As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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-Animal teimoso! Por que se recusa avançar? Toma! – Vociferava, o senhor do Povo das Alturas açoitando o Crafaein reticente – vais aprender a me obedecer!

Os outros haviam também interrompido sua marcha há algum tempo, se recusando a puxar as catapultas e o aríete. Não obedeciam às ordens dos homens e grasnavam nervosos. O exército, atônito, mantinha-se silente. Alguns homens também irritados tentavam puxá-los com cordas e os açoitavam.

-Se acalme, senhor. Podemos continuar sem os Crafaeins, e irmos a cavalo. – Disse nervosa, Atelith.

-Impossível. Sem eles não teremos chance de invadir os Refúgios!

O olhar desconcertado de Vatrehuh transparecia também decepção. Sem os animais abençoados não derrubariam os muros dos Refúgios e teriam dificuldades com os rebeldes que eram em maior número. Não os levar significaria fracasso certo.

Ranemann, desconfiada, andava na clareira nevoenta por entre os grandes animais observando-lhes seu semblante. Sentia uma agonia peculiar nos grunhidos e o estalar dos açoites os tornavam ainda mais irritados.  “- Algo de mau está prestes a acontecer. Posso ver o terror em seus olhos, se Melikae estivesse aqui certamente saberia deles o que se passa –“ pensava. -Por que não obedecem? O que aconteceu com esses animais? Isso está muito estranho! – Falou alto, para si. Se virando, viu Atelith ao fim do discreto aclive encostada em uma sequoia. Vatrehuh continuava a despejar sua fúria nos golpes de açoite.

E Jotuh, ao lado de seu tio, nada dizia. Apenas o observava, furioso, castigar o teimoso Crafaein.

-Senhor, não seria melhor então retornar? Ou quem sabe, enviar um destacamento a cavalo para investigar os rebeldes?

-Cala-te, Atelith. Tuas opiniões não estão sendo úteis! Precisamos dos Crafaeins! –Respondeu ele apertando as palavras que saíam de sua boca como um rosnado.

A insatisfação entre todos se avolumava quanto mais o tempo passava. Se antes o exército do senhor do Povo das Árvores havia encontrado ânimo em seu discurso inflamado para marchar ladeira acima na estrada rumo ao Norte, o medo e a estranheza agora povoavam a mente dos homens. Os gritos e grunhidos dos Crafaeins àquela altura estavam se tornando assustadores, perturbando até mesmo o colérico Vatrehuh, que decidiu parar com os açoites. Ao longe, ouviu inesperadamente a voz pálida de Ranemann gritando:

-Vatrehuh! Pare! Não o importune mais! –Disse, enquanto corria em sua direção.

-Vejam! – Alguém falou no meio da Patrulha – Está acontecendo alguma coisa nos céus!

E todos pávidos viram por entre os limites das copas das gigantescas árvores o furor dos Draquons aos gritos fazendo círculos e atacando seus batedores, lançando eles com violência no chão. Descendo em rasantes passaram a alvejar o exército e os Crafaeins, que enfurecidos também revidaram.

-Rebelem-se! Rebelem-se, criaturas escravas! Obedeçam, ou conhecerão o horror da serva Loucura que perfura a essência e escurece o coração dos desobedientes!

Assim ouviram e obedeceram os animais abençoados às palavras malévolas das árvores espiãs. E a desordem se fez ali, pois os Crafaeins e Draquons, contaminados com a seiva maldita através do malfazejo de Jotih e Atelith, lutavam entre si e atacavam a Patrulha, dizimando muitos. O sangue se misturou à nevoa que cobria estrada do Norte, e a carne dos homens se espalhou junto ao ar pesado e úmido daquela noite nefasta, num assassínio nunca antes visto desde a chegada dos homens à planície das Sequoias Colossais. O exército apavorado, debandou para o interior da floresta, mas muitos dos homens foram despedaçados pelas feras ensandecidas. Vendo toda aquela desgraça de cor carmesim, se desesperou Ranemann e inerte se manteve por um breve tempo. Consciente de sua impotência, resolveu correr para se salvar. E talvez seus queridos amigos.

