As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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-Rápido! Não podemos ser vistos… tome. Entorne em cada manjedoura.
-Espero que saibais o que está a fazer, seu pulha. Não sei se fiz bem em aceitar ter vindo até aqui…
-Não se preocupe, é para que eles ouçam nossas vozes. Gehamih e Uhtyl os tem retido e perdemos muitos de nosso povo nos últimos ataques. Assim teremos as criaturas abençoadas ao nosso lado! Meu irmão ficará satisfeito quando contarmos a ele.
Os dois então assim derramavam o liquido negro nas grandes vasilhas de madeira. Os Crafaeins e Draquon, incomodados com a presença de ambos, não paravam de grunhir nervosamente, os assustando. Atelith, correndo apressada, quase derrubou o balde ao tropeçar em um toco, e após um grito de dor, disse irritada:
-Jotih! Ajuda-me aqui com essa seiva! Se isso me tocar, e eu me tornar algum tipo de criatura degenerada, juro por Orath que antes que eu perca minha consciência, vais pagar com tua vida!
-Não é hora de praguejar. Anda, me dê. Só falta uma.
-Afinal, onde conseguiste o sangue das árvores espiãs? E por que achas que esses animais te obedecerão depois de bebê-lo?
-Eles meu ouvirão com voz amiga após tomar a seiva – disse ele, enquanto a ajudava a virar o balde – assim teremos em nosso favor a maior força das fileiras de meu tio. Não vê? Nossa vingança finalmente será consumada! A morte de meu pai Sertravh será vingada! E junto reinaremos, eu, meu irmão Jotuh, e tu!
-Não será tão fácil, tolo. Não sei quanto aos teus, mas conheço muito bem Ranemann. E Zitri. E Sabretil me parece ter essência semelhante à deles. O mago é poderoso, e não podemos tê-lo como inimigo. Quanto a Ranemann, a sua fraqueza é o sentimento de culpa em relação a mim. Convencerei mais facilmente ela…agora, Uhtyl e Gehamih certamente deverão ser assassinados.
-Deixa com Jotuh, pois ele é habilidoso na arte de manipular. Viste como usou Jigfrah? Chegamos ali exatamente onde queríamos! Afinal, Vatrehuh eliminou as casas de Drotram e Filistio! E os filhos de Jigfrah e Chomein já estão conosco! E o resto do povo… ouvirá aquele que tiver com o poder. Será uma transição mais suave que imaginamos…agora vamos! Antes que a alguém apareça, não devemos estar aqui!
A passos rápidos, saíram do lugar. Sorrindo, o jovem olhava Atelith indo à sua frente pela trilha entre as gigantescas árvores que dava para o palácio de Vatrehuh. Estava ansioso por encontrar Jotuh e lhe contar as novidades. E desejoso também que tivessem alguma alegria após a ceia. “Espero que hoje ela me queira. Da mesma maneira que deseja meu irmão” – pensava ele, enquanto observava as curvas sinuosas de seus quadris se movimentarem.
-Veja! Alguém vem em nossa direção! Corre para cá!
Os dois subitamente se agacharam e correram para fora da trilha, descendo o pequeno declive ao largo. Elevando suas cabeças, viram dois vultos indo na direção dos estábulos.
-Vamos atrás deles? Talvez fosse melhor nos livrarmos de todo tipo de prova – disse Jotih.
-Não. Deixai. Seja lá quem for, não é a hora de derramar sangue. Continuemos com o planejado. Seu irmão nos espera. E quem sabe hoje me animo a me divertir contigo.
Voltando à trilha, tomaram o rumo de casa.
“-Homem de tristezas, a filha do Herói caído deve morrer. Essa é a paga em troca de nosso sangue, pois os animais não te ouvirão se morto estiveres. Lembra-te do estigma da podridão que assolou Mafura. A tua hora está prestes a chegar! Cuida para realizar o desejo de nossa Senhora! Ela está prestes a chegar com os seus Generais a essas terras! Esse é o aviso e certo é o cumprimento dele! O malion da paciência de nosso Senhor está a transbordar!”
Já às portas do palácio, ouviu ele mais uma vez as vozes que perturbavam sua mente. E suando frio, entrou.
***
-Por que estão tão agitados?
