As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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–Meu senhor, os desgraçados tiveram o que mereciam! Seus corpos estão espalhados por todos os Refúgios e suas cabeças estão em nossas fronteiras.

–Não era essa a minha vontade, mas em períodos de turbulência precisamos de unidade. Já não me basta esses malditos seres grotescos perseguindo nosso povo! As casas de Drotram e Filistio me trouxeram muita aflição! Não faltaram avisos para se arrependerem. É realmente uma pena que não atenderam aos meus apelos…

–Não procure complacência onde nunca deveria haver – disse Gehamih, num esforço para consolar a essência de Vatrehuh – a rebelião foi finalmente contida…e eles…

–Não me diga mais nada a respeito! – Gritou Vatrehuh, com o semblante lívido – fizeste o necessário. Agora retira-te!

O general, desconsertado, dando meia volta, retirou-se do salão. Ranemann, ao lado do senhor do Povo das Árvores, o observava de braços cruzados. Se aproximando e tomando sua mão, disse:

–Creio que tenha sido a melhor decisão, meu amigo. Agora podes organizar com tranquilidade a resistência contra os homens degenerados. Aqueles malditos! Quase dizimaram o maior dos Refúgios há três luas. E tudo o que não precisávamos era o agravo dessa ridícula rebelião. Gehamih tem razão… não te culpes, qualquer governante em teu lugar faria o mesmo!

–A culpa sempre me perseguirá, minha querida. Eu amava Drotram e Filistio, pois muito me protegeram ao lado de Morjal na minha juventude. Mas Sertravh era meu irmão! E agora, por minha decisão, sua descendência foi extinta. Que o Uno tenha piedade da minha essência por esses crimes! Mas foi necessário. E se não fosse Zitri naquele dia em que fiscalizava a vigilância das fronteiras, eu teria sucumbido à emboscada de Jigfrah.

–Sempre lhe disse para confiar em Zitri. Ele é o homem mais íntegro que conheço. Aceitou essa terrível demanda por amor a Melikae, seu amigo, e jamais se uniria a alguém em quem não confiasse plenamente. Tome, beba um pouco de vinho…

–Realmente, ainda bem que agora temos os dois liderando a Patrulha ao lado de Uhtyl e Gehamih. Eles tem demonstrado grande valor! – Vatrehuh tomou então um bom gole da bebida – já te disse outras vezes… tenho me surpreendido com a atitude do tremar e sua consorte, afinal, não esperava nada de bom de Ziporih, bem como do sangue de Damonih.

–Não deverias te surpreender a respeito de Zitri. Quanto a Sabretil, bom… ela é sua consorte. E isso, para mim, já diz muito a seu respeito.

–Sim, mas Damonih fez muito malfazejo a Selaim e renunciou tudo o que de glorioso havia sido predito para si. E a troco de quê? Orgulho! Ele e meu irmão competiam por qualquer coisa. Até a própria Selaim, por um tempo, tornou-se objeto de disputas!

–Não sei muito a respeito do Herói caído, pois ainda existe muito amargor nesse assunto em Thelim e os Oraculares não comentam a respeito. Mas ele de fato tornou-se uma grande decepção para todos. E onde existe disputa não há espaço para o Amor de Illil e Zetricon. Disso eu sei! Pois é dito que tal Amor surge apenas em meio à pureza…

–Certamente, minha cara. E eu, ainda em minha meninice de doze primaveras, também amei a beleza de Selaim. E por ela teria dado minha vida! Como qualquer homem que a conheceu. Não compreendes? Muitas intrigas cercaram todos em torno do amor a Selaim. Como Claekuth não percebeu que disso não sairia boa coisa? Damonih, cada vez mais orgulhoso por seus grandes feitos se afastou da predição. Quando finalmente impediu Sertravh de caçar Ninrim1 naquela luta violenta perante todos em Thelim…Sim, ali vi que havia sido consumido pela vaidade – disse ele pausadamente enquanto olhava as pedras preciosas que adornavam a taça vazia.

–E Sabretil?

–Ela deve ter vindo depois. Pois ainda não existia quando tudo aconteceu. Mas aquela era outra época. Os visgos e musgos ainda eram mui revigorantes e traziam saúde e força para todos. Morjal e meu irmão tinham muitos negócios sobre isso! Mas quando a podridão do Caos em movimento chegou em nossas terras, tudo mudou rapidamente. Nosso povo diminuiu e adoeceu. As sequoias estão também rareando – suspirou – e assim estamos vivendo, em suas copas e no interior de seus troncos e raízes. Nosso povo é fraco. Temo que o pouco de poder que ainda detenho de Thelim não seja suficiente contra o mal que se aproxima. Porém graças ao Uno agora tenho você, Atelith e Zitri. E ainda Sabretil! Pois não espero boa resposta de Notrum, Lemael e Morjal. Creio que devamos nos arranjar por nós mesmos. Quem sabe temos chance contra os bárbaros do leste?