Mas foi alvejada por um Crafaein possuído, sendo lançada contra a grande sequoia à sua frente. E desmaiou. Mas logo abriu seus olhos que, assustados, cravaram o semblante alucinado do animal monstruoso sedento que dela se aproximava a galope. E então Ranemann pelejou contra o malvado Crafaein. Com suas lâminas em riste o bravamente o enfrentou, e o feriu nas cochas e no pescoço. Se abaixou e saltou por três vezes se desviando de suas investidas, até cair no chão sem equilíbrio e ser agarrada. Presa, ainda assim viu Vatrehuh e Atelith acuados lutarem contra um furioso Draquon enquanto tentava escapar das garras do grande Crafaein, que tentava lhe devorar a todo custo. Até que, num golpe habilidoso cravou-lhe as lâminas na língua. O animal soltou um grunhido agudo, libertando-a.

E assim fugiu com todo o seu fôlego da fera que veio atrás em seu encalço, quando tropeçando em uma raiz caiu com o rosto sobre o chão e foi agarrada pela boca. O grito de triunfo do animal ecoou por toda a clareira, e a sacudiu vigorosamente de um lado a outro, apertando-a devagar com força crescente, como se intencionasse torturá-la. Seus olhos ensandecidos estavam opacos pelo feitiço das árvores espiãs, e podia-se ver através deles a terrível maldade de suas intenções. Permaneceu por um tempo apertando-lhe assim, e Ranemann gritava e se debatia com o desespero de quem sente o fim se aproximar na própria carne. Até não mais aguentar.

O animal percebendo que ela já não mais se movia, cuspiu-lhe no chão. Aproximando-se, umedeceu a carne gélida de Ranemann com um sopro das narinas enquanto a cheirava, saltando e gritando como se comemorasse uma vitória. E Ranemann foi abocanhada mais uma vez pela fera. Mas uma luz de súbito surgida no meio da névoa ofuscou os olhos malévolos do Crafaein, que surpreendido, soltou-lhe a perna. E lutou a luz contra o perverso animal, que resistia com arroubos violentos, até que finalmente foi por ela afugentado.

Ranemann, ao chão, continuava imóvel.

Então, a luz se dividiu em várias partes diminutas circundando seu corpo. Agitadas, puxavam-na pelos cabelos, empurravam-lhe o peito. Levantavam suas pálpebras e adentravam as narinas e ouvidos na tentativa de despertá-la, gritando com urgência as mesmas palavras ininteligíveis de sua última visão. Finalmente, Ranemann abriu os olhos. Tossindo vigorosamente, escarrou sangue. A dor intensa no lado a impedia de sentar, mas prontamente foi ajudada pelos fragmentos da luz defensora, que a puxou pelos braços.

-Não entendo o que dizem! – Gritou chorando – me deixem! Me deixem cumprir o Ciclo aqui!

Sem se importar, a luz insistente no falar a empurrava agora pelas costas, como quisesse tirá-la dali. Ainda atônita e chorosa, deixou-se levar por ela. E indo a favor do declive ao largo da estrada que levava ao Norte da Planície, caminhou trôpega Ranemann junto à luz defensora.

-Ranemann! Viva está! – A voz reconhecível a fez virar para trás.

Porém, tão logo viu Jotuh vindo ao seu encontro, foi puxada pela luz que dividiu mais uma vez, e um grupo foi na direção dele enquanto o outro seguia Ranemann, que sem nada entender tentava ainda se desvencilhar. Sem sucesso.