-Não sei. Coitados! Estão magros! Os musgos e visgos não detém mais a vitalidade de antes. E é isso que os tem sustentado, pois nossas terras não são prósperas. Uma pena! Temo por eles nessa hora de grande perigo… mas é o melhor que possuímos. E são tão belos!
Vatrehuh então acariciou o grande Crafaein. Suas penas coloridas ainda refletiam a beleza de Bel, apesar da aparência abatida do animal. – Veja, Ranemann. Nada como um alento para acalmar os ânimos… não é, grandalhão?! – Disse ele sorrindo.
A luz que adentrava as brechas por entre a madeira das paredes se misturava à dos candelabros que permitiam os dois admirarem os animais abençoados no interior do grande estábulo. Os esguichos dos Draquons irritavam os Crafaeins, que rugiam em resposta. Ranemann, não habituada em ver tantas feras reunidas, estava nervosa. Vatrehuh, no entanto, se divertia em vê-la assim.
-Meu senhor, está tudo bem para amanhã? Vais enviar mesmo eles para as fronteiras nas praias com os teus homens?
Sim. Irão mil da Patrulha com Uhtyl. E levarão metade dos Crafaeins e Draquons. A outra metade ficará com os outros mil sob as ordens de Gehamih, divididos entre as fronteiras no oeste, norte e sul. E as cercanias dos Refúgios. Minha guarda permanecerá no palácio. Apesar do momento de aparente calmaria, não podemos relaxar as defesas. A ideia é buscar o inimigo antes que ele se reúna para atacar. Nossa maior dificuldade será lidar com homens despreparados que convocamos para se unir à Patrulha. Nosso povo é tão pequeno!
-Apesar dos homens degenerados desaparecerem após o último ataque, em breve coisa pior acontecerá – disse Ranemann arriscando acariciar o animal – para nossa sorte, suas essências vazias os tornam imbecis e inábeis o suficiente para serem mortos facilmente. Porém, é certo que por trás disso estão os homens do leste. Sabretil e Zitri tem dito que eles virão…
-As formigas viram barcos nas praias do Grande Mar. A fumaça que avistamos no horizonte ao leste, vem de lá. Estão praticando feitiçarias, não sentes o Mal por vezes à noite?
-Certamente. E é tão opressor que me rouba o sono. A ponto de delirar em visões aterradoras. Constantemente tenho visto corpos em meio a um mar vermelho escarlate. A água tremulante, lança ondas violentas contra as árvores e praias de areias brancas como as do Clahtemariaeh. E das profundezas das águas surgem gigantescas criaturas terríveis de pedra! Ora com aparência de ave e serpente, ora como busemontes… ora lembrando homens carregando clavas e machados ciclópicos. Agitam as águas até inundarem as terras. E então fogo devorador desce do céu… e consome tudo…
O relato de Ranemann a fez retornar a visão que lhe turbara a essência desde que chegara à Planície das Sequoias Colossais. Revivendo tudo o que vira, entrou em transe e, enquanto contava a Vatrehuh, sua voz cada vez mais se tornava trêmula e angustiante. Não podendo mais suportar a violência e o medo que lhe saltavam aos olhos, abruptamente o abraçou. ”–Não consigo mais, meu amigo! Ou vou e cumpro o que Claekuth me disse no interior da Floresta Escura ou enlouquecerei! “ – disse ela com o olhar.
Assustado, Vatrehuh retribuiu o abraço, e disse:
-Vai mesmo ceder aos caprichos dos Oraculares? Afinal, nunca me disseste o real motivo de Claekuth e Morjal te terem enviado até aqui. Não creio que o Amor de Illil esteja em ti. E acredito que – pelo que me contaste até agora – nem Claekuth, pois ela conhece bem a profecia, afinal… a recebeu do próprio Uno.
-Enquanto eu e Atelith vagávamos no interior da Floresta Escura, uma voz disse o que deveria fazer. E estou retardando isso… tenho medo de não cumprir tal desígnio e ser castigada pelo Uno e seus Filhos.
-Não confie em seus sentidos, minha querida. O dom da Visão em mim se faz imperfeito, e muito do que já ouvi e pensava ser avisos de Bel, se mostrou no fim ecos estranhos de minha essência. Crês que o dom da Visão em ti é perfeito?
