(Imagem de capa: in the dark forest por avvart)

As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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As palavras doces que ecoaram na mente de Ranemann enquanto estava desmaiada na clareira onde foi travada a luta contra tomasco olhos-de-galho permaneciam vivas em seus pensamentos. Suas preces silenciosas ao Uno eram contínuas, pois enquanto caminhava trilha adentro juntamente a Atelith, o medo de perigos desconhecidos era uma constante em sua essência.

– O Caos em movimento nos observa. Cada pequena criatura malévola que aqui habita são suas sentinelas. Cada movimento nosso por micostos e beseras é observado – disse Ranemann, em meio a um respirar curto e discretamente ofegante.

– Acredito que esses carvalhos secos também têm olhos, minha irmã. A sensação de que eles estão vivos e atentos me é recorrente. Tu, que possui o Dom da Visão, deves saber melhor que eu. Esse lugar está vivo, apesar da maldade que aqui subsiste – retrucou apreensiva Atelith, enquanto cortava cipós ressequidos para abrir caminho na estreita trilha em que ambas estavam percorrendo. 

A fome era uma sensação onipresente para as duas jovens vilca. As escamas abençoadas de peixe que serviam como alimento para elas estavam acabando. – Tome, coma uma – disse Ranemann, estendendo a mão a Atelith.

– Obrigada, minha irmã. Mas tudo o que eu queria era um bom chá quente de hortelã com amêndoas carameladas e pedaços do pão de centeio tostado da despensa de Claekuth. E o calor da sua lareira… – refletiu Atelith com um leve sorriso no canto dos lábios. 

– Sim! E as histórias de Morjal! Uma ânfora repleta de cerveja amanteigada e adocicada com mel… pães… e enquanto comêssemos e bebêssemos nosso pai leria com sua voz grave e poderosa o Livro dos Dias. Ou mesmo contaria suas aventuras a respeito das viagens a outros planos e tempos heroicos. Não seria fabuloso, Atelith?

– Isso mesmo! E no momento em que Morjal estivesse narrando como viu em essência a descida da Água Súbita e as torrentes de água que brotavam da terra e a agonia dos rebeldes Milcah… nossos amados Melikae e Zitri adentrariam a sala com coelhos para assar! Certamente Claekuth se alegraria em preparar para Morjal um coelho cozido com vinagre de maçã e temperado com tomilho e alecrim. Ele adora carne de coelho! Te digo que cairia muito bem uma refeição dessa natureza para nos trazer a alegria que agora nos falta. Quanta saudades de nossas vidas simples em Thelim, minha irmã! Quanta saudade de nossos queridos… de nossos amores. Não tens pensado em Melikae, Ranemann?

– A todo momento. A essência de Melikae à minha está ligada em amor. Porém, não tenho ouvido mais a sua voz em meus sonhos. Aliás, os sonhos que tenho tido são provavelmente provenientes dos meus medos mais primais a respeito de nossa demanda. Mas, enquanto em nossas andanças caminho… fito a imagem dele que habita os recônditos da minha essência. E então em alegria posso ouvir sua melodiosa voz sendo acompanhada pelo som delicado de sua abençoada castina – respondeu Ranemann em meio a suspiros, enquanto percorria cautelosamente a trilha repleta de galhos secos com espinhos. 

Porém, enquanto a jovem sensitiva vilca desviava seus delicados pés dos espinhos, pensamentos indesejáveis revisitaram sua memória. Por qual motivo Atelith havia feito tal pergunta? Há tempos que ambas não conversavam de forma mais íntima sobre Melikae. Os incidentes que haviam levado Ranemann à esterilidade e a separação de Atelith de seu filho Ostragion1 por vezes retornavam a Ranemann, vívidos em suas lembranças, e ainda eram pesados em assimilação quando por ela revisitados. Livre de culpa de seus atos por conta da Profecia de Claekuth, Ranemann nunca se culpou a respeito do desfecho quanto a relação fugaz entre Melikae e Atelith, afinal… ela não fazia parte das predições de Claekuth. 

