As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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        Caminhava insistente, tal qual o despontar monótono das estrelas após a viração de cada dia consumado de viagem. Suas sandálias rotas mal protegiam os pés de pedras e galhos da velha estrada e a fina roupa de pele era inútil frente ao frio noturno. Porém, apesar das luas já passadas desde que deixou os seus, ainda tinha vívida a lembrança de seu juramento. E silenciosamente, adiante e atrás, nós o seguíamos, aflitas e intrigadas. Afinal, de que adiantaria tanto orgulho e autossuficiência se não fosse para trazer alguma doçura ao gosto amargo da vitória perseguida? Pois, tamanha violência para com os seus não poderia ser em vão! Sim, os seus malfazejos e as suas conquistas, deveriam finalmente convergir para o  maior feito: acabar com a derradeira ameaça dos conquistadores… Ninrim. E a ganância por glórias o fez ferir os grandes de seu tempo, e até mesmo a quem o amou mais que a si mesmo naquele malfadado conselho em Thelim. Pois com as feras nos campos do Makalabeth viveu. Poderia então ter sido diferente?

        Não. E temerosa, nossa amada Claekuth nos enviou em segredo e assim o seguimos ao longe, enquanto ele ia pela velha Malem. E decidiu após um tempo, a cada lua retirar uma peça de roupa. É para ser apenas eu, minha lâmina, e ela – dizia, enquanto acendia a fogueira de noite. Pela manhã, se alimentava um pouco e por vezes parecia estar em transe ao comer as ervas e frutas selvagens. Talvez fosse a maneira encontrada para não desmaiar de horror frente a destruição ao longo das terras ocidentais por onde passava. Pois enquanto avançava na antiga estrada pavimentada pelos seus ancestrais Milcah, presenciou a degradação de nosso mundo ao se deparar com o odor pútrido das ossadas de homens e dos animais abençoados. Os antigos vilarejos do simples Povo das Tendas que, por primaveras ali existiram desde o fim da descida da Água Súbita, foram derribados. Os bosques, os campos, as flores multicoloridas do Malgaroth, que ainda guardavam os resquícios da Acheron de antes da chegada dos Três Males e a Dissensão entre Vento e Sol, arrancados! E o Clahtemariaeh, com suas dunas de areias límpidas, havia praticamente desaparecido, dando lugar a uma planície de solo pedregoso e seco. Tudo resultado da ação demoníaca do mais terrível gigante de Celhin.

        E já próximo de seu destino avistou, no horizonte, o maior feito da criatura malévola: a outrora imponente muralha protetora da Cidade de Pedra, aos pedaços, sobre seu próprio fosso. No alto do monte Fatsiam, sobre o planalto, estava a cidadela tremar sem suas torres de vigia. E o Trufhontis que outrora descia dos altos da terra desde sua nascente ao norte, já não mais existia. Pois o ardil da grande Águia de Pedra foi tamanho que ela lançou grandes rochedos das montanhas Femiaren sobre as nascentes do filho do Acherontis. Maldito demônio! Minha glória será maior que o teu estrago, pois te derribarei como os homens do leste fizeram com os carvalhos do Makalabeth – era o que repetia baixinho, todas as vezes que se deparava com os estragos de Ninrim. Até atravessar o Maphion e estar às portas de Celhin.

        E por três luas a procurou. A cidade abandonada estava silente. Apenas o estalar de madeira era ouvido vindo dos Zigorath que queimavam em seus altos. Ressabiado, buscava nos céus e sobre as rochas os sinais de seu inimigo. Sem sucesso. O vento era seu único companheiro, e sibilava por entre as ruínas monolíticas da cidade dos altivos conquistadores rebeldes que por três gerações guerrearam contra Ziporih. Admirado com suas portentosas construções enquanto caminhava pelas trilhas graníticas, lembrou por um momento de sua mãe e as visões de sua infância no Makalabeth. Era assim que eu via, pois ela me mostrou. – pensou ele. Grandes esculturas representando os gigantes do Maphion podiam ser vistas na região central da cidade, onde outrora houvera a casa dos senhores. Nos anfiteatros, nas casas de banho… a glória de Celhin era representada em detalhes nos desenhos ainda coloridos registrados em suas paredes maciças. Por toda a cidade, viu o quanto aquele povo odioso era afeito às artes e orgulhoso de seus feitos. Mas nenhum sinal do gigante. Certamente é uma cilada – resmungou, na terceira noite, já cansado do marasmo e da busca em vão. Assim, dormiu.

