As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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-Senhor, não se preocupe. Tudo correrá bem! Sorbam tem visitado o harém com muita frequência. Provavelmente virá por aqui hoje de noite. A lépida águia é discreta, mas nada escapa de mim – disse ele, enquanto admirava a gema.

-Estais vendo, então… com isso aqui deverás arrumar uma maneira de estar onde eles se encontram. E que seja no quarto da meretriz, para que a prova seja irrefutável. Deves colocá-la em local discreto para que ninguém perceba.

-Esteja tranquilo, homem. Sou eficiente em meus serviços! E não se preocupe, aqui ninguém nos ouve… pois dei ordens que ninguém adentrasse em meus aposentos – retrucou ele.

-Servo, não pode haver falha – Klith, nervoso, disse a Dektliu – o líder dos selvagens nos deu prazo de sete luas. E já se passou uma. Pois nunca estais em teu posto quando te procuramos. Anda, vai e cumpre o que me prometeste! Tua prata te espera!

O homem corcunda, sorrindo, recolheu a pedra mágica no bolso atado à cintura. Guardador do harém de Notrum, foi emasculado ainda na infância quando o trouxeram cativo dos nômades do Makalabeth*. Assim, Dektliu passou sua vida entre as paredes dos domínios do senhor de Ziporih sendo educado na administração da casa das mulheres. Comendo e bebendo da mesa de Notrum – pois ele por pena – o permitiu viver a despeito de sua aparência indesejável. Porém, o alimentar da vingança por ter recebido gratuitamente uma meia vida de homem e o assassinato de seus pais nunca deixou de se cultivado em sua titubeante essência. Assim, Dektliu – o eunuco – após quarenta primaveras de espera, finalmente se vingaria de Sorbam, o executor de sua família e de sua nefasta sentença. Se voltando ao corredor às portas de seu quarto, despediu-se de Klith. E se foi.

***

“Onde está ele, que não vem? A Lua já está alta e nada de Sorbam aparecer”. Pensou, enquanto deitada, preguiçosamente arrumava mais uma vez os cabelos em frente ao espelho. Colocando mais alguns grampos para manter as madeixas ruivas cuidadosamente armadas em um arranjo suntuoso, Taremil suspirava ansiosa. O dia havia sido tedioso, ouvindo, pela manhã, as lamúrias de Notrum a respeito do cerco e suas indecisões por conta dos delírios religiosos. “Por mais que o aconselhe, meu velho rei é um teimoso… mas isso não deve perdurar.” Assim, seguia se distraindo esperando por ele – entre pensamentos e o cuidar de sua bela aparência.

Foi quando seus olhos foram cobertos. Assustada, porém sorrindo, Taremil tateou os braços opositores que com as mãos tapavam sua visão. – Por que demorou tanto? Já começava a crer que não apareceria!

–O dia foi muito difícil, mulher. Pela manhã, liderei o treinamento e supervisionei os novatos que tem vindo em grande número para se juntar aos tremares. E passei a tarde trancado com meu Senhor e aquele servo astuto planejando táticas para a guerra.

-Vai realmente acontecer? Quero dizer, Notrum não decidiu mesmo negociar a paz?! Homem obstinado! Parece então que meu discurso da manhã não surtiu efeito algum! Sorbam, tu também queres a guerra, não é!? Em algum momento o aconselhou em evitá-la?! Vocês não me ouvem… Ziporih vai cair. Tenho tido constantes visões de nossos bosques sendo queimados em pleno inverno e cabeças dependuradas por toda a rua que divide a cidade.

O general, beijando o rosto dela, sentou-se na cama ao seu lado. Tirando seu casaco, segurou-a na mão dizendo:

-Não é o que desejo. E sim o que deve ser feito. Se estamos do lado certo nessa guerra, venceremos. Além do mais, o Uno nos respondeu enviando as filhas de Zetricon há poucos dias em sinal de aprovação. Até o velho Jiltrate se impressionou e deu crédito ao que viu.

-Tolo, aquilo foi um mau presságio! Águias não voam em bandos, e o Uno é um só! Isso bem aprendi em Thelim ainda criança. E ontem mesmo enquanto bordava com minhas servas, fui agraciada com a visão de águias sangrentas, viajantes de terras longínquas, carregando pedaços de homens e um ovo reluzente. O que viste é sinal de que algo muito ruim está prestes a acontecer. E eu disse a Notrum sobre isso, mas ele não me ouve. Está cego por crer em todas as heresias que seu povo inventou ao longo das gerações de seus ancestrais.

-Nossos pais ergueram Ziporih em homenagem ao Uno por ele ser o doador da inteligência e força aos homens. Sem isso, não teria sido possível trazer cada pedra das Femiaren. Sem isso, não teríamos derrotado Celhin e os gigantes revoltosos. O Uno sempre esteve com Ziporih, quer Claekuth e os Censores reconheçam isso ou não. Teus pais oraculares se orgulham em guardar o Poço da Perdição e as maçãs imperecíveis, e os Vilca de em humildade serem amados pelo Uno. Mas de longe não estão ligados à ferocidade da nossa raça em sua aurora. E isso, minha amada… é sim, dádiva do Uno. E ele está conosco – disse ele, abraçando-a desajeitadamente.

