As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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— Aceita mais um? – Claekuth estendeu a bandeja de barro com os pedaços de salmão assado.

— Estão deliciosos, mas já comi demais. Morjal, meu amigo! Dá-me mais um pouco dessa cerveja maravilhosa! Vamos! Enche tudo! – Levantou a caneca austera que foi prontamente cheia da bebida negra perfumando com notas de noz moscada e gengibre a sala aconchegante da cabana.

— Não exagera! Lembra-te que daqui a pouco deves retornar ao teu palácio, não queres chegar assim para que o nosso povo se envergonhe em saber que seu Censor é um beberrão! – Havia severidade nas palavras da oracular ao ordenar com um gesto que Morjal guardasse a ânfora. – Afinal, não estamos reunidos aqui para celebrar.

O olhar moreno do homem achaparrado mudou repentinamente o clima festivo ao ouvir a admoestação de Claekuth. Ajeitando suas longas tranças negras, se pôs ereto sentado na cadeira de madeira maciça. – Tudo bem, amiga. Me desculpe, mas faz um bom tempo que não reunimos em tua casa para um dedo de prosa sequer! E sempre me admiro com tua juventude! Já tenho sessenta primaveras e sou um velho, veja, minha barba começa a branquear e meus dentes estão caindo! Quanto a ti, e Morjal… aliás, amigo, tua barba já está quase tocando o umbigo! Não achas boa hora para trançá-las bem à moda de nosso povo? E tu, mulher, está também cada vez mais jovem! Falai para mim, ainda possuis macieiras de Nelmitri, certo? Dividiste elas com meus pais Lamech, Lemach e Limeuth, por isso viveram muitas primaveras! Por que não me fazem o mesmo? – Indagou, coçando a barba.

— Depois conversamos sobre amenidades. Vieste aqui para ouvir sobre as notícias que nossas amigas formigas trouxeram do Leste. Para um pouco com a bebida e ouve, Lemael! – Claekuth, enérgica, segurou a caneca impedindo dele leva-la à boca.

Ele, surpreendido, a obedeceu. — Pode falar, mulher.

— As últimas luas tem sido de muitas notícias trazidas pelas formigas. O Leste enfrenta turbulência e o senhor do Povo das Alturas pede ajuda, pois tem enfrentado rebelião no seio de seus domínios e ataques dos bárbaros do Grande Mar.

— Vatrehuh, aquela coruja astuta. Será que fala a verdade?

— As formigas não mentem, as pequenas criaturas ainda são puras, Lemael.

— Estranho ele solicitar ajuda de nós. Meu povo não possui tradição guerreira. Meu exército é pífio! Os Vilca são simples! Nos mantivemos assim por todas as primaveras desde a criação do mundo! Por isso o Uno nos ama! Haveria mais lógica pedir ajuda de Notrum e seus tremares, pois são guerreiros e dominam a magia!

— Ele fez isso também. – Claekuth levantou-se e passou a andar ao redor da pequena mesa enquanto continuava. – Notrum sofreu um cerco de mais de trinta luas do maior exército oriental que se viu em toda Acheron. Ziporih não atendeu o pedido de Vatrehuh. Nem poderia!

— Que raios! – Gritou, interrompendo-a. – O mundo desabando em ebulição e eu nada sabia! Ziporih e o Povo da Sequoias Colossais sempre esquecendo do Oeste. Não deveria ser assim, nossos povos são irmãos dos primeiros Vilca formados pelo próprio Uno que se reuniram nos campos do Malgaroth após Ele derramar suas lágrimas alegres para encher as torrentes do Lago da Criação! – Bateu o punho sobre a mesa, indignado.

— Sabes muito bem o quanto os três povos dos homens se distanciaram por conta de inveja, ambição e ódio. A desunião poderá ser a causa de nossa extinção. Ouve bem agora, Lemael, Censor dos Vilca que habitam em tendas nos campos do Malgaroth! O Caos em movimento, ele reina no Leste. Envenenando os animais, contaminando a terra e as plantas. Os bárbaros das ilhas do Grande Mar se aliaram a ele e à Loucura. Mas eu devia saber de tudo. Afinal, eu vi ali. Aqui mesmo nessa sala, há vinte primaveras! Mas agora é inevitável, temos todos que fazer algo, ou nosso mundo deixará de existir! A raça dos homens perecerá, se não agirmos! Morjal, meu amor, dá-me meu cachimbo aceso para tragar um pouco a erva. – Ele prontamente o fez. – Compreendes agora, ou a bebida ainda te inebria?

— Mas – Lemael gaguejou — não enviaste a filha de Taremil com teu consorte e Ranemann junto daqueles nobres de Ziporih? Digo, ela é o Herói, não é? – Seus profundos olhos castanhos arregalados contorciam ainda mais o semblante preocupado. – Se não, estamos perdidos. E se Ziporih cair, não haverá mais povo heroico no mundo que possa combater inimigos ferozes como os do Leste.

— Não tenho mais certeza que seja. A profecia fala de pureza e amor. Não sei se Ranemann se manteve pura quanto aos seus sentimentos. Aliás, segundo o que as formigas me contaram, não. E Melikae é um desavergonhado e fraco. No fim, não se livrou de Safretin. Mas não sei… ainda assim, tenho esperanças! Quanto à Cidade de Pedra, houve ali grande destruição. Mas soube que muitos sobreviveram e nesse momento alguns nobres devem estar em nossas terras. Fugiram pela passagem do Templo da Ordem que Nartreg construiu quando nossos povos ainda eram próximos. Quem sabe a consorte do bardo contador não aparecerá por aqui?