        Até que subitamente foi levado. Aos altos subiu, e entre as garras rochosas se debateu por um tempo incontável. Frio, calor. Luz e escuridão. O tempo mudava e afetava seus ossos. E sua carne nua sofria com a fome de muitos dias enquanto – preso – voava freneticamente nos ares com a criatura ensandecida. Seu praguejar era ouvido apenas por nós, que em desespero voávamos juntas, atadas em seus longos cabelos escuros. Mas Illil em Bel havia ouvido o clamor de sua amada Selaim, que – enquanto ele lutava para sobreviver nos espaços escuros do céu – sacrificou seu próprio sangue nos bosques que um dia foram sua morada e de Zetricon, e a Senhora implorou ajuda ao Uno por amor ao Maioral caído. E então o Senhor da Cidade Abençoada enviou Gorath, que ordenou ao Vento que derribasse a Águia de Pedra dos céus. E assim o Vento fez, lançando-a violentamente dos limites do firmamento. E houve terremoto em Celhin. Tamanho foi o estrondo que as de nós que ficamos na terra pensávamos que aquilo era praga do Uno, e que seríamos tragadas pelas fendas que se abriram lançando para fora o enxofre da fúria de Fyr do Outro Mundo Inferior.

        Mas não. Não foi isso o que aconteceu. Pois de longe o vimos sobre a terra, caído. Por um tempo chamamos aflitas seu nome, sem sucesso. Até que ele despertou. Sem ordem ou pedido, como que por vontade própria. E então se levantou. Sua lâmina ainda estava em sua cintura desnuda, presa unicamente em uma tira de couro. É um sinal do Uno – teria pensado. E de pé buscou Ninrim com um olhar de louco. Porém não estava tomado pela Serva Loucura, pois aquele olhar era o mesmo de sua última noite em Thelim, quando quase desfigurou Sertravh e arrancou dentes de Sorbam e Selaim. Enfim! Aí está você, demônio do Gohin! – gritou, com voz de triunfo. E correu para o Zigorath próximo do horizonte onde estava a criatura agonizante, que gemia em grande voz. Agora Ninrim voava baixo por entre as ruínas e os Zigorath, e chorava. Pois parte de sua couraça de Pedra havia sido destruída. Com a ajuda de Bel, o último e mais demoníaco gigante dos conquistadores agora tinha sua fraqueza exposta.

        E ele soube aproveitar isso. Pois o ventre da longa cauda de seu inimigo era agora tenro. Sabiamente observou por três luas o gigante se cansar pouco a pouco, até fadigar, enquanto se fortificava comendo locustos e ervas que encontrava pelo campo. Por fim, o monstro ficou quieto sobre uma rocha alta e estreita, ao lado de um Zigorath ao leste. Aproveitando a oportunidade, subiu ele com cautela a escadarias do Zigorath, enquanto íamos apreensivas logo atrás. Finalmente se lançou como um tigre sobre a grande Águia de Pedra, que em um último esforço voou para o alto, lutando mais uma vez contra ao Vento que a empurrava com mão poderosa para a terra. Atônitas, ouvimos ele gritar, entre risadas e insultos, descendo as costas da criatura, sem aparente medo da morte. Muitas de nós não resistimos à força do Vento, e fomos lançadas com violência sobre o chão úmido do Maphion. Mas ele prevaleceu, pois sua determinação era maior que o medo de cumprir o Ciclo. E sobre as costas do gigante desesperado se foi para a sua última grande aventura.

        E as que de nós ficaram na terra, esperaram algum sinal. Em silêncio, olhávamos o céu escuro, mas apenas vimos a Lua e a estrelas. Até que em um rasante da Grande Águia veio ele com sua espada fincada sobre o ventre da cauda do monstro. E ambos se chocaram com o maior Zigorath no centro do Maphion, que desmoronou. A terra tremeu mais uma vez, e subitamente Bel se fez iluminada em alegria com a derrota do temido demônio do Gohin. Finalmente, ele havia provado ser digno de tal luta! Mas o que os povos não souberam à época é que se não fosse sua amada Selaim, ele não teria vencido a terrível batalha. Sem saber se havia perecido, esperamos sobre o seu corpo no chão, protegendo sua carne de ser devorada por outros insetos e animais, que se juntavam curiosos para ver a queda da grande Águia de Pedra sanguinária e o bravo Damonih. Assim, após duas luas desacordado, ele despertou. E como ficamos alegres! Aturdido, viu o cadáver do gigante sob parte do Zigorath desmoronado. Tiveste o teu destino. Agora terei eu o meu – disse, já próximo dele. E para se certificar, abriu de cima a baixo o ventre da criatura, drenando o sangue negro demoníaco, que encharcou a terra. E se retirou do lugar.

