te amamos!
Ele correu na direção oposta da planície, para o Norte. Pois o brilho do cobre da trompa podia ser visto perto dos dois velhos carvalhos ao largo da estrada. Sua armadura cintilante ia se apagando conforme se afastava correndo sobre a neve. A dureza do frio invernal se chocava ao meu coração fervendo em tristeza por vê-lo desaparecer. Não, eu não desistiria. Mas tudo o que consegui fazer foi gritar enquanto o seguia:
– Não vais conseguir, Sorbam! Deixa tudo e volta comigo! – Assim, fui logo atrás dele em meio ao canto agudo das espadas e gemidos dos moribundos naquele campo de morte. Até a última tentativa, quando, exausta, o vi subir o rochedo do Atalaia e em plenos pulmões tocar a trompa que ecoava por todo o extremo Oeste dos campos do Malgaroth. Ali eu vi o último feito de Sorbam, o general tremar. Pois enquanto soprava para dar aviso, lutou bravamente contra os bárbaros do Leste, e o bramir de sua espada afiada ceifou ainda trinta brutos. Tocou o Sopro do Atalaia até que caiu morto, sem sangue e com os tímpanos estourados, levando consigo a melhor parte de minha essência.
Assim, em prantos, retomei o caminho ao largo da Malem naquela noite mais triste, pois os bárbaros seguiam marchando pela estrada branca tingida com o carmesim do sangue dos mortos e pareciam triunfar sobre os que fugiam sem desmaiar de horror. O choro da perda se misturava às minhas dúvidas sobre o que fazer. Pois não sabia como Claekuth me receberia se seguisse para Thelim. Afinal, como ela se sentiria me tendo mais uma vez perto de Morjal? Já haviam se passado tantas primaveras, mas a dor da traição não se esquece! E Morjal, como reagiria? E minha filha? Será que Atelith estaria em Thelim? Talvez fosse mais sensato buscar abrigo nos domínios de Lemael. Ele não negaria abrigo a uma descendente de seu ancestral Lemach. Mas o caminho para lá estaria repleto de bárbaros. Assim segui, me escondendo por entre as árvores. E o terror me perseguia. E a tristeza me consumia. Até após duas luas passando fome e frio, chegar ao meu destino.
E se tu, que estás a ler agora o relato do bardo contador em suas crônicas após nosso encontro em Thelim, tiver curiosidade em saber quem sou, dizei a todos que eu sou Taremil. A desprezada de Lemael, que amou e teve aos seus pés o senhor da Cidade de Pedra. A que amou e teve o amor do bravo Sorbam, o último grande tremar. A única que os amou até o fim.
Continua…