Ela levantou sua fronte, e procurando-o com o olhar, retrucou:
-É diferente, Vatrehuh. Eu quase a pude ver. Claekuth me acompanha por toda Acheron. Desde pequena, ela me assistiu quando fui abandonada em Thelim. Fez de si mãe para me ter como filha. Ao lado de Atelith, que possui a nobreza dos Oraculares através do sangue de Morjal. E tu, que habitaste o Malgaroth, sabes quão incríveis são seus poderes. E meu amor e o de Melikae foi semelhante ao de Illil e o Maioral caído por um tempo! Mas, mas… nosso povo é pequeno! E a raça dos homens é como vela frente a ventos tempestuosos…e Melikae cumpriu o Ciclo. Temo ter sido excluída da demanda, e toda a luta ser inútil. Porém, só me resta continuar… veja, é isso que devo usar para completar minha missão… terei eu chance contra as hostes de Draemoniach com isso?
A jovem Vilca então tirou de sua cintura o pequeno punhal de mármore e mostrou a ele. Vatrehuh então examinou os entalhes arabescos e as inscrições sinuosas do artefato.
-O que é?
-Veio de Zetricon. Diziam em Thelim que após ter sido transformado em estátua de argila pelo Uno, Orath arrependido, entregou as unhas de seu irmão para Claekuth. E ela forjou esse punhal.
-E por que ele assim o faria? Afinal, Zetricon surrupiou o que restava do Amor das esposas de Orath e o deteve em Illil…
-Tuas dúvidas são as mesmas de todos os que como nós, estudam o Livro dos Dias. Talvez o Maioral dos Prazeres Lícitos soubesse que essa seria a única maneira de reaver o último fragmento do seu Fôlego roubado por Atheran. Pois, Morjal e Claekuth creem que Gwinvein secretamente o entregou aos Zamoth antes dela e seus senhor serem destruídos pelos Míticos Alados. Mas são suposições. Não sabemos se realmente o Fôlego da Redenção está sob o poder do Caos em movimento. Como disse, só me resta continuar, afinal se existe ainda algo nesse mundo nobre o suficiente que contenha poder para extinguir o Mal, deve ser o que restou do Fôlego da Alegria de Orath. Não podemos confiar que ajuda virá do Malgaroth e de Ziporih. Aliás, as formigas trouxeram informação a respeito?
-Nada. Creio que ainda não retornaram do oeste. Mas não estou esperando por eles. Amanhã meus homens partirão para as praias do Grande Mar. Os Draquons irão à frente e trarão notícias. Mas sim, haverá guerra.
Um breve silêncio se fez após a longa conversa.
-Deixa eu então clamar ao Uno para que tudo corra bem. Afinal, até aqui viemos para pedir benção sobre os animais.
E então, de mão estendidas para o alto e de olhos fechados, clamaram. E a voz deles chegou até o Guardião das Pilastras, que a levou ao Uno.
E se retiraram. Mas o sangue negro das árvores espiãs estava lá. E os animais bebiam dele.
Registrou o escriba:
E em grandes fileiras desceram o vale. E se reuniram ao redor de cada árvore, contando o que viram. Falaram sobre as águias, e sobre os busemontes. Disseram a respeito dos gobartos, beseras e matoas. E das multidões de homens de pele morena e pinturas inomináveis que se reuniam com eles ao longo da Malem e do Trufhontis e ao redor de Ziporih. E do pedido de socorro da casa de Notrum. E eu, a quem todos na Terra dos Carvalhos chamam de Claekuth, disse a elas que Lemael faria o que me aprouvesse se Ranemann rumasse ao leste, pois a predição sobre minha filha e seu consorte caído não havia passado. Sim, eu sou Claekuth, e o desejo do Uno vem a mim através de carta trazida por águias e que carregam sua própria voz. E Ele me revelou que os homens de boa essência marchassem para o leste. E desesperada, temi por Notrum e minha amada Taremil, pois havia cerco em seus domínios. Que o Senhor da Cidade Abençoada os proteja, pois Lemael recusa enviar os seus em auxílio de seus irmãos, preferindo a casa de Vatrehuh…
Continua…