As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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Os galhos retorcidos recobriam o céu como redes de ferro impedindo a luz de se deitar no horizonte. Assim, no escuro, a caravana ia após dias de viagem no interior dos domínios de ódio de Draemoniach. E os olhos vidrados deles carregavam o medo que ia adiante e se avolumava com a visão do mal perpétuo do lugar.
“-Bem-vindo ao nosso lar. Aqui estamos te observando. Essa mulher… ela possui o amor da maior inimiga de nosso Senhor.”
A voz dizia ao pensamento de Mafura e Jotih a respeito de Sabretil.
“-Descobri que ela é filha do herói caído. Mas o que isso tem a ver com a consorte de Zetricon?”
“-Tolo. Selaim ofereceu seu sangue na Pira de Illil, e esse amor não pode crescer a ponto de atrapalhar os planos de nosso Senhor. Ele deve ser destruído. Atentem, homens de tristezas… pois essa é a missão dada a vós por nosso Senhor. Escaparam das mãos dos bárbaros enviados como vingança de sua falha quanto as Vilca, mas dessa vez não haverá perdão. Nós mesmas cuidaremos de vós. ”
Enquanto caminhavam pela trilha na Floresta Escura, as árvores espiãs falavam aos homens do Povo das Alturas. Em silêncio, conversavam sem que Sabretil e Zitri soubessem. E os micostos, enfurecidos pela presença deles, insistiam em picá-los.
“-Quantos dias mais vamos caminhar nesse lugar pútrido até ver mais uma vez a luz do Sol? A presença do mal aqui é tamanha que oprime minha essência e estou a ponto de desistir.” Disse Sabretil.
“-Apressemos nosso passo. Sinto que somos observados pelas criaturas desse lugar horrendo.” Disse Zitri.
“-Perdemos a noção de tarde e manhã e se não fosse a tua pedra guia não enxergaríamos um palmo adiante do nariz. Mas quando cruzamos com os homens do leste esse caminho, não estava tão escuro como agora. Parece que o mal aqui se avolumou.” Disse Mafura, enquanto matava micostos com as mãos.
“-Meu pai contava a respeito das coisas horrendas que aconteceram aqui. Os animais abençoados juntamente com as árvores se tornaram odiosos e mataram os homens que vinham em busca de descanso e das macieiras. Dizem que elas foram levadas de volta a Bel. Aliás, é dito que Morjal secretamente levou algumas para Thelim e delas tira juntamente com Claekuth os frutos que doam a eles juventude. Ouça! Os sussurros… parece barulho de conversas. Ou seriam esses malditos micostos que agridem nossa pele?” Disse Sabretil, descendo a trilha.
“-Os oraculares provavelmente vivem em Acheron desde a sua juventude. Posso afirmar com certa medida de certeza, apesar de nunca terem sanado minha dúvida a esse respeito. Mas não creio que seja bom isso ser conhecido por todos. Thelim seria destruída e o Caos em movimento certamente se apoderaria das maçãs. Que destino funesto para a Terra dos Carvalhos!”
Acompanhando Sabretil enquanto segurava em sua mão, Zitri desceu o declive que levava à clareira. Mafura e Jotih seguiam atrás, desconfiados. Os animais iam nervosos e relutantes sendo guiados pelos jovens. Os cipós e os galhos secos naquele trecho da trilha eram muito espessos, formando um véu baixo e impedindo que montassem no Crafaein.
“-Veja, o grande tronco derribado. Vamos descansar um pouco aqui. Faz horas que estamos caminhando. Amarrem os animais e peguem alguns galhos que farei uma fogueira. Mafura, traga alguma carne. Temos que comê-las pois já estão estragando. E você, minha dama… fique perto de mim, e descansemos um pouco para seguir viagem.”
***
Registrou o escriba1…
Em meus sonhos a vi por entre as brumas do Jardim dos Apaixonados2. Vestida de flores e vindo com seus olhos graúdos azuis, sorrindo para minha essência. Sobre seus cabelos vermelhos como o fogo consumidor do trono do Uno, uma guirlanda colorida de flores colhidas na aurora do Malgaroth. Sua voz silente era cálida e aqueceu meu pensamento, me acalentando e consolando. Sim, eu, Zitri de Ziporih das fileiras dos Tremares, toquei em sua mão doce como o mel e macia como o lombo dos cordeiros dos Vilca enquanto as palavras penetravam minha mente, dizendo:
“-Atenta pequeno homem, que o teu amor por ela cristalizou a essência de ambos e já não podem viver um sem o outro. O que esperais? Que o inverno termine e teus ossos sequem como a neve que toma os picos das Femiaren? Atenta para tal decisão, pois poderá vir o tempo em que não te alegrarás por tua escolha pela solitude, e dirás que não tens prazer nos dias que virão sobre ti. Pois os teus dias já foram contados pelo Uno e os Maiorais, e coisas maiores que a essência pode esquadrinhar foram guardadas para todo aquele que fez o que é reto perante o malion do seu Juízo até que se cumpra o Ciclo. Protege-a como a tua carne, pois grandes feitos estão reservados para minha amada, a filha do meu amado Damonih.”
