As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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Arte da capa: lnsan1ty


-“Está morto?” Questionou a menina ao pai. “– Certamente não… pois está respirando.” Respondeu o velho homem. Sabretil caçava no vasto derredor de sua pequena fazenda quando encontrou perto da viração do dia Zitri desacordado. Assustada, gritou por seu pai Damonih, que rapidamente foi ao encontro da menina mesmo a despeito de suas cabras e ovelhas estarem fazendo alvoroço para não adentrarem à cerca de sua modesta propriedade. Enquanto pai e filha o observavam admirados, Zitri finalmente abriu os olhos. E após alguns segundos fitando os olhares de ambos, o mago – com certa dificuldade – disse:

“-Onde…onde estou?” Perguntou o apreensivo Zitri, tentando levantar-se. A menina e o velho então prontamente seguraram o jovem pelos braços para ajudá-lo e ficar de pé. Zitri ainda cambaleante, apoiou-se nos ombros do homem respirando ofegante, e com os olhos voltados para seus pés disse:

“-Pensei que finalmente tivesse cumprido o Ciclo. Mas certamente esse lugar não pertence aos domínios de Fyr…” O velho homem – um tanto desconsertado pelas palavras do mago – respondeu: “muito longe disso.

“-Vivo estais. E esse não é o Outro Mundo Inferior…  essas terras chamam de Makalabeth. Ali ao largo do norte estão as Femiaren. E a vastidão do leste segue para as malévolas terras orientais. Se fores ao oeste encontrarás o Acherontis. Viste? Bem diferente do que dizem a respeito da morada de Fyr! Mas, segura na minha mão… estai fraco. Deixa eu te ajudar a caminhar.”

Zitri então tomou apoio nos braços fortes de Damonih e começaram a caminhar lentamente em direção a sua pequena cabana ao sul.

“-Vamos, o dia já terminou tem algum tempo. Não é seguro ficar por aqui. Feras e criaturas malevolentes tem assolado essa região desde que os pântanos pútridos surgiram ao redor do Rio Primordial. Enquanto o homem auxiliava Zitri a caminhar, Sabretil ia com eles ia observando admirada as vestes do mago.

“-És nobre? Tuas vestes são ornadas de fino tecido! Te ajudam no frio? Parecem ser confortáveis. Lembram as feiras em Thelim! ” Perguntou a impetuosa jovem menina ruiva que observava o mago minuciosamente dos pés à cabeça enquanto caminhava. “-Não nobre de família… mas de essência e de labor.” Respondeu Zitri, suspirando com certa dificuldade.

“-Sou agradecido ao Uno por estar vivo, pois certamente o fato de aqui ainda estar é graça dada por Ele.” Continuou o mago enquanto intrigado pensava consigo a respeito da menina ter citado o vilarejo dos oraculares.

“- De onde vieste? O que aconteceu contigo para estar caído no campo? Algum ser malévolo te atacou? Ou homens degenerados? Por aqui as coisas não são seguras e saiba que realmente foi providência do Uno que Sabretil tenha te encontrado ainda vivo. Quando o Sol se esconde, o Makalabeth se torna perigoso. Vamos rápido… já estamos chegando em casa. Não é bom estar andando por essas terras quando a noite cai. Respondeu Damonih um tanto apreensivo enquanto apertava o passo.

Sem muito ponderar a respeito da situação, Zitri se deixou levar pelo velho homem e a jovem. Seu corpo estava fraco pela luta contra os Mahims e os mericalhos. Enquanto caminhavam, agradecia em prece silenciosa ao Uno por miraculosamente ainda estar vivo. Porém, não podia fazer o mesmo por Melikae. Seu amigo ficara para trás no interior das montanhas sozinho, em meio a uma nuvem de odiosas criaturas servas do mal que se apoderou de Acheron. Provavelmente Melikae sucumbira à demanda. E se vivo ainda estivesse, suas chances de sobreviver sem Zitri eram agora ínfimas.

