As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
Para ler os capítulos anteriores, clique aqui.
Dizei, desgraçado. “-Por que retribuíste o bem que te fizemos com tamanho mal? Não bastava apenas ter nos enganado com boas palavras e seguindo assim o teu caminho?”
Enquanto cuspia na face do homem, Zitri desferiu sua pesada mão sobre ele.
“-É pouco o que te acontecerá quando arrancar teus olhos…pois ainda assim não será o suficiente. Tuas mãos e teus pés serão lançados fora também. Ah, sim… vais sofrer lentamente para receber como paga pelo que fizeste ao meu pai!” Disse Sabretil.
“-Podem arrancar minha carne…tirar fora minha língua! Mas nada do que fizerem com meu corpo mudará o destino. Este mundo jaz nas mãos do meu Senhor. Como os meus que mataste existem muitos se reunindo. Vocês, homens do ocidente decadente, serão exterminados… ”
Com sua lâmina, Sabretil perfurou os olhos do corpulento bárbaro, que amarrado de joelhos foi empurrado ao chão. Seus gritos de dor podiam ser ouvidos por todos os arredores do campo colorido por pássaros e borboletas primaveris. Mafura e Jotih, no interior da jaula observavam horrorizados a menina cortar as orelhas do homem enquanto ele se debatia. Se abaixando, Zitri golpeou sua testa com o punho. E ele aturdido e com o rosto ensanguentado em tom irônico, disse:
“-Isso! Profanem meu corpo! Tu, mago… incineraste os meus… mas os teus não escaparão da fúria do meu Senhor. A essa altura mais de dez mil de nós já estão às portas da última cidade de pedra. Vocês se orgulham de adorarem o Uno e seus Filhos… mas tua raça é fraca e decadente. E meu povo é forte… e chegará o momento de vocês provarem de nossa força. Assim, uma nova era surgirá em Acheron.”
“-Dizei, herege abominável… quem está por trás de tua maldade? É o Caos em movimento? É algum Deus degenerado? Anda, fala! Assim tua morte será rápida e o teu sofrimento menor!” Gritou Zitri.
O bárbaro nada respondia e em meio a risadas se contorcia na grama. Sabretil, impaciente, cortou a garganta dele. O sague escorreu abundante, manchando o chão úmido dos campos do Makalabeth. Assim, a vingança de Zitri e Sabretil chegou ao fim. Damonih finalmente podia se lavar em paz nas águas do Acherontis.
“-Inútil. Mas agora sabemos aquilo que já suspeitava… esses maliciosos homens do leste estão mesmo se reunindo para guerrear. Tudo o que vi era obra deles e de forças malévolas por trás.”
“-A única cidade de pedra habitada por homens para os lados do Clahtemariaeh é Ziporih. Os Vilca vivem em tendas ao redor do Palácio dos Três Censores. Thelim é uma pequena vila. E as Terras Proibidas foram abandonadas pelos conquistadores há muito tempo. Sim, meu povo corre grande perigo, menina. Temos que avisá-los e rápido. Esses cavalos e o Crafaein nos ajudarão nisso…
“-Tirai nos daqui, por favor.” Mafura – com suas mãos estendidas através das grades – gritou. “-Faz dias que estamos presos… nus, e comendo essa carne cheia de moscas e micostos. Ajuda-nos!” Disse Jotih.
Então Sabretil libertou os dois homens. Esquálidos e sujos, saíram assustados da prisão. E enquanto Zitri reunia os corpos carbonizados juntamente com o degolado, Mafura falou com voz embargada:
“-Somos muito gratos pelo que fizeram por nós. Esses selvagens nos sequestraram enquanto estávamos distraídos procurando alimento nos limites de nossas terras. Trouxeram também nossos Crafaeins, e algumas lâminas. Abusaram de nossos corpos e ameaçaram nossas vidas diariamente com insultos. Que bom que puderam vingar também os nossos que pereceram pagando o mal com o mal!
“-Vistam suas roupas. Não é bom que andem nus até chegarmos em Ziporih, pois podem adoecer no frio. Mas, digam-me… como se chamam…e de onde são?” Perguntou Sabretil.
“-Somos do Povo das Árvores. Ou das Alturas, como alguns dizem. Me chamo Jotih e esse é meu irmão Mafura. Me perdoe, moça… por estarmos assim, em vergonhosa aparência. Mas os bárbaros do leste são deveras violentos e tiraram nossas roupas. Eles têm insistido em assaltar nosso povo em levantes furtivos e isso tem se intensificado há meses, pois em grande número têm atravessado nossa planície, vindo das ilhas do Grande Mar. Se nossa habitação não fosse nos altos das Sequoias Colossais, já teríamos sucumbido aos seus ataques!”
“-Aqui está. Estavam dentro do cesto do cavalo. Tomem. Não me sinto confortável em mostrarem sua nudez à minha dama. Se vistam logo!” Disse Zitri, após realizar preces em favor dos bárbaros mortos.
