As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
Para ler os capítulos anteriores, clique aqui.


“-Tu não serás mais o mesmo. A tua fraqueza agora está nas mãos da nossa Senhora.”

“-Vês? Não cumpriste o que te foi determinado, homem de tristezas. Vais pagar com sangue e carne! São nossos inimigos! E a Serva do nosso Senhor quer que a terra trague o sangue… o sangue da tua fraqueza.”

Mafura, assustado, caminhava a passos trôpegos. Sua sede punia seu corpo. A esmo e ferido pelos galhos secos, não conseguia encontrar o caminho de volta. Há dias havia se perdido de seus companheiros, desde que Zitri e Sabretil foram atacados pela maldade das árvores. Seu medo o fizera fugir, e agora seu estado de nervos era tal que visões o perturbavam. As árvores espiãs haviam se voltado contra ele e o ar pútrido produzido pela Serva Loucura tomara sua mente.

“-Deixa-me em paz! Eu já disse! Eu já disse… é só questão de tempo para acabar com os apaixonados! Dai-me somente essa chance e eu não falharei!”

Os vultos das árvores furtivamente se aproximavam do homem aturdido. Sua mente anuviada por vezes ouvia as vozes de Sabretil e Zitri à sua procura. Seria realidade ou delírio? Mafura, trêmulo, não conseguia discernir. Apressado, por vezes corria sem rumo. Mas logo se cansava, pois seu corpo faminto não permitia grandes esforços.

“-Ou mata-os ou morrerás. Os vermes estão prontos. Estão a tua espreita, homem insignificante. Não sentes os micostos? Estão a sugar a vida que corre em teu corpo. Eles dizem para onde vais, e estão prontos para dar cabo de ti.”

As vozes repetidamente ecoavam pelo lugar junto a risadas e gritos estridentes que de súbito se calavam. O ar, cada vez mais pesado, causava torpor nos sentidos do homem do Povo das Alturas que, em um último esforço, correu desesperadamente buscando escapar delas. Sem direção, Mafura percorreu o labirinto de trilhas da Floresta Escura em vão, pois sua mente ainda podia ouvi-las. Como se estivessem sempre ao seu lado. E os micostos enfurecidos cobriam sua pele, castigando-o com seus ferrões.

“-Me deixem! Eu vou… eu vou encontrá-los! Eles não vão viver!”

Em meio ao desespero, tentava se livrar dos micostos com sua lâmina. Enquanto corria, cortava sua pele na tentativa de fazê-los parar. Inutilmente. Foi quando, aos gritos, tropeçou e caiu ao chão.

“-Mafura!”

Zitri, vendo o homem se debater, correu ao seu encontro. Com sua capa afugentou os micostos e erguendo-o pelos braços disse:

“-Graças ao Uno ainda está vivo. Faz dias que te procuramos! Já acreditava que tivesse cumprido o Ciclo e estivesse ao lado de Fyr.”

“-O que aconteceu contigo, homem?” Perguntou Sabretil, admirada.

Mafura chorava balbuciando palavras sem nexo. As pústulas purulentas que cobriam sua pele produziam dor por todo seu corpo. Exaurido, desmaiou.

“-Anda, ajuda-me a colocá-lo sobre a carroça. Vamos! Não fica parado!” Disse Zitri a Jotih. O jovem, emudecido, observava seu irmão.

“-Jotih! Não ouves o que Zitri te diz? Ajuda-o!” Falou Sabretil, impaciente.

Jotih foi então até Zitri e Mafura e ajudou o mago a carregá-lo. Atemorizado, nada perguntou a respeito. Pois sabia que aquilo havia sido obra da maldade das árvores. Desde que Mafura desaparecera, acreditava que tivesse perecido, afinal as árvores constantemente o ameaçavam também de toda sorte de malfazejo.

***

“-Safretou, safretou migtfard safretou. Sobrahuym Usiatuh.”

“-Ele está muito mal. Temo que não sobreviva.” Disse Sabretil.

“- A febre não cessa, e as feridas estão piorando. Mas o encantamento deve amenizar seu sofrimento. Espero que o Uno ouça minhas preces.”

Enquanto Sabretil limpava as feridas do moribundo, Zitri observava seu estado deplorável. Há cinco dias piorando, Mafura perdeu grande parte da pele e carne. As feridas tomaram seu corpo, apodrecendo-o.

“-É praga desse lugar horrendo. Pobre Mafura. Seja ele protegido pelo Uno.” Disse Jotih.

“-Tu, homem de tristeza, está ao lado de nossos inimigos há tempos. Teu irmão já tem o estigma da podridão, pois o nosso Senhor não descansa. O que falta para ti? Te afeiçoaste a eles. Assim como as mulheres vilca. Pois assim dizemos: acontecerá a ti coisa pior.”

Aterrorizado, Jotih ouviu a sentença das árvores ao mesmo tempo que chorava por seu irmão. Mas tudo o que lhe restava era sentir o medo em silêncio. Desde que bebera a seiva das sequoias contaminadas pelo ódio de Draemoniach, sua essência dúbia se tornara servo delas. E, sob sua influência, seus pensamentos mais imundos então afloraram, permitindo-o fazer o que não queria. Porém, o amor que sentiu por Atelith lutou contra a ordem das árvores. E, até aquele momento, havia prosperado.

“-Ver meu irmão agonizar lentamente, sendo devorado por essa praga, me faz pensar se tudo não poderia ser diferente. Certamente melhor escolha seria termos rumado para Ziporih.” Disse Jotih, com voz embargada.