E em minha pequenez temi e tremi, pois o sonho era mui impressionante. E em minhas visões naquela noite de outono na Floresta Escura, eu, Zitri de Ziporih, ouvi a voz de Illil, a consorte do Maioral Zetricon ressoar como os címbalos da Ordem do Templo em minha essência. Pois estava eu com ela entre flores e pequenos pássaros quando me disse:
“-A demanda é de Sabretil. Pois dos altos de Bel veio a ordem do Uno: “isso te passará.” Sim, mago obstinado… atenta para o último aviso sobre o que tens de fazer a respeito do que é dito a ti. O teste foi feito. E dado como de bom grado. Não tocaste nela. Como meu amado assim o fez enquanto cantava meu lamento de redenção me escondendo entre os grãos de areia do outrora ressequido Malgaroth. O Uno viu teu proceder e muito se agradou da tua essência reta. Recebe assim o prêmio e liberta-te do jugo que te aprisiona. Leva minha amada, filha do meu amado, para o seu destino e o Uno vos recompensará.”
E, ao ouvir a voz penetrar os recônditos dos meus desejos mais secretos, em muito me admirei do proceder do Uno e dos Maiorais sobre o destino dos homens que vivem na Terra dos Carvalhos. Pois eu, Zitri, em minhas poucas primaveras fui dado aos senhores do Templo em vida de devoção ao Uno e guerras nas fileiras dos Tremares. E mulher jurei não conhecer para que meu destino me fosse dado através da vontade do Uno. E, por cumprir assim o meu juramento, em meus sonhos tive a resposta do Senhor da Cidade Abençoada. E a própria Illil deixou sua câmara nos Palácios de Bel para ter comigo em essência. E muito admirado disse:
“-Ah, minha Senhora! Como pode eu, tão indigno homem que sou, receber o maior dos desejos de minha essência e coração? O que fiz para merecer do Uno tamanha bondade? Pois nem em meus mais profundos sonhos pude crer que assim teria dos altos resposta para tal anseio. Andei afastado dos caminhos de nosso Pai, e muitas vezes ao longo da demanda não tornei meus pensamentos a Ele. Por isso digo… como sou afortunado! Pois em minha angústia o Uno ouviu meu coração e te enviou como arauto da sua vontade. Como nos tempos heroicos! Onde o Uno e os seus falavam aos homens de sangue bom face a face!”
“-Cuidado com o que entendes sobre a resposta do Uno, pequeno homem. E cuidado com a dádiva dada a ti, pois agora a tua responsabilidade sobre a demanda maior é, ainda que ela não seja mais tua.”
E as palavras da Senhora de Zetricon me emudeceram. Pois meus pensamentos se turbaram a respeito da demanda. Perturbado, disse:
“-Para onde devo levar minha amada?”
***
“-Acorde, meu amado. Ouvi um barulho vindo das árvores adiante.”
Sabretil de pé, tentava acordar o mago. Ressabiada e sem sucesso, resolveu ir sozinha averiguar. Enquanto todos dormiam, a destemida moça se pôs a embrenhar-se no emaranhado de galhos próximos de onde vinham os gemidos. A escuridão seguia imperiosa na clareira onde haviam descansado por algumas horas e ela mal podia ver adiante de seus olhos. Mas suas tatuagens azuis brilhavam na escuridão rompendo assim palidamente o negror do lugar. Enquanto olhava os micostos que pairavam sobre sua cabeça, sentiu seu pé sendo puxado por algo abruptamente. Suas mãos, pescoço, olhos e braços foram então amarrados firmemente pelos cipós das árvores arrastando-a.
“-Socorro! Socorro!” Gritava a moça em desespero. Os galhos firmemente a ergueram para o alto.
Os animais assustados falaram em resposta a Sabretil. Tal alvoroço acordou todos na clareira. Zitri, em um sobressalto, despertou e se levantando saiu em sua busca.
“-Sabretil! Onde estais!? Seguindo o barulho, o mago foi até o local onde ela estava suspensa pelos galhos que tentavam esmagá-la.
“-Acalma-te! Que já te desço daí!
Enquanto tentava em vão ferir os galhos com suas lâminas, Zitri foi derrubado pelos cipós. Também suspenso pelos pés, foi balançado violentamente contra os troncos, batendo assim sua cabeça e desmaiando.
Mafura e Jotih, despertos, observavam os dois jovens presos pela maldade das árvores.
“-Enfim, vocês os aprisionaram.”
“-Sua inutilidade ainda levará vocês a caminho funesto, homens de tristezas. Nosso Senhor não dorme!”
“Mafura! Jotih! Me ajudem!” Sabretil desesperada gritava. Porém os dois nada faziam para ajudá-la. Foi quando o grande Crafaein com sua maciça cabeça derrubou os dois e enfurecido com sua grande boca a agarrou, trazendo-a para o chão. A criatura rompeu os poderosos galhos com suas garras, assim salvando-a. Zitri desmaiado também foi puxado pelo animal.
“-Zitri! Meu amado! Acorda! Andem, seus covardes! Me ajudem com ele!
Zitri, de olhos fechados não esboçava reação.
Continua…
1- Tal qual foi registrado no Livro dos Dias, a visão de Zitri foi fragmentada e o relato que se tem documentado se dá a partir de versões anteriores da tradição oral contadas em livros do cancioneiro do povo de Ziporih.
2-Também conhecido como Jardim de Illil e Zetricon. Dizem os Antigos que o lugar surgiu a partir do amor entre Zetricon e Illil quando a esposa do quase meio de Orath em seu lamento atraiu a majestosa águia de prata portadora dos reflexos das Pilastras da Alegria de seu irmão Orath.