As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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A escuridão do lugar onde os dois jovens tremareanos se encontravam, àquela altura da entrada da grande caverna aos pés da maior montanha das Femiaren, era o possível sinal de perigos sombrios em uma trilha escura, rumo ao interior do complexo subterrâneo outrora habitado pelo povo artesão de Nuth. Abandonadas desde a descida da Água Súbita (que afogou seus habitantes), a “Nova Nutherion” (como os sobreviventes do período da Dissensão entre Vento e Sol a chamaram) agora era apenas arremedo da glória produzida pelo esmero dos grandes artesãos, que engenhosamente manipulavam as matérias brutas da natureza para transformá-las em nobres pedras preciosas e coloridas de valor incomensurável. Sim, o povo de Nuth era ganancioso e orgulhoso, e a perfeição das obras de seus artífices era conhecida em toda a Terra dos Carvalhos. Certamente tal complexo das cavernas que se entremeava sobre as fundações das Femiaren estaria repleto de seus elegantes e preciosos feitos artísticos. Esse era o pensamento dos dois portentosos jovens do povo nobre dos Tremares.
“- À direita ou à esquerda?” Perguntou o indeciso Melikae ao ressabiado Zitri. A bifurcação observada pelos dois em meio a penumbra no fim da ampla galeria de paredes graníticas úmidas no interior da caverna da grande montanha gelada (que se destaca das outras da cordilheira) trazia às suas mentes a necessidade de rápida decisão. Haviam caminhado por cerca de uma hora em uma trilha úmida e íngreme que descia rumo a escuridão imperiosa do complexo subterrâneo da antiga morada dos Nuth. Musgo e lodo permeavam as paredes e o chão da trilha. Ouviram muitas histórias a respeito da cidade subterrânea, e de como sua entrada era selada através de imponentes portões de ferro em meio a caverna aos pés da maior das Femiaren. Porém, tudo o que puderam ver ao chegar era a caverna aberta. Os portões não faziam mais parte da entrada do que restou da cidade. Ruínas do grandioso pórtico talhado diretamente nas rochas da montanha podiam ainda ser observadas em meio a neve que recobria os pés da montanha central das Femiaren. As grandes colunas repletas de pedras nobres do outrora pródigo passado dos homens de Nuth agora estavam cobertas de parca vegetação e abundante neve que assolava o inverno da região. Não havia sinal das pedras preciosas. O pórtico foi saqueado por salteadores viajantes após a destruição da cidade pela descida da Água Súbita. Agora era apenas um arremedo de glórias nutherianas passadas.
Zitri e Melikae não estavam à esmo em tal estado de nervos. Sabiam que a escolha errada do caminho significaria retardo em alcançar seus objetivos. Ou coisa pior. Já haviam seis meses que se separaram de Ranemann e Atelith durante os incidentes às margens das corredeiras de Samehim. O rio os levou para o lado oposto do atalho à estrada demolida (Malem) lançando-os em meio a um vasto campo de vegetação alta e repleto de velhas construções piramidais conhecidas pelos antigos já nos tempos heroicos de Acheron.
Entretanto, a imensidão do campo desconhecido fez Melikae e Zitri temerem estar aprisionados em algum tipo de ilusão dos antigos, que dominavam os poderes mágicos ilícitos e habitavam outrora as grandes construções piramidais que, segundo o que se diz na Terra dos Carvalhos, eram “portas para Bel”*. Após muitos dias atravessando tal lugar em meio a uma temperatura constantemente primaveril, os ares gelados, a neve e as imensas formações rochosas emergentes do solo, agora pedregoso e de pálida vegetação, anunciaram a proximidade com as Femiaren, que antes eram apenas como vultos observáveis ao horizonte. Sem a referência do Clahtemariaeh, apenas restou a Melikae e Zitri buscarem as Femiaren para, com sorte, encontrarem pistas a respeito de Ranemann e Atelith. Seria real os relatos dos antigos a respeito dos grandes gigantes de diamante que habitam o lugar? Estariam eles guardando a mítica Mitranil de Nuth?
“Temos que decidir para onde iremos, Zitri. Não é bom permanecermos aqui enquanto nossas amigas padecem agruras que não podemos dimensionar.” Disse o afoito Melikae. A grande galeria de paredes graníticas entalhadas com representações das atividades diárias dos Nuth impunha sobre os dois jovens homens a opressão da dúvida: qual caminho seguir? Suas mentes turbadas os fragilizara a ponto da sólida amizade entre os dois agora estar à beira do colapso. Os últimos meses de privações e incertezas sobre seguir ou não rumo as Femiaren mudou a relação dos dois jovens outrora lépidos e animosos. Desde o início de sua demanda – quando partiram dos domínios do Oráculo de Mithmard – até a chegada às portas da Nova Nutherion, muito mudou entre o que Zitri e Melikae sentiam um pelo outro. Já haviam suficientemente se distanciado de seu destino em busca de uma severa incerteza. Se Mitranil já não mais existir… a longa jornada terá sido inútil. E talvez fatal.