– Minha irmã, por que perguntais a esse respeito? Em um breve momento senti que o que houve há anos emergiu em teus pensamentos novamente. Às margens do Acherontis tivemos nossa última conversa sobre nossos destinos e as palavras de Claekuth, em meio a emboscada dos homens de sangue ruim que ali viviam, e por conta disso nos separamos de nossos amigos. Ali, sobre o reluzir das águas do rio primordial que nasce das profundezas dos domínios de Fyr e segue para o Grande Mar, tu me juraste estar livre de ressentimento. Lembrai que o desígnio dos Maiorais a nós não compete o julgar. Eu, você, Claekuth, Morjal… todos os homens de Acheron servem a propósitos não esquadrinhados em nossa finita mente. As brumas que encobrem o futuro só podem ser esvanecidas pelo Uno e seus Filhos e, sim, somos instrumentos em suas mãos para a bondade que dele emana. 

Ao ouvir as palavras de Ranemann, Atelith tornou seu olhar para as marcas que haviam em seus braços. As tatuagens ritualísticas que à época secretamente fez para atrair o amor de Melikae não foram efetivas em seu intento. Seu único encontro nos Festivais se fez em meio ao alvoroço dos festejos e por conta de suas premeditadas ações para atrair o jovem tremareano. Ainda possuía a lembrança de tudo o que houve naquela noite onde, ao som dos tamborins e cantos alegres, deitou-se com o belo e espirituoso Melikae dos Tremares. Não conseguia odiar sua amiga Ranemann por não possuir o amor do jovem bardo contador, porém também seu coração divido sempre esteve entre seus sentimentos nobres por Melikae e a racionalização a respeito do destino que fora traçado para ela e Ranemann. Por um momento Atelith interrompeu seu caminhar, e segurando no ombro de sua irmã disse:

– Existe sim, saudades daquilo que poderia ter sido. Sim, disso sei… que também não posso imputar juízo algum sobre ti e mesmo sobre as decisões de Melikae a meu respeito. Porém a minha tristeza sempre residirá na punição de Claekuth. Pesado me foi em muito ao longo desses anos suportar a separação perpétua de Ostragion. Torná-lo servo eunuco das filhas de Claekuth também é pesado castigo para mim. Meu filho não merecia tal quinhão pois o homem não deve receber paga pelo malfazejo dos pais.   Aprendi desde criança que sobre tal negócio apenas o Uno responde. Se queres saber, e sempre que conversarmos a respeito direi… sim, a culpa estará sempre atrelada à minha essência por conta de um malfazejo que, à época, para mim era desconhecido. Eu era inocente e tu o sabes minha irmã. Não tenho o dom da Visão e já me dissestes que tu mesma não possuía esse discernimento quando tudo aconteceu – disse Atelith, em tom confessional.

Ao ouvir a jovem vilca, Ranemann refletiu sobre os sentimentos de sua amiga. Conseguia compreender que Atelith se sentia injustiçada pelos Maiorais por ter recebido paga dolorosa em meio a um destino a ela desconhecido. Porém, seu malfazejo de tramas e artimanhas sempre a incomodaram e desde muito jovem sabia que isso não levaria a bom termo sua companheira de aventuras. O drama estabelecido na vida de Atelith era, sim, tributário às suas escolhas que por fim entraram em conflito com os planos do Uno. Mas, enquanto queixosa se fazia Atelith a esse respeito, aparentemente a jovem guerreira dos Vilca esquecia que Ranemann também recebeu pesada paga por estar envolvida nos desejos do Uno para a Terra dos Carvalhos. Afinal, seu ventre agora era seco como as terras desérticas do Clahtemariaeh, pois Orath em muito viu como mau o Ritual da Lua ter sido realizado sobre o lugar que outrora fora o Jardim de Illil e o Maioral caído Zetricon. O egoísmo de Atelith a impedia de enxergar que sobre tal incidente não houve beneficência plena para todos. Ambas não receberam a morte como galardão. Entretanto, todos obtiveram castigos severos. Com tais pensamentos respondeu Ranemann:

– Não te recolhas em sentimentos de auto piedade, Atelith. Cada uma de nós perdeu algo importante. Sofro por mim e por ti quando lembro de tudo, mas não me culpo… e muito menos a ti. Fizemos o que estava ao nosso alcance à época pois nossa compreensão a respeito da predição de Claekuth era por demais limitada. Saibais que eu não te culpo em nada! E sobre os desejos de Claekuth e os do Uno… creio que sempre estão em conformidade. Por isso vejo que em nós não deve haver o cultivar de sentimentos ruins sobre esse negócio. Minha preocupação por todos esses tempos tem sido, afinal, sobre nossa demanda. E sobre nossos amigos. Estarão bem? Melikae ainda está vivo? Zitri? Eu não posso dizer com certeza. O meu dom não tem conseguido alcançá-los. Em meus exercícios mentais tento encontrá-los… mas sem sucesso. Perdê-los a essa altura das coisas seria desastroso para meu coração e para o destino da Terra dos Carvalhos.

– Acredito nas tuas palavras, minha irmã. Apesar das nossas diferenças de caráter nunca houve um momento em que duvidei da tua essência íntegra. Mas te digo: ainda creio que a predição de Claekuth nos levará a presenciar acontecimentos inesperados. Tenho tido pressentimentos a esse respeito quando repenso sobre tudo… o Punhal de Zetricon e sua forja… o último Fôlego da Alegria do Maioral Orath… toda essa demanda me parece grandiosa demais para nós… mulheres do povo das Tendas… repletas de hematomas e feridas por lutar com apenas um tomasco! Como vamos enfrentar o Caos em movimento e sua serva Loucura? Não vês?! Provavelmente estamos caminhando para nossa própria destruição!

O discurso de Atelith foi certeiro como uma seta de prata e transfixou os pensamentos mais temerosos de Ranemann naquele momento. A jovem sensitiva do pequeno povo dos Vilca parou de caminhar. E com as mãos geladas procurou em sua cintura a pequena bolsa de couro onde escondia o punhal de mármore do Maioral caído. Segurando-o, observou atentamente o artefato. Não parecia em nada com uma arma de grande poder. Como poderia destruir a essência incomensuravelmente malévola de Draemoniach com um pequeno punhal de mármore? Por momento, todas as palavras de Atelith fizeram mórbido sentido para Ranemann. Teria sua amada Claekuth e seu pai Morjal a enviado para a destruição?

– Veja, um declive! –  disse em voz alta Atelith. Subitamente a trilha que as jovens percorreram por horas enquanto conversavam terminava numa espécie de vale. Árvores gigantescas e secas erguiam suas copas sem folhas à altura do topo do fim da trilha no lugar onde as duas acheronianas estavam. O céu finalmente podia agora ser visto pelas mulheres, porém era negro como a noite sem os Deuses luminares. Entretanto, uma luz amarela vinda do horizonte no oriente iluminava o grande lugar. A visão inesperada da mudança de paisagem trouxe assombro e renovado interesse em continuar a caminhada, agora seguindo o anguloso declive que levava ao sopé das monstruosas árvores que compunham a paisagem do vale. Por um momento, Atelith e Ranemann olharam entre si mudas para em seguida admirarem a infinitude de árvores que viam até onde os seus olhos podiam alcançar.

landscape___fantasy___dark_valley_by_sinate-d6fsxvr(Imagem: Landscape – Fantasy – Dark Valley – Sinate)

-Pelo Uno, Ranemann! Ainda estamos na Floresta Escura? – perguntou, embasbacada, Atelith.

Ranemann virou as palmas das mãos em sinal de incerteza. – Não faço ideia. Mas temos que encontrar um meio de chegar lá embaixo. Veja, por aqui! O declive é íngreme, porém aqui é mais seguro. Vamos descer… segure em mim e tenha cuidado, irmã!

Continua…


1 – O “Esquecido”, em acheroniano médio.