“-Venha…entrai. É simples, mas aqui estarás seguro. Estai sujo e cansado…e certamente tendes fome. Minha filha te mostrará onde podes te lavar…logo ali atrás existe um poço com água limpa…e poderás te banhar. Sabretil! Mostra a ele onde fica! Enquanto te preparas, vou arrumar nossa ceia. A propósito, andarilho…como te chamas? Disse o velho homem de grande barba branca abrindo a porta da cabana.

“-Zitri, de Ziporih…dos Tremares. Respondeu o mago, cumprimentando-o com a mão. “-Me chamam de Damonih. Vivo eu e minha filha Sabretil aqui, nessa humilde casa… nos campos do Makalabeth. Mas anda, és hoje nosso convidado… e aprendi com os meus a receber bem os andarilhos que percorrem a vastidão da Terra dos Carvalhos. Hoje comerás e dormirás bem. Logo mais conversaremos.”

***

O cheiro vindo da panela aquecida aguçou o paladar de Zitri sobremaneira. Afinal, há vários meses o mago não se alimentava de nada que não fosse as escamas dos peixes oraculares de Mithmard. Já banhado e sentado à mesa, o mago observava atentamente Damonih acrescentar ossos ao ensopado aquecido no fogo da pequena lareira. “Aprecias uma sopa de ossos com cebolas e batatas? Cai bem para uma noite primaveril como essa. Ainda temos pão e algumas maçãs. Enquanto tomamos a sopa, vou assá-las nesses espetos. Sabretil… arruma a mesa! Ainda não o fizestes? Ai ai, perdoai minha filha… é sempre desatenta… e não costumamos receber visitas… desde que chegamos até esses campos, poucos são os que passam por aqui.” Disse o velho impaciente, enquanto colocava o caldo apurado nas tigelas.

A pequena moça ruiva observava o mago com os olhos fixos em como ele com avidez tomava o ensopado. “-Pelo Uno… estais mesmo faminto!” Disse Sabretil, admirada.

“-Sabretil! Isso é inconveniente! Anda, pegue pães e cerveja! Tire também o miolo das maçãs bem no centro! Recheá-las é comigo”. Disse Damonih, repreendendo a filha.

“-Deixai a menina. Estou realmente faminto! E a fome aqui é o melhor tempero para tudo o que comerei convosco nessa noite. Não se irrite por ela e muito menos por mim, pois agradecido estou em muito ao Uno e a vocês por tamanha hospitalidade para com um desconhecido como eu.” Disse Zitri, atravessando com a faca uma pedaço de batata no interior da tigela e levando-o rapidamente à boca.

“-De longe estar irritado por demonstrar sua fome. Coma à vontade, pois ainda podes repetir o ensopado se assim o quiseres. Mas, tenho que lhe perguntar, Zitri dos Tremares… como vieste parar desacordado aqui, longe das terras do povo dos cavaleiros? O que te aconteceu? Esses campos estão repletos de perigos… homens degenerados andam por aqui desde que aqueles pântanos pútridos surgiram no Acherontis há pelo menos seis anos.” Questionou Damonih, ao mesmo tempo que preenchia o centro oco das maçãs com manteiga, mel e passas.

“-Bem, não posso dizer-te como cheguei até aqui. Nem mesmo como vivo ainda estou. Estava no interior das Femiaren com um amigo, quando fomos atacados por mericalhos e eles me levaram, assim nos separando. Depois disso… o que sei, tu também o sabes.” Respondeu um tanto apreensivo Zitri, observando Sabretil andar pela cozinha enquanto trazia pães e uma garrafa generosa de cerveja.