— Será a oportunidade perfeita para darmos fim na vadia. – Disse Morjal, sentado, fumando seu cachimbo. – Assim o caminho fica livre para Ranemann. Ou quem sabe para Atelith?

— Por Fyr, me respondam. O que raios existe nesse bardo contador que insistem em uni-lo às duas? – Indagou Lemael. – Já conversamos outras vezes sobre esse respeito, e tu sempre me disseste desde que te enviei Ranemann ainda pequena, que ela era especial. Mas por que ele? E por que ela e ele?

Claekuth parou de andar, e fitou Lemael por um momento, repousando em seguida seu olhar sobre o de Morjal. Balançou a cabeça discretamente, colocando suas mãos por entre as mangas longas de seu vestido colorido. Após suspirar, disse mansamente:

— Bem sei que não te deténs em estudar as coisas sagradas. Ah, Lemael! Deverias ter seguido o exemplo dos teus ancestrais Censores! Eram homem piedosos e tementes às coisas de Bel! Se não fosse o amor de Lemach, Lamech e Limeuth, nosso povo sucumbiria à Água Súbita! Tu o sabes que foram grandes pois conviveste com eles! Apesar de Lamech ter falhado, ele no fim se redimiu. Todos eles sabiam de cor o que está no Livro dos Dias a respeito do Herói, pois aguardavam ansiosamente o dia da sua vinda. Não sabes o que o Uno me disse após a queda de seu arauto Zetricon? Pois deixa eu te lembrar…

Então ela foi até a estante empoeirada próxima à lareira e pegou alguns papiros. Abrindo-os um a um, deslizou o dedo sobre suas iluminuras, onde também haviam algumas anotações.

— Aqui está. Terminei há duas luas esses textos que estava preparando para enviá-los à Ordem do Templo. Aliás, sabes ao menos que Notrum está preparando uma versão atualizada do Livro dos Dias? Estou ajudando ele nisso. – E então recitou a profecia do Uno:

“ — Se existir esperança para Acheron após a descida da Água Súbita, que venha ela do Amor entre meu Arauto e sua Senhora.

Pois, em certa hora, somente o Amor de Zetricon e Illil permitirá aos homens de boa essência salvarem a Terra dos Carvalhos do Mal que a assola.

Assim digo, do impuro que se faz forte para superar sua fraqueza vem a verdadeira grandeza,

e do Amor genuíno que começa pequenino sem avareza, e por caminhos tortuosos espreita o Mal para vencê-lo,

faz disso zelo vitorioso, como canção do perfeito instrumento de alegrias e lamentos, assim será,

chegando dos campos! Ah, e se vê a primavera anunciar! O ímpeto da juventude, a doçura do fogo dos cabelos de um de dois desconhecidos! O Amor puro desmedido!

Esse sim, no fim, prevalecerá ”

O riso incontido de Lemael quebrou o silêncio após a última palavra dita por Claekuth. – Que bobagem é essa, minha amiga? Deixa eu entender… tu estás a julgar que minha filha Ranemann, que eu te dei, para ser como tua, salvará o mundo por conta de uma rima sem sentido que ouviste de Bel? Afinal, onde está dito aí que ela é o Herói? Bem me parece esses versos como os dos trovadores errantes que vez ou outra passam temporadas em meu palácio. Já ouvi melhores! Ah! Segundo essa poesia, o Herói pode ser qualquer um. E aliás, mais me parece estar próxima Atelith que Ranemann! Afinal, ela descende de Lamech, o mais aguerrido dos meus ancestrais! E quem sou eu, se não o beberrão lascivo como o dizes!? O sangue é tudo numa família, Claekuth!

— Que Fyr não tenha ouvido o que disseste, pois desdenhas das palavras que saem da boca do Uno. – A raiva aqueceu-lhe as têmporas e o rubor do rosto. – E bem tens razão nisso, pois a aberração do sangue de teus irmãos que corre nas veias de Atelith gerou Ostragion. Que Mitranil o tenha aprisionado para sempre no Gohin!

— Aquela criatura pérfida. Quanto malfazejo aprontou em nossa vila! – Interpolou Morjal, levantando-se para pegar pão na despensa. – Que esteja sendo torturado pelos demônios daquele lugar horrendo!

O velho respirou fundo colocando as mãos sobre seu ventre gordo. Claekuth e Morjal, sentados, se mantiveram em silêncio enquanto fumavam a erva perfumada. Irritado, levantou-se e foi até a lareira. A luz do fogo se misturava a fumaça dos cachimbos, e o crepitar da madeira era o único ruído ouvido na pequena sala.

— Mas então, o que acham que posso fazer a respeito? – A voz de Lemael era titubeante. Como seu olhar.

-Tu? Como sempre, nada. Mas Melikae retornou a Ziporih com os Duzentos Arrependidos e um exército de animais abençoados. Eu e Morjal iremos ao Norte ter com ele. Precisamos de soldados para nos proteger na viagem. Se quiseres vir conosco, será bem-vindo.

— Tudo bem. Eu os enviarei. Bem, hoje já não vale mais a pena retornar para casa pois já a lua já anuncia a viração do dia. Devo dormir aqui. Me consigam uma cama, uma bacia de água morna. E duas criadas bem-apessoadas para me divertir.

— Terás o que desejas.

Continua…


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