Ruborizada com as palavras do mago, Sabretil subiu no cavalo. Os dias que passaram em busca da caravana ainda aproximou mais sua essência da dele. A maneira a qual ele a tratava intrigava Sabretil. Pois apesar das palavras doces e por vezes apaixonadas – desde que partiram de seu lar – não havia sequer tocado seus lábios nos dela. O que será que se passava na mente do mago monástico de Ziporih? Afinal, como suas atitudes poderiam destoar tanto de suas palavras? A vergonha de Sabretil sobre tal assunto a impedia de questionar a respeito. Mas tudo o que mais esperava por todos aqueles dias era estar com seu amado e viver grandes aventuras. “Bom, estamos metidos em grandes negócios. Agora só falta ele me amar como tem demonstrado em palavras.” Pensara diversas vezes enquanto caminhavam juntos.
E vestidos e acomodados sobre o grande Crafaein, Mafura e Jotih então se juntaram a Sabretil e Zitri que cavalgando lentamente tomaram o rumo de Ziporih ao oeste. A viagem duraria pelo menos vinte luas dali.
“-Vamos seguir em frente até perto do fim do dia. E depois montaremos acampamento. Que o Uno nos proteja. “ Disse Zitri.
***
“-Tome, acho que está bom.”
Zitri deu um bocado de carne assada para Sabretil. Ao redor da fogueira, estavam os quatro jovens descansando após o longo dia de viagem em um pequeno bosque ao largo da estrada. O Makalabeth era repleto deles em meio aos seus campos coloridos pela primavera e o frio daquela noite não era intenso. Relaxados, comiam e se aqueciam no fogo enquanto conversavam.
“-Temos uma longa jornada até Ziporih. Me preocupa o que o maldito bárbaro disse sobre estarem prestes a atacá-la, por isso temos que apertar o passo. A julgar pelo que vimos, Sabretil… uma grande guerra está prestes a acontecer.” Disse Zitri.
“-Tu és da terra dos cavaleiros? Bom, teu povo é guerreiro e as histórias a respeito de sua força são notórias por toda Acheron! Os homens do leste detém um conhecimento sobre o ferro superior aos do meu pequeno povo. E o que fizemos por todo esse tempo foi nos defender… nos escondendo nas grandes árvores. Mas o povo da cidade de pedra possui habilidade superior na guerra e nas armas. Pelo menos é o que é dito. Poderíamos pedir ajuda deles!” Falou Jotih.
“-Nossos exércitos estão debilitados e não oferecerão grande resistência contra dez mil homens. Intrigas entre a Ordem do Templo e o governo enfraqueceram nossas defesas por anos. Temo em chegarmos tarde demais para que algo possa ser feito. Se pudéssemos reunir forças junto aos outros povos, talvez tivéssemos chance, pois não vejo com bons olhos o destino do mundo estar unicamente nas mãos dos tremares.” Retrucou Zitri, pensativo.
“-Nosso tio Vatrehuh é o líder de nosso povo. E sabiamente tem resistido aos ataques dos bárbaros. Mas eles têm manipulado o poder negro do Caos em movimento. E por isso sua força em muito foi aumentada. Dizem que aprenderam a lidar com fogo e os outros elementos. Quanto a isso…vimos diversas vezes queimarem árvores com setas de fogo e raio. Os musgos que nos dão alimento escassearam por conta disso e nosso povo diminuiu e para sobrevivermos nos recolhemos nos altos das sequoias. Vejo que Acheron jaz à beira de um destino escuro. Agora que nos é dado tal oportunidade temos que arquitetar uma maneira de nos unirmos contra a ameaça do mal! Creio que deveríamos ir até seu povo pedir ajuda.”
Enquanto Mafura refletia em voz alta, Zitri observava o farfalhar das folhas das antigas árvores. O vento delicado que agitava seus galhos produzia um canto ininteligível pois sua sabedoria milenar estava – desde a queda de Draemoniach – recolhida em sua seiva e já não se comunicavam mais com os homens. Sabedor disso, o mago não insistiu em silêncio buscar respostas delas para seus anseios. Estava sozinho. Sem a orientação do Uno e de suas criaturas abençoadas, pois seu amor por Sabretil crescera a ponto de não ouvir mais sua voz claramente.
“- Houve um tempo em que as árvores ancestrais falariam de suas preocupações para nós. Nartreg1 as ouviu e isso mudou tudo em suas demandas contra os conquistadores de Celhin. Agora são apenas silêncio. Me entristeço em perceber que nosso mundo é agora bem diferente dos tempos heroicos de nossos ancestrais. ” Ponderou Zitri, deitando-se.
“-Meu pai me contava histórias sobre como as árvores eram amigas dos homens. E como os animais também falavam que o sangue negro de Draemoniach as corrompeu imputando sobre elas o medo. Ele e Morjal eram excelentes em contar relatos incríveis sobre o passado glorioso de nosso mundo. Penso que, conhecendo o velho Damonih… deve ele estar admirado ao lado de Fyr, achando o quão interessante será contar histórias do passado de Acheron para os que junto deles habitam em seus domínios.
“-Damonih? O grande Damonih de Thelim?” Disse Jotih, arregalando os olhos.