Damonih parou um instante atentar para as maçãs que assavam no fogo ao ouvir Zitri e se virando rapidamente, disse. “-Estavas nas Femiaren? Digo, no interior delas? São cerca de dez dias de caminhada perigosa daqui até lá, pois além de salteadores e homens de sangue ruim, ainda existem feras e essências dos que pereceram e não puderam adentrar nos domínios do Senhor das Entranhas da Terra dos Carvalhos… e as grandes rochas que protegem as Terras Proibidas escondem os furtivos Mahims. Dizei, andarilho…o que fazias por tão perigosos lugares? Viste ao menos as ruínas da cidade do povo artesão? O que fazias lá?”

“-Ah, meu generoso anfitrião! Sobre esse negócio tenho que dizer-te que delicado é revela-lo. Mas, creia… o que lá eu e meu saudoso irmão fazíamos era buscar o paradeiro de outras duas irmãs, que desapareceram de nossas vistas quando fomos atacados por homens degenerados as margens do Samehim1 e desacordados fomos levados pela correnteza do rio ao que creio ser o Maphion, onde pudemos ver os zigorath… andamos eu e meu bravo irmão Melikae por dias a fio, enfrentando perigos e sendo perseguidos por homens tomados pela maldade do Caos em movimento até as portas da Nova Nutherion! Lá dentro, em meio a escuridão e incerteza, avançamos até finalmente encontrar a grande cidade dos artesãos…em ruínas e desabitada. Por fim, fomos atacados por oito Mahims de diamante2 e mericalhos no interior do Templo da Grande Serpente, e os mericalhos acabaram me levando para os altos da grande caverna que esconde a cidade… e depois disso, o resto te é conhecido… me encontrei deitado, sendo observado por tu e tua filha!” Disse Zitri ao velho homem, já se sentindo mais à vontade ao terminar a terceira caneca de cerveja.

“-Que relato fantástico! Parece as histórias de heróis que ouvimos em Thelim! Falou eufórica Sabretil enquanto servia as maçãs já ao ponto. Você, andarilho… deve ter conhecido muitos lugares por suas andanças…e deve ter muitas histórias para contar a respeito!” Sentada ao lado de Zitri, a jovem pequena de pele tatuada e clara e arregalados olhos azuis como as águas do Grande Mar sorriu enquanto partia pão preto em pedaços pequenos para assim dividí-lo com seu pai e o convidado.

“-Nem tantas, assim… minha jovem e bela moça. Na verdade, minha vida até certo tempo era monástica, pois fui instruído a devoção ao Uno e aos seus Filhos. Porém, vocês devem saber… que Acheron jaz em desordem. E é dito que o Caos em movimento convocou sua serva Loucura para assim subjugar nosso mundo. Apesar dos simples não possuírem conhecimento profundo sobre o Livro dos Dias…aquele que se dispõe a estudar as predições dos Antigos e é um bom observador dos sinais dos tempos, compreende que a Terra dos Carvalhos está à beira de ser dominada por forças malévolas de poder incomensurável… e se nada for feito a esse respeito, sobre nossas terras recaíra eterna escuridão. E eu… eu tenho lido a respeito disso… e me preocupado! Mas, vamos falar de outra coisa… já falei bobagens demais, pois posso sentir os efeitos inebriantes da bebida no meu falar! Disse Zitri, finalizando a quinta caneca transbordante de cerveja.

“-Vai devagar com a bebida, andarilho. Sei que essa ceia deve ser para ti como manjar, já que não te alimentas bem há tempos. Come a maçã… a doçura do mel vai neutralizar parcialmente os efeitos intoxicantes da cerveja. E não bebas mais… pois amanhã vamos continuar essa épica conversa…ah ah ah! Aceitas um trago? É uma boa erva… há uns dias passaram por aqui mercadores que como tu se hospedaram conosco e por conta da minha hospitalidade a eles oferecida me presentearam com algumas especiarias e essa erva. Provai!” Perguntou gentilmente Damonih a Zitri, oferecendo seu cachimbo já aceso enquanto partia as maçãs.