-Jotuh! Que feitiçaria é essa? – Os muitos fragmentos eram como moscas irritadas e as feriam na carne. Ranemann, rechaçada, descia correndo o interminável declive, deixando o homem para trás, que se ocupava também com eles. Mas o grunhido grave seguido de um estrondo interrompeu sua fuga forçada. Um grande Draquon surgiu à sua frente, derrubando galhos e levantando poeira. E movimentando lubricamente seu longo pescoço, a encarou com a mesma malevolência do perverso Crafaein que quase lhe tirara a vida.

Imediatamente as luzes fragmentadas voaram até a altura dos olhos do animal, ameaçando-o com maldições incompreensíveis. Ele, nervoso, ficou quieto, rosnando. “-Essa luz… me protege! Senhor de Bel, o que está acontecendo aqui?!” – pensou Ranemann enquanto se afastava o mais rápido que podia do animal imóvel. Até encontrar com Jotuh, que também livre, a esperava no fim do declive.

-Homem! Estais bem? Disse eufórica e engolindo lágrimas, buscando fôlego. – Já corri por essa floresta por tanto tempo, que não sei onde estou! E Vatrehuh e Atelith!? Temos que encontrá-los!

-Uma coisa de cada vez, minha cara. Vi a sua luta feroz contra o Crafaein. Saíste bem! Quanto a mim, quase também sucumbi contra aquele maldito Draquon que me perseguia – respondeu-lhe sentando – está tossindo muito!

-Meu lado está partido. E acho que perdi dentes. – Cada golfada de saliva que ela lançava vinha misturada a sangue carmesim. – Como dói!

-Não te movas muito. Devemos descansar. Mas não sei o quanto estamos longe do arraial, e é perigoso ficar aqui. Aquela fera não deve estar muito longe. Quanto a Vatrehuh e Atelith, não sei deles. Pois os perdi de vista desde que o Draquon me perseguiu.

-Só escapei por causa da estranha luz que nos atacou. Ela lutou contra o Crafaein e amedrontou o Draquon – Parou um pouco de falar, tomando fôlego. – O que houve com esses animais? A luz dizia algo que não entendia. Mas certamente ela nos protegeu. E eu senti. Havia algo de maldoso na estrada. Os animais sabiam disso, mas de repente se tornaram loucos. Como se tivessem sido possuídos.

-Existem muitos mistérios por essas terras. Não conheço por completo a vastidão de nossos domínios. Nem as forças malignas ocultas que aqui habitam.

Ranemann ouviu Jotuh, mas não respondeu. Estava exausta e até o falar lhe cansava naquele momento. Mas sua respiração ofegante não a impediu de lembrar de sua infância em Thelim, onde ouviu pela primeira vez a respeito do Leste, quando as Cfridhyuam1 deixaram de aparecer no pequeno jardim de sua casa e Claekuth lhe afagando os cabelos falou a respeito do mal que ali habitava. Porém, todas as histórias que ouvira dali eram contadas por seus pais em tom de fábulas, pois Thelim havia rompido com a casa de Trohtayideh já na sua infância e os oraculares evitavam falar do assunto. E, sentada naquela clareira dos domínios desconhecidos do Povo das Alturas, admirou mais uma vez as árvores ancestrais que um dia foram amigas dos homens. Árvores que um dia foram protegidas por eles e os ajudaram em diversos momentos de grande necessidade. Lembrou da célebre história sobre a esperteza de Nartreg e a astúcia das três sequoias cantoras na emboscada contra a salamandra Phitioh do Maphion e de outras histórias fantásticas daquele lugar que sempre povoaram sua imaginação. “-Uma pena, que após quatro gerações de homens, a floresta minguou e os animais se foram! Vatrehuh sempre me avisou contra feras e homens degenerados. –“ Pensou ela, suspirando. Mas agora, sem a beleza das flores e a gentileza dos insetos, o Leste se escondia do resto de Acheron na escuridão perpétua que pesava sobre as grandes copas das sequoias e coníferas. E dos poucos baobás que apenas ali ainda subsistiam.