        Enquanto o bravo Damonih deixava Celhin, vimos um vulto o observando por entre as rochas que protegiam a cidade abandonada. Mas nada dissemos, afinal, ele não compreendia nosso falar. E assim, o seguimos por luas pela estrada que nos levou de volta à casa dos oraculares. Chegando lá, não recebeu paga alguma, e as discussões enfim foram encerradas a esse respeito. Ziporih estava salva de seus inimigos. Porém, ele se recusou a ajudar seus irmãos do Povo das Alturas, por crer que a tarefa já não era digna de sua honra como maior guerreiro vivo em Acheron, pois seu orgulho havia crescido até se tornar maior que sua própria essência. Mas nós fomos em seu lugar, e em meio aos muitos perigos de uma jornada tão longa, nossa marcha foi lembrada pelos homens e está registrada no Livro dos Dias.

        E o tempo passou. As palavras de Claekuth se cumpriram, mostrando a todos que Damonih perdera a essência do Herói que salvaria a Terra dos Carvalho da podridão do Caos em movimento, pois abandonara Thelim, levando consigo Selaim e sua filha ainda infante. E entre idas e vindas ao povo oracular, não mais ouviu-se falar dele e de sua família. Pois vivia errante pelos campos, tal como após a morte de seus pais.

        Mas apesar da queda de Damonih, a esperança permaneceu no coração dos homens. E cada casal que se apaixonava em pureza semelhante à de Illil e Zetricon se perguntava: serei eu o Herói? Pois o temor não havia desaparecido de nossas terras mesmo após a queda do Dragão Azul e a chegada da Água Súbita. Afinal, poderia a misteriosa maldade que assolou Acheron em sua juventude suscitar mais uma vez os Três Males na essência dos homens? Teria Draemoniach sucumbido de vez ao castigo do Uno?

      Tal dúvida habitou em toda a Terra dos Carvalhos, até que, passadas cinco primaveras de nosso retorno da casa de Sertravh e Vatrehuh, estávamos nós juntas a nossa amada Claekuth, ao redor do Oráculo de Mithmard em Thelim, vindas de nossas andanças do oriente. Após a ceia, apreciava ela costumeiramente a boa erva que Morjal tinha guardado em sua despensa. Todos fartos de tanto comer. Os bolos e os pães pretos de Thelim eram inconfundíveis! Não havia espaço em nós para mais uma migalha sequer! Ali, conversávamos para aplacar a saudade de muitas luas, e estávamos felizes por sua companhia.

-Pelo Uno! Desde que nossos povos se tornaram amigos… a cada primavera que passa, nunca um fio sequer de cabelo mudou em ti, Claekuth!

–Ah, minhas amigas! Teus elogios sempre são mais agradáveis que os dos reis, pois nunca buscam a lisonja. E o tempo que passaram auxiliando o Povo das Alturas nos levantes contra as criaturas abomináveis do leste me fizeram perceber o quanto vossa amizade é para mim benéfica! Pois alegria verdadeira é o que falta por essas terras em tempos de calmaria. Morjal anda por vezes rabugento como um bode, e não tenho tido tempo algum para cuidar do que importa. E se não for por mim, as coisas não andam nessa vila! Quanto à minha aparência, bem sabem a respeito das macieiras. Afinal, vocês nos ajudaram nisso!

– Realmente… bem sabemos. Vimos tudo acontecer, desde que os Milcah caíram e o Vento e o Sol batalharam entre si. Até que veio a Água Súbita dos céus de Bel e lavou a terra. E para guardar os últimos resquícios das bênçãos do Uno, caminhamos pela Malem contigo e Morjal até o Bosque Abençoado para trazê-las. Como tudo era diferente! Não sentes saudades do que perdemos, Claekuth?