“-Obrigado, meu velho e bom homem… nunca fui afeito a tal hábito. Mas não te importes comigo! Aprecia tua erva à vontade… pois o cheiro adocicado dela me é muito agradável. Na realidade, preciso urinar… ficai aí que já volto, pois vou lá fora fazer isso. “ Respondeu Zitri, levantando-se e mordendo o último pedaço de maçã.

Ao retornar, Damonih estava sentado e fumando seu cachimbo com o semblante sereno. Já parcialmente recuperado dos efeitos do álcool, Zitri se manteve ao lado de Sabretil em silêncio. Enquanto a jovem fitava com um discreto sorriso o mago, também silenciosamente bebia e comia alguns pedaços de pão. A alegria transitória provocada pela ingestão excessiva da cerveja havia diminuído a atenção para os anseios do jovem tremareano. Novamente sóbrio, voltara assim a pensar em Melikae. “Pobre amigo.” Disse consigo. A angústia pela perda do bardo contador retornou à mente de Zitri, em muito entristecendo-o. Sentia falta de seu irmão. Sentia falta de sua devota vida com os seus irmãos do templo. Não compreendia a vontade do Uno por ter perdido seus amigos, e também estar na companhia de estranhos e há muitos dias de casa. A demanda finalmente parecia ter chegado ao fim para Zitri e Melikae. Suas preces no interior das Femiaren foram em vão. A pedra guia não os auxiliou… e assim o mago estava sem os seus. Apesar de Damonih e Sabretil o terem acolhido, sabia que ali não permaneceria por muito tempo. Porém, também não sabia o que fazer agora que perdera Melikae, Ranemann e Atelith. Naquele momento, Zitri sentiu-se perdido e sem rumo. Foi então que o jovem com clareza de mente pode observar o ambiente com mais cuidado.

“-Que ossos são esses pendurados nas paredes?” Indagou Zitri curioso.

“-São de feras e homens de sangue ruim que andavam por aqui. Como disse, o Makalabeth não é um lugar seguro de se viver, e temos que nos defender como podemos. Estamos vivos ainda pela graça do Uno e por nossas habilidades contra os perigos desse lugar. São lembranças para atentarmos sempre quanto ao iminente mal que pode sobrevir a nós.” Respondeu Damonih mudando a expressão de seu rosto, enquanto tragava a fumaça do cachimbo e arrumava suas cãs.

“-Não estamos aqui por acaso, andarilho. Sofremos demais por ter que abandonar nosso lar onde tínhamos alimento e água à vontade até os homens degenerados aparecerem. E vez ou outra eles estão por essas bandas. Os tempos são difíceis, e por vezes até os que passam por aqui e que parecem ser de boa essência já atentaram contra nossas vidas. Essas terras também escondem bestas que esses homens de sangue ruim têm usado para dizimar os que ainda mantém vida simples e correta aos olhos do Uno!” Grandes cães dóceis que outrora nos protegiam em troca de comida passaram a ter medo de nós agora vem nos assaltar durante a noite. E os lobos, no inverno… descem as montanhas e aqui chegam para caçar nossos animais… as bestas – que antes dizia-se serem animais abençoados – agora vez ou outra também nos atacam. Mas apesar disso, temos sobrevivido.” Disse Sabretil com uma expressão reflexiva, interrompendo subitamente seu silêncio.

“-A essência maligna desses homens tem se apoderado dos animais que aqui habitam…e creio que até as criaturas abençoadas que ainda vivem no Makalabeth tem sucumbido a ela. Os belos Crafaein3 que ainda podem ser vistos por essas terras são agora agressivos e tornaram-se caçadores. Pode-se ver com frequência homens de sangue ruim montados sobre eles, em bandos. Matando. Nosso pequeno rebanho de ovelhas e cabras foi praticamente dizimado por eles. E algumas vezes estive em grande perigo. Olhe… ali… o crânio de um. Era grande, e perdemos alguns dos nossos animais por sua causa. “ Falou Damonih, apontando para o grande crânio fixo na parede repleta de ossos e outros objetos.