-Não quero discutir religião contigo. O que desejo saber é se o que combinamos… será feito. Já que a guerra é o caminho a ser tomado, como vamos proceder?

Sorbam então a fitou. Colocando os dedos sobre as sobrancelhas, fechou seus olhos e suspirou. Sentiu-se naquele breve momento sujo ao retomarem o assunto. Como poderia abandonar os seus em hora de tremendo perigo? Amava Notrum e o que ele representava para Ziporih. Orgulhava-se de sua cidade e de ser um tremar. Sua vida havia sido na Cidade de Pedra aos pés de Notrum. Deixar tudo o que considerava em alta conta para trás ainda o assustava. E o entristecia. Se pelo menos Melikae e Zitri ainda estivessem vivos, saberia que os tremares estariam sendo bem liderados.

-Eu… eu quero que quando tudo começar… pegue esta lâmina… desça a escadaria que fica embaixo do altar do Templo da Ordem e vá para a esquerda sem olhar para trás. O mais rápido que puder. E me espere em Thelim. Lá nos encontraremos.

-Ah, meu amor! Não me engane! Não quero voltar para minha terra e lá me tornar uma mulher solitária. Já não tenho mais sonhos que nosso amor seja abençoado por Illil, pois em meio à dor e ao engano nos apaixonamos. Mas não suportaria o abandono do meu grande amor ainda em minha juventude!

Sorbam então – sentado sobre a grande e ornada cama –  a abraçou com firmeza. Afagando em silêncio por alguns minutos seu volumoso cabelo e o delicado rosto, sofreu com as palavras emocionadas de Taremil. “Tudo contribuirá para ficarmos juntos” – pensou ele, e em seguida disse:

-Me possua, minha amada. Onde está o açoite? Amarra-me, e seja firme no fustigar de hoje. Vamos esquecer por um momento tudo… para nos divertirmos.

Então ela o desnudou, amarrando seus pés e mãos à parede. E Sorbam – de braços estendidos – foi flagelado paulatinamente pela consorte de Notrum. E o golpear fazia crescer a lascívia de ambos, que finalmente se entregaram a ela. Assim, ele recebeu vagarosamente suas nádegas volumosas até penetrá-la por completo. O roçar de seus corpos se fez de muitas outras maneiras por toda a noite.

E num canto, sobre a pequena mesa de madeira de bordar, repousava discretamente a gema mágica de Dzfarthyr, que tudo observava.

***

A madrugada seguia castigando a pele desnuda que em contato com o chão frio de pedra arrepiava os pelos e lhe fazia tremer os ossos. Horas haviam passado desde a chegada da Lua e suas filhas e todos já estavam recolhidos em seus aposentos, porém ele permaneceu no Salão das Preces e vestido apenas com o seu Matrih, estava deitado de bruços com os braços abertos em penitência pelos seus malfazejos. O medo e a angústia acompanharam sua vida desde a juventude, pois em perigo sempre esteve enquanto os inimigos de sua linhagem Numir, Brametahn e Zotrial, faziam parte do Conselho dos Separados. Muito jovem, Notrum assumiu o trono da última Cidade de Pedra e foi perseguido pelos seus. “Eu já deveria estar habituado, meu Senhor… mas a cada dia que vivo nesse maldito cerco, só piora.” Pensava ele, enquanto – com a testa apoiando sua cabeça ao chão – lágrimas timidamente escorriam de seus pequenos olhos fechados. Sentindo o aproximar da maior batalha de sua vida, decidiu naquela noite se despir de todo o seu orgulho de portador da Voz do Uno para, em desespero velado, buscá-lo, pois já havia se passado quatro luas desde o sinal das águias e a paz não preenchera a sua essência desde então. “Se eu me humilhar o meu Senhor vai me ouvir. Como ouviu os meus ancestrais do passado glorioso de Ziporih.” Assim, em meio ao vento invernal que fazia tremer sua carne e à beira da paranoia, o senhor da Cidade de Pedra, clamou em alta voz:

-Senhor da Cidade Abençoada, desde o meu nascimento  te servi no Templo da Ordem e, ao subir no trono de Ziporih, a cada dia julguei em teu nome o povo que tu amas e abençoaste com a glória da força e sabedoria dos nossos ancestrais desde a aurora dos homens até a Era da Prosperidade. E tu nos ama, Senhor… pois pelos avisos do Maioral Orath, os nossos filhos que te adoravam e estavam espalhados pelo Malgaroth após a destruição da Formetalion dos Milcah foram salvos pelos Oraculares que os levaram juntamente com o Povo das Tendas nos barcos de carvalho para escapar do malion da tua fúria quando a Água Súbita veio e lavou o malfazejo dos homens das terras de Acheron. Sim, meu Senhor… eu sei que tu nos ama! Pois abençoaste com mão poderosa meu pai Nartreg, que reuniu os dez mil sábios construtores sobreviventes, para que, com o tear das rochas1, manipulassem o metal, recortando os pés das infantes Femiaren e trazendo enfim, do gélido norte e através dos grandes carros2, as sólidas rochas que ergueram o bastião de Bel em Acheron… Ziporih! O verdugo dos povos rebeldes e belicosos que construíram Celhin e que guerrearam por três geração contra nós! Mas que por tua vontade benevolente, não prevaleceram contra teu povo. Por isso te peço em desespero, meu Senhor, que seja conosco como foste por todas as primaveras para com os que carregam em sua carne o sangue dos que te amam! Daqui a três luas guerrearemos contra o mal que veio do Leste, e nossos exércitos são inferiores em número e habilidade aos do inimigo, porém eles não têm a ti como Senhor! Sim, somos fracos como galhos jovens das plantas primaveris, mas assim como tu me protegeste por toda a minha frágil juventude dos inimigos de minha família que afundaram Ziporih em corrupção, protege teu povo de igual modo! E perdoa os meus malfazejos! Todo assassinato que cometi contra a tua vontade, todo excesso e pensamento torpe e titubeante, assim como toda a minha fraqueza para com meus filhos Klith, Demarin e Mafroun. Livra-os da severa paga de Fyr por amor a mim… que sou tua Voz em Acheron! Protege também os meus homens, especialmente Sorbam e Jiltrate, que me amam e são leais a mim acima de todos os vivos dessa terra. E finalmente, repousa tuas mãos sobre minha amada Taremil, e assim, protege-a da malignidade dos teus inimigos que intentam em dizimar a tua cidade e o teu glorioso Templo… casa para todos os viajantes da vasta Terra dos Carvalhos! Sim, Senhor da Cidade abençoada, aqui estou, despido de glória terrena… e humildemente me deponho sobre a tua vontade, lançando-me ao chão frio desse salão em pleno rigoroso inverno! E assim permanecerei até que me ouças… pois meu coração alquebrado anseia por tua paz para que haja a vitória dos tremares! Assim minha essência deseja que o seja, pois não desejo ainda cumprir o Ciclo. Salva-me, Senhor… eu e a minha casa!

E naquela noite, o vento que vinha do oriente empurrava as janelas do salão cada vez mais com violência.

Registrou o escriba:

Quando retornava com os meus daquele lugar maldito, ouvi a voz do meu amado Senhor. Sim, ela ecoava por todo o Malgaroth, e alcançou os limites do Maphion… pois foi trazida pelas pequenas corujas de Gorath, que em agonia vinham até mim enquanto cavalgávamos pelos campos do Maphion. Eu, que pelo amor ao Uno fendi a essência deturpada do meu próprio filho e de sua contraparte maligna na câmara de Hihjik, Desmolaeh e Drimin, onde com a Canção da Palavra os reduzi à cinza no Gohin, retornava veloz, em socorro de minha casa. Sim, eu sou Melikae de Ziporih, e recebi do próprio Senhor da Cidade Abençoada inteligência para recitar versos e a fúria das batalhas dos ancestrais do meu povo. E escapei da astúcia dos que tramaram contra mim, e prevaleci. E agora, que sou senhor de toda essência arrependida liberta de Dutryor e seus filhos, uso de minha prerrogativa para liderá-los contra o Caos em movimento por amor de Ranemann e de meu irmão Zitri, que pereceu no interior das montanhas do Norte. Pois nem Servatenal e o Quarto Rei puderam contra a mão do Uno que esteve comigo, e fiz da minha castina a Kapele da separada Mitranil, que revelou maravilhas e os  muitos cânticos dos seres abençoados que se escondem ainda em Acheron. Por isso conclamo vós, Sirahih, Draquons, Crafaeins, Farzmih… e toda sorte de criatura tocada pelo dedo e unha de Bel e que foi formada a partir das gotas do Lago da Criação… ouçam agora a canção! Rumem para a última Cidade de Pedra em auxílio do povo heroico que jaz em agonia! Pois venho também com a Legião dos Arrependidos, e nem todo os tentáculos da Serva Loucura e nem o próprio Caos em movimento com suas armas banhadas com seu sangue pútrido prevalecerão naquele dia que está guardado para a glória do Uno e de Ziporih!


1 e 2 – Dizem os Antigos que nos tempos heroicos os homens do Malgaroth, doutos em grande sabedoria e força, foram capazes de criar coisas mui grandiosas para assombrar os seus irmãos simples. Assim, tal qual sua grande força, viu-se em Acheron grandes invenções que cortavam pedra, que foram levadas do norte através dos carros inventados por eles.