        Enquanto tragava a fumaça com notas de canela e cravo que vinha do seu pequeno cachimbo, fitou algum ponto na penumbra do fim do dia e, em tom saudoso, respondeu:

– Poderia eu não desejar isso, minhas amigas? Já se passaram tantas primaveras! E ainda posso sentir o cheiro das orquídeas e rosas azuis do Bosque de Bel. Como toda Acheron era colorida, cintilante e perfumada! Não havia espaço em nossas essências para a tristeza e o medo! Mas então surgiram os Três Males, e veio o Período de Dissensão. Draemoniach… e com ele o Caos em movimento. Mas enfim, a Água Súbita varreu toda a terra. Porém, nada do que foi voltou a ser como antes. – Completou, suspirando.

        Por um momento, sua voz se fez trêmula a ponto de quase chorar. Nossa amiga, a bela mulher alta e de longos cabelos ruivos, finamente vestida naquela noite com a sua costumeira manta de linho trançada em fios verdes, azuis e amarelos, havia presenciado conosco as mudanças que ocorreram no mundo. Por isso sofria. E nós a acompanhamos em seu lamento silencioso. Afinal, conhecíamos muito bem a dor que sentira naquele instante. Pois é a do tipo que só se manifesta quando o que foi perdido é de valor incomensurável. – Está emocionada? – Indagamos.

– Sempre me emociono ao lembrar de tudo como era. E, mais ainda, por pensar que estivemos tão perto da segurança por crer que a predição do Uno havia se cumprido em Damonih. Era nossa salvaguarda de que se o Mal ressurgisse, teríamos o Herói já ao nosso lado! Uma pena que tão valente guerreiro sucumbiu a si mesmo…

-Sim, e nós vimos como ele lutou contra Ninrim. Certamente foi abençoado pelo Uno, pois o Vento o auxiliou. Uma pena realmente Damonih se perder no esquecimento! Era o maior dos guerreiros! Lutou contra a Águia de Pedra, nu! E com apenas uma lâmina!

-Vamos esquecê-lo, a julgar pelo seu comportamento destrutivo, já deve ter cumprido o Ciclo. Espero que ao menos Selaim e sua filha estejam bem. E o que é importante sobre esse assunto é continuar meus estudos da predição a respeito do Herói. Por agora meu dom da Visão tem recaído sobre a recém-chegada Ranemann. Que tem me cativado, pois é muito aplicada nas coisas do Uno.

-Sim, pelo que vimos… provavelmente será uma grande de seu tempo. Sua delicada determinação é adorável! E tem apreço pela poesia. Fica horas ao lado do pequeno Melikae, ouvindo suas canções! Aliás, o menino é um prodígio, não é? Sua voz é doce como as das cotovias do Malgaroth e sua vivacidade, contagiante!

-Realmente. Ele possui uma essência singular e muita habilidade com as palavras, apesar da pouca idade. De todos os nobres de Ziporih, enviados por Notrum esses tempos para educarmos, é o melhor… sem sombra de dúvida. Mal aprendeu a ler e escrever e já anota versos e cria historietas. E passa um bom tempo tocando a pequena castina que lhe dei de presente. Produz belas melodias, até! Mas não é muito afeito às coisas do Uno. E é um pouco ranzinza, porém possui um caráter magnético. E tanto Ranemann quanto Atelith disputam sua atenção! Imaginem, as infantes! Ainda nem regidas pelas regras das mulheres o são! – Gargalhou.

-Observa eles, minha amiga. Quem sabe a pureza infantil não produz o Amor que esperamos para salvaguardar Acheron? Em meio a tantas consultas de fidalgos, nobres e guerreiros de toda a terra… quem sabe se não é de Thelim que virá o maior dos presentes do Uno para os homens?

-Acham que não penso nisso?! Em minhas preces, peço todos os dias a graça de reconhecer o Herói! E quão honrada me tornaria, se de nossa humilde vila ele saísse! Apesar de Ranemann ter vindo do Povo das Tendas, ela é tão Vilca quanto nós! Afinal, nossos povos são irmãos e Lemael nosso protetor! Mas a respeito da predição, ainda preciso me dedicar mais. E minhas últimas visões não parecem fazer sentido. Entretanto, as habilidades de Ranemann são promissoras. Atelith, minha filha! Peça de seu pai mais um punhado de ervas, que a que tenho já acabou! E vá se vestir, menina! – Gritou, se levantando, ao ver a pequena garota correr nua com seus brinquedos de madeira pela estreita varanda dos fundos da casa, próxima dos poços oraculares.