O crânio dependurado sobre a porta do pequeno cômodo era volumoso e maciço. Ao redor dele também estavam depostos crânios e ossos de homens. “Que tipo de gente guardaria crânios no interior de suas casas?” Pensou Zitri, assustado. Existiria alguma razão obscura para aquele velho homem e sua filha terem o acolhido? Tais pensamentos produziram naquele momento medo e grande desconfiança no jovem mago, que procurou discretamente com as mãos sua pequena bolsa na cintura, sem, no entanto, encontrá-la. “Talvez eu esteja em apuros, mas certamente estou indefeso… pois não sei onde esconderam minhas coisas” Refletiu Zitri, pegando o último pedaço de pão na mesa, enquanto era observado atentamente por Damonih e Sabretil.

“-Creio que seja boa hora para descansar. Já está ficando tarde. E amanhã devemos acordar cedo. Espero que tenhas se regalado com a ceia e nossa companhia. Caridade… já diziam meus pais… é dom para ser exercitado! Minha filha mostrará onde dormirás. Que o Uno nos proteja da hoje.” Disse o velho homem, levantando-se. “-Venha!” Damonih então puxou Zitri pelo braço e o abraçou. Assim, Sabretil levou Zitri para os fundos da cabana.

***

“-Acorde! Acorde!”

“-O que… o que houve? Disse Zitri, abrindo os olhos assustado.

Sabretil fitava os olhos de Zitri atentamente enquanto agitava o ombro do mago que dormia sobre a palha. Estava escuro ainda no interior do pequeno celeiro, porém podia-se ouvir ruídos vindos de fora. “-Venha, deixa eu te mostrar. Vamos para fora… mas não faça barulho!” Disse baixinho a moça. Zitri de sobressalto levantou-se e a acompanhou. Os dois caminharam então por alguns minutos pela propriedade. Ainda era alta noite, porém o firmamento estava iluminado por conta da luz branca da Lua que também refletia sobre a grama úmida. “-Por aqui, e vamos nos abaixando… pois não quero que nos vejam.” Sem compreender o que estava acontecendo, Zitri desconfiado, acompanhou Sabretil.

“-Veja… ali. Pode ver as luzes vermelhas?” Sussurrou a jovem. “Sim. O que significam? Parece ser tochas acesas.” Respondeu, o desconcertado Zitri.

“-Eu não sei ao certo. Mas com frequência ouço os barulhos, e venho aqui fora e elas estão lá. Algo me diz que coisas ruins estão prestes a acontecer por essas terras. Não pretendo seguir o leste para descobrir, mas parece ser um ajuntamento. Já vi homens degenerados passarem por aqui em grupos, e até levando também Draquons* e Crafaeins enjaulados. Estão para além do Makalabeth… ali, dizem que habita um grande mal, a quem chamam de Caos em movimento.” Disse a jovem.

“- A Floresta Escura fica naquela direção? Perguntou – tornando o semblante gélido – Zitri. “-Isso eu não saberia responder. Mas esses barulhos… me lembram os de tambores… e me perturbam. Já comentei com meu pai a esse respeito, porém ele me disse para não me importar com isso e cuidar de nossas vidas, pois nada podemos fazer. Porém, ao ouvir suas histórias hoje na ceia do jantar… por algum motivo senti que pudesse te mostrar.”