“-Não, não. Apesar do meu pai ter amigos lá… sempre habitou no Malgaroth. Mas sim, ele foi um grande guerreiro e por um tempo foi defensor do Povo Oracular. Porém falhou miseravelmente em manter-se são.”
Zitri ouvia atentamente a menina falar do pai. Uma pena que a honra de Damonih tivesse sucumbido à bebida e a vida dissoluta. Sabretil sempre quando tocava nesse assunto, nitidamente demonstrava incômodo e mágoa apesar de parecer não se importar em falar a respeito. Suas feridas afinal nunca cicatrizaram completamente. E talvez o ruminar das más lembranças fosse uma maneira catártica de expurgá-las.
“-Se falamos do mesmo homem, teu pai fez fama e por um tempo o esperamos em nossas terras. Lembro que meu pai dizia que ele traria um exército para atacar os bárbaros. Pois Claekuth havia enviado informações importantes para meu tio à época. Por fim, a ajuda não veio e em meio a essa decepção nosso povo foi diminuindo a cada ataque dos inimigos.” Disse Mafura.
“-E ah! Foi ele quem derrotou o gigante maciço que guardava a essência de Ninrim2! Feito incrível… um grande guerreiro, era Damonih.” Retrucou Jotih, acabando o ultimo pedaço de carne.
Ao ouvir os dois irmãos, Zitri finalmente atentou para a importância de Damonih. Ouvira falar do grande guerreiro defensor do povo de Thelim desde sua infância. A esperança do fim da idolatria e do mal em Acheron foi por um tempo depositada sobre ele. Mas esse dia não chegou e suas histórias se perderam na memória dos que o esperaram. Enfim, o grande herói caído de Thelim era o velho Damonih, do Makalabeth. “Surpreendente. E curioso.” Pensara Zitri.
“-Como o Uno age! Seus caminhos são por vezes tortuosos e mui inusitados! E se entrelaçam em uma teia que por mais que pareça estar amontoada…. se liga ponto a ponto. Longe de mim imaginar que um dia me encontraria com um dos meus heróis de brincadeiras e histórias. Morjal nunca falou a respeito disso! Sequer Claekuth!” Finalmente disse o mago.
“-Muita coisa vocês dizem a respeito do meu pai. Mas ele mesmo nunca falara delas. Na verdade, essas histórias… sempre foram contadas por ele de outro modo. Damonih nunca falou de si. Tudo o que contava o deixava de fora dos relatos… fantásticos ou não. Eu sempre o considerei um excelente narrador, pois ele sabia como envolver todos em seu falar. Agora sei que sua habilidade de contador residia no fato de ter vivido o relato.”
“-Ele foi grande por um tempo. Mas muita gente em meu povo não o vê com bons olhos, assim como os Oraculares. Interessante estarmos falando dos feitos de Damonih novamente, pois nosso último assunto antes de tornarmos prisioneiros foi esse mesmo! Falávamos para Ranemann e Atelith o quão magoado nosso povo era de Thelim por não ter ajudado nossos pais em hora de tão grande perigo…”
Zitri num instante interrompeu o falar de Jotih.
“-Como disseste? Ranemann e Atelith? Dos Vilca?”
“-Sim. Tu as conhece? Estavam conosco, pois as encontramos vagando pela planície.”
O semblante de Zitri mudou. A notícia sobre o paradeiro das duas jovens fez seu coração disparar. Eufórico, continuou falando:
“-E como elas estão? Há quanto tempo estão com teu povo? Que notícia fantástica!!! Meu coração explode em alegria por saber que as duas estão vivas!”
“Estão bem. Quero dizer… quando os bárbaros nos atacaram, conseguiram escapar. Devem estar ainda sob os cuidados de Vatrehuh. Quando as encontramos estavam muito magras e sujas…. hum…realmente nos contaram que se separaram de amigos e estavam vagando por meses desde o Acherontis até a Floresta Escura…enfrentaram um tomasco! Ranemann tem uma extensa cicatriz no rosto por conta disso… assim ela me disse.” Continuou Jotih.
“-Então eras tu o amigo que foi perdido no Acherontis?” Perguntou Mafura admirado com tamanha coincidência.
A conversa seguiu animosa noite adentro. Agora Zitri, Jotih, Mafura e Sabretil detinham elos mais fortes de ligação por de alguma maneira suas vidas estarem intercruzadas. E agora… qual caminho seguir? Leste ou oeste? Difícil escolha para Zitri. E para Jotih e Mafura.
“-Vamos dormir, minha dama?”
Cansados, deitaram-se ao redor da fogueira de olhos fechados.
Continua…
1-O maior dos Tremares. Diz que Nartreg em suas aventuras no Maphion obteve ajuda das árvores espiãs para rechaçar a ameaça dos conquistadores a Ziporih.
2-Grande Conquistador de Celhin. Construiu zigorath ao longo dos campos do Maphion. Sua essência aprisionada gerou um gigante maciço alado devorador, derrotado pela esperteza e habilidade de Damonih, que se lançou sob sua calda que caía do alto do Zigorath o qual ele repousava a cada fim de tarde.