        De súbito, quando sentou no pequeno banco de madeira, tornou a ver diante de seus olhos as breves cenas em rompantes de segundos. Enquanto falava novamente de Ranemann, viu mais uma vez uma mulher ofegante e com o rosto marcado caminhando sobre o chão úmido de florestas pútridas. Tatuagens sinuosas em corpos desconhecidos e fogueiras surgiam em meio ao sangue derramado sobre águas revoltas de ondas gigantes, junto a cadáveres despedaçados empilhados sobre dunas de areia branca que se misturavam ao barulho da água carmesim com gritos e o chocar de espadas…

-Claekuth?! Não ouviste?! Estamos falando contigo…

        Assustada, acordou do transe. – Aconteceu de novo – disse. E nos contou o que havia visto.

– Mui admirável é a visão! Tu, que tens o dom de decifrar os sonhos e os avisos do Uno, deve se dedicar em entendê-la! Não seria algo a respeito de Atelith? Afinal, ela tem o sangue oracular!

– Mas certamente não possui o dom da Visão, infelizmente. Pois é bem interessada nas coisas do Uno. Uma pena! Apesar de fruto dos constantes deslizes de Morjal… sim, aquele cão está sempre no cio, e não cansa de se deitar com qualquer uma que apareça em nosso vilarejo! Mas amei tanto Atelith quando a vi em sonhos pela primeira vez! Seus olhos esbugalhados pediam socorro em meio à lama suja em que foi abandonada, próximo ao nosso chiqueiro. E aquela marca não mão esquerda perturbou minhas visões por um bom tempo! Não pude deixar de acolhê-la, para o espanto de meu garanhão petulante! Agora, a amo tanto ou mais que ele próprio! – Respondeu, com discreta ironia.

– Seja mais amena, Claekuth. Estão juntos há muitas primaveras. E sabes bem como são os machos de tua raça.

– Bem sei! As fêmeas de teu povo… essas sim, são as afortunadas! Ah ah! Pois, tantos machos as disputam para formar povoados, e depois eles são descartados! Quisera eu ser disputada e poder descartar depois todos os homens! Os homens sempre tiveram medo de mim. E o único destemido foi Morjal, e nunca consegui me livrar dele, pois meu amor pelo grande desavergonhado é sempre maior que a vontade de enviá-lo ao exílio no leste!

– Do que estão falando para rir tão alto? – da pequena varanda, olhava o homem corpulento de grande barba loira que ia até o meio do peito peludo. Ao lado da pequena Atelith, caminhou até onde estávamos.

-Morjal! Quase não o reconhecemos! Hoje a noite não tem bom luar, e essa barba… te deixou irreconhecível – falamos, um tanto desconcertadas.

– Minhas amigas! – disse ele, se aproximando do poço de Mithmard – Não as vejo há tempos! Claekuth, por que não avisou que hoje teríamos tão agradável visita? Eu teria preparado uma ceia digna. Atelith, entregue à sua mãe o que ela pediu! E tu, Claekuth, o que te fazes gargalhar tão alto com nossas amigas nessa noite fria?

A oracular nada disse. Apenas o encarou com um sorriso. Então, a menina estendeu a mão e deu o punhado de ervas secas a ela. Sorrindo, a abraçou, de olhos fechados. – Mamãe! Me desculpe! Já vesti o casaco… papai me ajudou!

-Obrigada, minha filha – Claekuth retribuiu o abraço, afagando-a – não sei de onde tira essa ideia de andar desnuda, o inverno está prestes a chegar. As águas dos poços estão quase congelando! E nevou um pouco agora! Se adoecer, teremos problemas para conseguir remédios, pois o inverno dá sinais de que será rigoroso!

– Estava brincando com Melikae. Brincávamos de frases e versos sobre as Sirahih. Acredita que vimos duas hoje no riacho?!

-Menina! Não é de bons modos estar nua na frente de amiguinhos! Da próxima vez, ficarás de castigo! E sobre as Sirahih, cuidado para não se aproximarem muito quando aparecem. Pois costumam levar a essência dos puros para estar para sempre com elas nas águas! – disse, em tom professoral – Morjal, onde está indo? Leve Atelith para a cama…

-Vou buscar minha mais nova invenção e volto num instante. Atelith, venha, já é hora de dormir.

        E foram os dois.

        Continua…