“-E fizeste bem nisso. Mas é uma pena que não estou com minha bolsa, pois lá possuo coisas que me auxiliariam a compreender o que estamos presenciando aqui.” Respondeu baixinho o mago, atentando para o barulho que ouvia ao longe. “-Infelizmente tuas coisas estão com meu pai. E eu não sei onde ele possa as ter guardado. Mas não te aflija por isso. Temos que nos proteger de gente ruim. No entanto, em nenhum momento senti maldade vindo de ti. Muito pelo contrário… por esses dias tive sonhos sobre pessoas perdidas e famintas. Da maneira como devoraste a ceia hoje, certamente eras tu quem estava neles. A nuvem escura que ontem avistei pela tarde no horizonte deve ter sido um sinal. O que realmente fazias nas Femiaren?” Perguntou Sabretil.

“- Como te disse, estava à procura de minhas irmãs. Mas fracassei na busca, e não sei o que pode ter acontecido a elas.. e meu amigo já vivo não está. Falaste de Thelim…tu e teu pai. Já visitaram o povo da Visão? A vila deles está bem longe daqui. E vim de lá com meus amigos para esses lados de Acheron. Quanto a esse barulho e essas luzes, boa coisa não é. Apesar de não estar com a minha pedra guia, facilmente sinto que poderes malévolos estão envolvidos nisso.” Respondeu Zitri.

Enquanto o jovem e a moça observavam a movimentação e ouviam o som dos tambores, os pequenos seres alados portadores de luz que estavam passeando no campo surpreendentemente se aproximaram de Sabretil e passaram a circundá-la em uma espécie de reverência. “-Suas tatuagens…estão brilhando. Os vagalumes estão te cortejando. Dizem os Antigos que eles são lembranças da Alegria de Orath.” Disse Zitri, admirado.

A pedra escondida no casaco de peles de lobo de Sabretil então passou a brilhar emitindo uma luz azul. Desconsertada a jovem olhou para seu dorso, retirando-a. “-É sua. Toma.” Zitri, em silêncio então pegou a pedra guia. “O que significaria aquilo?” Pensou o mago. A surpresa de conseguir de volta seu importante artefato fez o jovem mago sentir-se confuso quanto o caráter da moça. Mas sua doce beleza era acalentadora, e não conseguia enxergar malfazejo em tal ato.

“-Olha, isso estava em teu pescoço e tomei não por mal. Em meus sonhos, o homem tinha uma pedra que brilhava em vermelho e amarelo. E a pedra azul está… diz para mim, eras tu quem falavas comigo enquanto dormia? Tinhas sede de hidromel? Quanto a Thelim, em nossas andanças, já a visitamos…eu e meu pai. Ele tem amigos por lá.” Perguntou Sabretil, se aproximando de Zitri enquanto o encarava.

“- Não posso te responder isso, moça. Mas sim, estava eu em perigo onde a luz não podia chegar. E claro que tinha fome e sede de boa comida e bebida. Deixa eu te dizer… não confie em demasia nos sonhos… pois eles algumas vezes refletem nossos anseios mais que avisos do Uno e dos Maiorais.” Respondeu Zitri.

“-Então vamos voltar ao celeiro… lá tem hidromel. Uma ânfora está lá há uns dias e já deve estar fermentado. Talvez esteja ainda bem doce, mas creio que já dê para beber sem fazer mal ao ventre. Vamos com cuidado!” Disse a moça, tomando o mago pela mão.

No celeiro e já sentados, Sabretil, serviu Zitri com uma caneca de hidromel. “-Hum, temperado…” Disse o jovem. “-Meu pai tem cuidado com o que comemos e bebemos. Pode tomar e se quiser mais, a ânfora está cheia.” Sabretil então levantou-se e abriu a janela, e virando-se para o mago tremareano disse:

“-Sabe, andarilho… o firmamento iluminado pela irmã do Sol me inspira a grandes aventuras. Gosto de acordar de noite e olhar o que se passa da minha janela nesses campos desde que chegamos aqui. E certa estou que algo grandioso está prestes a acontecer por essas terras. Meu pai sabe contar muitas histórias dos tempos heroicos da nossa raça. E eu e minha mãe sempre o ouvimos durante a ceia. Por conta disso, passei minhas dezoito primaveras me imaginando em grandes negócios, e hoje tuas histórias me admiraram em muito! Entretanto, desde que minha amada mãezinha pereceu nas mãos daqueles malditos homens degenerados, meu pai cessou as histórias e se tornou amargurado. Teus relatos em muito me lembraram o que ouvi dele até cerca de três anos atrás.