Assim permaneceu sentada junto a Jotuh em silêncio por um tempo, respirando a névoa espessa que se misturava ao cheiro das folhas das árvores. Enfim, disse:

-Não podemos permanecer aqui. Temos que decidir o que fazer.

Ele não se virou. Com os olhos fixos no chão, respondeu:

– É mais prudente retornar ao palácio. Espero que Vatrehuh e Atelith tenham a mesma ideia. Está preparara para caminhar? Não devemos estar longe. Mas o caminho é perigoso. Aqueles animais… existia ódio e insanidade em seus olhares!

-Sim, eu vi. Alguma força malévola os influenciou. Disso tenho certeza. Eles estavam em princípio apavorados. Mas depois, certamente foram possuídos. Existe um grande mal habitando aqui, Jotuh. Temo por minha irmã, e Vatrehuh. Enquanto o Crafaein me perseguia, os vi lutar contra um Draquon. E havia sangue nos olhos do terrível animal.

-Tomara que nada de pior tenha acontecido a eles – respondeu ele baixinho.

Ranemann levantou. – Para onde ir? – Disse, olhando ao seu redor, virando as mãos. – Corremos sem direção por um bom tempo! Estamos perdidos!

-Não tenho ideia. Mas temos que arriscar. – Hesitante, ensaiou alguns passos após pensar a respeito. – Por ali.

Seguiram então os dois. Ranemann ia trôpega por conta das dores em seu lado e perna. Andaram por um tempo por entre as árvores, caminhando em linha reta. A floresta estava silente, sem sinal de homens ou animais, e o que eles ouviam era apenas o farfalhar das folhas das grandes samambaias aos pés das árvores, pois uma brisa por vezes percorria os corredores de troncos da floresta ancestral. Cansada e já não mais suportando as dores, pediu Ranemann para descansarem um pouco.

-Devemos continuar. Se quiser, posso lhe ajudar. Apoie-se em meu ombro – retrucou ele, apreensivo.

-Por favor, Jotuh. Preciso dormir um pouco. Pernoitemos aqui. Não tenho como continuar. Certamente o amanhã me renovará as forças. Mas hoje, não… não mais.

Então descansaram ali, Jotuh e Ranemann, ao redor da fogueira acesa por ele. Jotuh decidiu fazer a vigília até a escuridão diminuir anunciando o dia. Pois naquelas terras era assim. A noite era perpétua, e o sol não conseguia romper totalmente a escuridão desde os tempos de Trohtayideh.

E Ranemann, já deitada em silêncio, sentiu sua mente esvaziar de súbito e para ser preenchida pela bondade do Uno. “-O meu bem te basta.-“ Foi o que ouviu em seu coração antes de cair em pesado sono. Lembrou mais uma vez de como havia chegado ali. De todas as aventuras com seus amigos no Oeste até a Floresta Escura. De como sobrevivera ao ataque do temível tomasco olhos-de-galho. E de como chegara ela e Atelith àquelas terras míticas. E de como finalmente tinha parado ali, deitada. A luz que a auxiliou sumira. Mas a voz do Uno em seu coração lhe dava naquele momento uma segurança de que mais uma vez se encontrariam.

E com esse pensamento, dormiu Ranemann naquele lugar desconhecido da planície das sequoias colossais.

Continua…


1 – Cfridhyuam: as borboletas migratórias do Leste. Antes mensageiras das árvores. Dizem os Antigos que após o Caos em movimento contaminar a terra e ouvir o que em secreto as árvores amigas confabulavam em agonia, resolveu enviar micostos assassinos que habitavam na Floresta Escura para dizimar as correntes migratórias das borboletas do Leste quando estas estavam nos campos do Maphion, investigando os conchavos de Atheran e Gwinvein com os rebeldes de Celhin à época de Phitioh. Assim, pouco a pouco as belas borboletas que carregavam em suas asas os olhos do Maioral Gorath foram mortas até a quarta geração dos homens após a descida da Água Súbita, quando finalmente desapareceram de Acheron.