–Meu senhor, já que tocaste em tal assunto, e agora que estamos finalmente a sós, tenho que te perguntar…

–Pergunte. És minha amiga. – Vatrehuh sentou-se enquanto sorvia outra taça da bebida.

–Como consegues falar comigo através do olhar? Quero dizer, isso que fazes… é algo que somente os grandes doutos do Dom da Visão são capazes! Eu mesma, com todo o meu treinamento em Thelim, levei anos para aperfeiçoar tal poder. Além do mais, algumas vezes me alertaste de minha irmã Atelith e Jotuh falando em minha mente. Afinal, também tens poderes para ouvir o pensamento dos incapazes no Dom da Visão?

Em silêncio, o homem corpulento observou a jovem que, intrigada, manteve-se de pé. E segurando o odre, bebeu todo resto do vinho de uma vez. Levantando-se, concentrado, continuou fitando-a, quando finalmente falou à sua mente:

“Houve um tempo em que estive aos pés dos Oraculares. E Morjal me assistia de perto juntamente a meu irmão Sertravh. Sim, o Guardador das Maçãs muitas coisas a mim ensinou… até o que não tinha em si. Por isso, meu Dom não é perfeito. E ouço e falo com muito esforço e em rompantes acontece… como agora. E até posso ouvir por vezes o que os incapazes dizem em pensamento. Porém sempre me pergunto se não é delírio o que ouço dos que nada podem dizer através do olhar.”

Ranemann, admirada, sentou-se no chão.

–Certamente o audaz Morjal teve bons motivos para ensinar a um estranho os costumes de nosso povo. Bem vejo que ele viu o fim desde o princípio e hoje estamos aqui… conversando a esse respeito. Algo me diz que não é por acaso que o Uno uniu todos nós aqui, nos extremos de Acheron. Curioso como o Senhor da Cidade Abençoada age!

–Também por vezes me encontro pensando sobre esse assunto. E o mais intrigante é que meu irmão era o preferido dele. Enquanto nosso povo jazia em confusão, Sertravh e Damonih serviam Thelim. E eu nada podia fazer por ser muito jovem, mas Morjal cuidou de mim. E mesmo apesar de, no fim, tanto Damonih quanto meu irmão não corresponderem aos anseios dos Oraculares, ainda assim ele não me abandonou. O que para mim é estranho. Pois é como se eu tivesse sido “preparado”.

–Os Oraculares tem maneiras curiosas no proceder. Às vezes tenho a impressão de que eles manipulam nossas vidas em prol do que acreditam ser o bem maior. Desde jovem tenho ouvido de Claekuth predições sobre mim e o Amor de Illil. Bem, por conta disso me tornei estéril e existem rusgas entre mim e Atelith, a quem amo. E estou agora há muitas luas de casa… às portas do Grande Mar. À beira de uma guerra! E meu Amor da predição, Melikae… pereceu. Vê essa cicatriz?  – Apontou ela para o rosto, emocionada – É tudo o que tenho para mostrar sobre as predições de minha mãe. Até a minha beleza de mim foi tirada, além do meu único amor. A demanda está me consumindo, Vatrehuh. E creio que muito em breve serei completamente tragada por ela.

Vatrehuh então abraçou Ranemann. Enternecido pelo seu choro, afagou-lhe os cabelos enquanto olhava a luz amarela imperiosa que invadia timidamente o salão através de suas janelas. Sentia naquele momento o gosto amargo da derrota em sua garganta ao lembrar-se da pequenez de seus exércitos frente a fúria dos homens degenerados que nas últimas luas assassinaram muitos dos seus. Lembrou-se do fracasso de Sertravh e do orgulho de Damonih. A praga que seu irmão havia lançado sobre o  grande guerreiro teria finalmente se voltado contra a sua casa?

E saíram os dois para visitar os estábulos.

Continua…


1- Ao lado de seu irmão Bathim, os últimos conquistadores do Maphion. Dizem os Antigos que seus outros irmãos Tahim, Jethim e Pathim fugiram da fúria de Damonih e se refugiaram no leste, onde se transformaram nos Zamoth, comandantes dos exércitos do Caos em movimento na Primeira Grande Guerra da Era do Declínio, ao lado da Serva Loucura