“ Ele não me pareceu um homem triste. É gentil e tem energia. Tenho treinamento para te dizer com segurança que a tristeza não o domina. Hum… Esse hidromel é de boa qualidade!” Disse Zitri enquanto tomava um bom gole da reconfortante bebida.

O riso e a bondade são boas armas contra a tristeza e a melancolia e meu pai sabe usá-las bem principalmente quando está na companhia de hóspedes. Ele e minha mãe adoravam receber visitas de amigos quando habitávamos na vila de pescadores. Mas isso se foi há tempos. Olha, quero te pedir uma coisa… quando partires, permita que eu vá contigo… por favor. Em minha essência, sinto que meu destino não é ficar aqui, cuidando de cabras e ovelhas e da comida de Damonih. Ele já é ancião, mas deve saber viver bem sozinho… pois é homem feito. Disse Sabretil, sentando ao lado de Zitri e segurando sua mão direita com certa força, enquanto fitava seus olhos.

Admirado da determinação da jovem, Zitri em silêncio finalizou a generosa caneca de hidromel. Enquanto em silêncio olhavam-se olho no olho, o luar que invadia o celeiro trouxe mais uma vez os vagalumes ao derredor dos dois jovens. Existiria algum motivo escuso naquele pedido de Sabretil a Zitri? Que luzes eram aquelas que viram na calada da noite lá fora? Que barulhos também eram aqueles? Por que a pedra guia brilhou em azul juntamente com os vagalumes e as tatuagens de Sabretil? Seriam os sonhos dela avisos? Com essas perguntas em sua mente afetada pelos efeitos ébrios do hidromel, Zitri de Ziporih dos Tremares se aproximou da jovem, e afagando seu cabelo macio, disse: “-deixai o Uno resolver isso por nós, moça do povo pescador. E vamos descansar, que logo mais o Sol anunciará a parte clara do dia. Volta para tua casa, que não sei se teu pai ficaria satisfeito de saber que estais comigo a essa hora aqui no celeiro, bebendo do seu hidromel. Com um sorriso aparentemente sincero nos lábios, Sabretil se levantou em meio ao iluminar de suas tatuagens delicadas. E beijando as mãos de Zitri se despediu dizendo:

“-Irei agora, príncipe dos Tremares. Mas logo mais pela manhã nos veremos de novo.”

E se retirou.


Continua…

1-Assim chamado o Acherontis pelo povo cavaleiro. “ A água que torna.” Dizem os antigos que os de Tremares em muito temiam o retorno da Água súbita dos relatos no Livro dos Dias, pois o Rio Primordial subiu à Terra dos Carvalhos a partir de tal evento formando assim o Grande Mar.

2-As informações são conflitantes quanto a tais criaturas. Em crônicas e baladas do povo das Terras Proibidas é dito que seus guardiões eram de pedra e ferro. Mas Zitri constatou que eram na verdade de cristal. Porém, é dito no imaginário dos homens da Era do Declínio que os Mahims eram de diamante.

3-Dois animais outrora abençoados que habitavam os Bosques de Bel. É dito pelos Antigos que os dóceis Crafaeins com suas coloridas penas e grandes garras foram dominados pelo mal tentacular do Caos em movimento e subjugados pelos homens degenerados e essências malevolentes para assim devastarem os homens de sangue bom que ainda restavam em Acheron. Já os Draquons eram utilizados como caçadores furtivos e montaria alada e se diz que seu sangue odioso se tornou ao serem levados aos pântanos pútridos que surgiram ao redor do Rio Primordial.