“-Aquieta-te, precisamos da orientação de Fyr! Você sempre me pressionando a adiantar a carroça à frente dos busemontes!” Então Zitri, buscando serenidade de espírito, respirou vagarosamente profundo fôlego e, com seus olhos azuis fechados, bradou em voz solene:
“-Ah, Senhor Atemporal que nos adverte dos maus caminhos e exorta nosso retorno ao Uno, mostra-nos agora a escolha correta em nossa demanda! Dize-nos a respeito de tua filha vidente da qual ouvimos as histórias aos pés de nossos ancestrais desde nossa mocidade! Dá-nos o sinal para onde ir, esquerda ou direita. Temos dúvidas e tememos por nossa perdição em tão escuro e desconhecido lugar o qual sobreveio o juízo da Água Súbita que se fez sobre a ganância em medida idêntica à perversidade e obstinação dos construtores do fim do período de Dissensão e dos Profetas do Caos. Te suplico pelo meu sangue e do meu amigo, dá-nos sinal para a escolha correta!”.
A voz de Zitri ecoou por toda a grande galeria granítica. Ouviram, os dois jovens, o movimentar agitado das asas de criaturas aladas que habitavam nos altos do escuro lugar. Porém, nada mais que isso. A escuridão, o frio e a umidade eram suas companhias no interior da Femiaren pois os animais alados fugiram ao ouvir a prece do jovem tremareano. Diante da bifurcação que palidamente podia ser observada pela bruxuleante luz advinda do mundo exterior à entrada da caverna, puderam ver através dela que eram mericalhos os seres alados que, assustados, se agitaram ao som da voz de Zitri. O pequeno punhal de prata adornado pelo povo da Visão com símbolos ritualísticos oraculares guardado em seu tornozelo esquerdo foi retirado para então perfurar a carne de seu ombro direito. Bem como o de Melikae. Com a ponta dos dedos da mão esquerda, Zitri misturou seu sangue ao de seu amigo e aspergiu sobre suas testas, em sinal de voto de purificação a Fyr. Em silêncio e concentração, Zitri esperava ser ouvido pelo Atemporal o qual dedicou devoção ao longo de suas vinte e duas primaveras, como foi ensinado pelo seu povo. Sua esperança residia na resposta do Senhor das Entranhas de Acheron à sua prece, pois o destino de sua demanda àquela altura dependia do inesperado sobrenatural que sempre lhe fora tão familiar dada sua intimidade com as dimensões espirituais, por conta de seu treinamento.
“ – Faz certo tempo que não ouço a voz de Fyr. Minha pedra guia tem permanecido opaca por muitos dias, Melikae. Me preocupo com isso… parece que a decisão que tomamos em trilhar tal caminho não está alinhada com a dos Maiorais. Esse silêncio, esse silêncio… Fyr se mantém silente como se não aprovasse nossa decisão. Estamos provavelmente entregues a um destino díspar ao que nos foi traçado no princípio de nossa demanda por Mithmard.”, disse desanimadamente Zitri.
“-Sim, sim. Eu não tenho crido em bom final para nós, aqui nesse buraco escuro. Essas ruínas não trazem bons presságios para quem aqui vem… o povo que outrora habitara neste lugar pereceu por ganância e orgulho. Deixaram de observar os preceitos do Uno para se voltarem para a confiança em si mesmos. Morte e destruição permeiam todo esse lugar, Zitri! Encontrar Mitranil certamente é apenas delírio de nossa vontade de salvar Ranemann e Atelith do que não podemos. A demanda delas agora é diferente da nossa… ou melhor dizendo, nossa demanda não é mais a delas. Creio que deveríamos retornar para o mundo exterior enquanto nos é possível. A trilha que nos leva de volta às bases da montanha não está longe do ponto onde estamos, nesta galeria escura.”, retrucou Melikae.
“-Incoerente é tua oscilante decisão, Melikae. Tua poesia e tua música nada tem servido para desanuviar teus pensamentos inconstantes e acalmar teu espírito constantemente perturbado. Nossa demanda não mudou. E sim, o que planejamos, como homens, é muito menor em alcance sobre nossas próprias vidas do que foi designado por Fyr e seus Irmãos. O Uno tem planos que não esquadrinhamos em nossos pensamentos finitos e egoístas. Estamos aqui com algum tipo de propósito… mesmo que seja estranho para nós, em apenas reconhecer, através das ruínas dessa cidade subterrânea abandonada, a queda daqueles que acariciaram em seus corações orgulho e ganância… para depois morrermos… ainda assim será de grande valor tal experiência. Pois te digo, meu irmão… eu não desejo nada que o Uno não queira para a minha vida.”, ponderou o devoto Zitri.
Balançando a cabeça e com as mãos sobre a pedra guia pendurada sobre seu pescoço, Zitri então direcionou seu pensamento mais uma vez para o Atemporal Fyr. Sentado em meio ao chão úmido repleto de musgos, disse mentalmente: “Oh, Senhor das Entranhas da Terra dos Carvalhos… atenta para a minha angústia de não saber o que fazer neste desolado lugar! Em meio ao cheiro de morte e angústia que permeia esse salão, mostra-me o caminho para Mitranil de Nuth. Protege-nos e guia-nos, Senhor Fyr. Ouve o meu angustiado pensar!”
O silêncio, ainda assim, era imperioso na grande galeria no interior da Femiaren.
Continua…
Capa: Richard Homola