“-Não pense assim, meu caro. Fizemos o que estava em nosso alcance e deixei há meses meu povo por conta da demanda. Minhas amadas Ranemann e Atelith estão vivas! E nelas reside a última esperança de nosso mundo. Mas Ziporih jaz em decadência e as fileiras dos tremares já não são numerosas. O governo dos filhos de Nartreg se entregou à concupiscência da carne e abandonou os preceitos do Uno. Nossos pais da Ordem se corromperam ao longo das eras, e pouco a pouco a Ordem se transformou num emaranhado de frieza e rituais sem sentido. Mas ainda existem homens fiéis aos ditames do Uno e seus Filhos. Lutar por Ziporih, à essa altura… tornou-se causa perdida. Entretanto, digo que derrotar o Caos em movimento trará força para os de sangue bom que ainda habitam na Terra dos Carvalhos.” Respondeu Zitri enquanto se sentava à fogueira que acabara de acender.

“-Incrível como manipulas os elementos. Espero que tua crença no Uno faça-o ouvir o teu clamor por Mafura. Sobre Atelith e Ranemann, também tenho muitas saudades delas. Tivemos bons momentos em minhas terras, e elas são adoráveis. Atelith e sua essência forte me cativou. E a delicadeza de Ranemann atraía as borboletas das copas das sequoias até ela! Sempre imaginei que ambas estivessem metidas em grandes aventuras. Uma pena que é provável que não sobreviva até reencontrá-las. Falou Jotih, consternado.

“-E não vai vê-las novamente. Tua carne servirá aos vermes e às aves do céu, homem de tristezas.” Disseram às árvores em meio a risadas irônicas.

Deitada, Sabretil ouvia os dois homens conversarem. Enquanto fumava os restos de erva que encontrara na carroça, pensava em como seriam Ranemann e Atelith. Zitri havia falado tão pouco a respeito delas. Porém, todas as vezes que ouvia seus nomes, seu olhar mudava. Quão grandiosas seriam para que as admirasse tanto? Ou será que haveria algo mais que não era de seu conhecimento? Sem nada dizer, sentiu-se insegura pela primeira vez a respeito de Zitri e não compreendia muito bem o rubor que subitamente tomara seu semblante. Assim, afastou-se e foi se deitar.

***

“-Acorde, meu amor. Veja!”

Ao redor de Zitri e Sabretil estavam eles. Os diminutos seres alados portadores de luz. Símbolos dos resquícios da Alegria de Orath. Voavam calmos e serenos ao redor deles como se estivessem dando boas-vindas. As tatuagens de Sabretil brilhavam em tons azuis e juntamente com a luz deles iluminaram a clareira. Enquanto dormia, os vagalumes vieram ao seu encontro juntamente à brisa cálida que permeou de súbito o lugar.

“-A pedra guia, Zitri. Que belos matizes!” Disse Sabretil, em meio a um sorriso preguiçoso. Aproximando seu rosto dela, falou o mago:

“- Em uma visão Illil falou de nós. Disse a Senhora de Zetricon que eu deveria escolher por você e protegê-la. Que a demanda não era mais minha, e que era o último aviso de Bel. Minha amada Sabretil, o Uno ouviu o clamor de nossos corações e agora tu és minha! A pedra guia confirma a sua vontade com tão bela luz!! Eu, um mago monástico… serei teu consorte!”

“-Por que não me disseste? Quando ela te apareceu?” Sabretil arregalou os olhos azuis num rompante de alegria, se ajoelhando.

“-Há alguns dias, antes das maldosas árvores nos atacarem. Em uma noite como essa, Illil apareceu. Trazendo um aviso do Uno…que eu havia passado no teste. Sua beleza era incomparável. Apenas tu, minha amada Sabretil, é mais bela que ela. Pois teus olhos são como o véu azul que cobre o Malgaroth. E teus cabelos como o fogo dos Festivais…”

“-Ela é filha do meu amado, Damonih.”

A voz de Illil ecoou na mente de Zitri enquanto ele acariciava o rosto de Sabretil. Próximos um do outro, o casal apaixonado finalmente trocou beijos desajeitados. E se deitaram no chão úmido. E no lugar iluminado pelo amor, a filha do herói caído e o mago monástico de Ziporih consumaram o sentimento puro que nutriam um pelo outro.

“-O amor aqui foi abençoado pelo Uno e seus Filhos, e nem as hostes do Caos em movimento e nem a própria Serva Loucura poderão ir contra vós. Se fizerem a vontade do Senhor da Cidade Abençoada, tu e tua consorte subsistirão ao mal. Pois todas as criaturas de sangue bom que ainda habitam na Terra dos Carvalhos são testemunhas hoje que o Amor prevaleceu na morada do ódio de Draemoniach. Sim, filhos de Acheron, regozijem-se… pois Zitri de Ziporih e Sabretil do Makalabeth, sob os olhos do Uno, carregam agora em suas essências a fagulha do primeiro amor verdadeiro que eu, Illil, recebi de meu amado Zetricon. E convoco todos os seres abençoados que ainda caminham sobre Acheron: protejam e ouçam a voz do casal escolhido!”

E dos recônditos de Acheron surgiram Draquons e Crafaeins, coelhos e formigas. Cervos e busemontes. Cavalos e ovelhas. Toda sorte de criatura e essência que ainda possuía a fagulha da bondade do Uno saiu lentamente de sua morada para o derredor da Floresta Escura, se alegrando naquela noite de outono com o amor de Zitri e Sabretil.

Continua…