As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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 “-Beba devagar. Está bem quente.”

-“Obrigada. És gentil, homem das alturas.* Minha essência está feliz por ter algo saboroso à mesa após ter estado bem próxima de cumprir o Ciclo. Certamente minha irmã também sente o mesmo, não é Atelith?“ Disse Ranemann, segurando a caneca e sorvendo com cautela o chá quente de ervas e sementes moídas.

“-Pelo Uno, sim! Essas terras sombrias e desconhecidas se revelaram hospitaleiras de um modo que não esperava!” Respondeu Atelith sorrindo sem graça, enquanto partia com avidez torradas de pão envelhecido quente untado com banha.

-“Como foi o ataque? Saíram com meus irmãos para acompanha-los até os limites de nossas terras onde os visgos crescem em abundância… e depois? Não consigo compreender… estavam montados em dois Crafaeins! Um único golpe dos animais teria acabado com todos!” Disse nervoso Jotuh, com o semblante franzido enquanto sentado em uma cadeira longe da mesa cruzava as pernas.

“-Engana-te. Os bárbaros eram em número maior. E possuíam flechas e fogo. E até creio que fora através de feitiçaria que as inflamaram! Os Crafaeins se apavoraram com o fogo… e nos lançaram ao chão. E eles nos assaltaram! Por providência do Uno eu e minha irmã escapamos… porém teus irmãos foram capturados. E os animais cercados. Mas se Melikae e Zitri estivessem conosco, teríamos saído vitoriosas da emboscada.” Respondeu Ranemann, tornando seu olhar ao chão, pensativa após tomar um gole do chá.

O rapaz franzino ouvia atentamente a voz da jovem vilca enquanto ela contava o ataque dos homens do leste. Arrumava seus cabelos castanhos longos com frequência olhando para Vatrehuh, que retribuía fitando-o entristecido pelo que acontecera. Após alguns minutos de silêncio, o líder do Povo das Árvores* disse:

“-Não falemos mais disso por hora. Comam, o que tenho é mais do que suficiente para todos nós. Os tempos aqui tem sido difíceis. Mas nosso povo tem subsistido a maldade do Caos em movimento por proteção do Uno e nossa engenhosidade. Por isso não temais, estamos todos seguros. Os bárbaros que as atacaram não chegam até aqui. Mas sinto tristeza por Mafura e Jotih. Que estejam protegidos pelo Uno. Mas creio que não sobrevivam. De qualquer modo, meus homens estão em sua busca. ”

No interior da cozinha de Vatrehuh, as jovens guerreiras estavam finamente tranquilas após a perigosa emboscada que sofreram junto aos seus sobrinhos. Enquanto comiam, a janela aberta da pequena casa no alto da grande sequoia trazia o vento frio e a névoa que permeava constantemente toda a planície, bem como a luz amarela que combatia a escuridão do lugar.

“- Aqui sempre é noite? Na Floresta Escura, a luz do Sol não penetra por conta dos carvalhos que a impedem com suas copas secas espessas. Mas aqui, podemos ver o firmamento. Assustadoramente negro e sem luminares. E essa luz pálida amarela que se mistura à névoa… me produz frequentes arrepios. Dizei, líder do Povo da Árvores… a que se deve isso? Perguntou curiosa Atelith, se dirigindo para a janela com sua caneca às mãos.

“- Ela vem das fronteiras do oriente. Dizem que de lá emana a raiz de todos os males de Acheron. Se anteriormente o Caos em movimento se perpetuou na Floresta Escura, sua fortaleza foi construída pelos que foram impregnados pelo ódio e inveja do Dragão Azul e habitavam até as fronteiras da planície. Os Carvalhos foram derribados, e seus troncos levados para lá. Os animais abençoados, escravizados pelo mal se tornaram seus soldados.” Respondeu Vatrehuh seguindo a jovem vilca até a janela.

“-Dizem os Antigos que o Uno levou para si muitos dos animais abençoados. Porém, muitos também foram assassinados, e os que restaram no Bosque de Bel tiveram suas essências dominadas pelo poder negro e para os domínios do Caos em movimento migraram, juntamente com os homens que no passado habitaram nessas terras. Os animais tornaram-se então feras de descomunal força e os homens adquiriram poderes antes inimagináveis para nossa frágil raça. E dizem que os homens degenerados por conta de suas essências consumidas pelo poder de Draemoniach passaram a devorar carne e sangue para preencher tal vazio. Acabaram assumindo formas grotescas e assassinam tudo o que se move. Tornaram-se muito fortes e seus corpos volumosos são capazes de destruir até grandes animais. E são longevos. O Uno levou suas macieiras de volta a Bel. E em sua ausência, Draemoniach trouxe sua visão de imortalidade para Acheron.“ Disse Jotuh, com um semblante severo, também se levantando.

“-Devem tomar cuidado ao andar por aí, pois esses homens degenerados percorrem essas terras. Mas venham. Vamos subir… e poderão ver com os próprios olhos.” Respondeu Vatrehuh, colocando-se de pé e caminhando para a escada estreita ao final do cômodo.

“-Meu senhor, não me sinto bem para subir até o topo. O dia hoje foi extremamente cansativo e perigoso. Creio que não seja boa companhia para isso, e peço licença para me preparar para dormir. Amanhã tenho que continuar nos depósitos, os registros das armas. Disse Jotuh, sorrindo levemente para Vatrehuh, enquanto movimentava sua cabeça.

“-Pode ir, sobrinho. Levarei minhas valorosas hóspedes vilca sozinho. Como disse, estamos seguros. Criatura malévola nenhuma invadiria nossos domínios. As formigas estão sempre vigiando.” O líder do Povo das Árvores então dispensou seu servo, que se retirou pela porta de entrada da casa.

***

A escada entrecortava os grandes galhos da gigantesca árvore. Silentes, os três subiam os degraus. ‘Cuidado, moça da Visão. O caminho é por vezes íngreme e a queda daqui é fatal.” Ouviu a voz em sua mente, Ranemann, enquanto cautelosamente pisava degrau por degrau. Desde que chegara a habitação de Vatrehuh, com ele por vezes conversara secretamente em silêncio. Inexplicavelmente podia ouví-lo através do olhar, tal qual aprendera com Claekuth. Porém, ainda não pudera elucidar tal questão em particular com o portentoso homem pois sempre que com ele estava, Atelith também era presente. “Não confiai plenamente nela. Pois tenho ouvido palavras por vezes ruins de Atelith a teu respeito.” Teria dito Vatrehuh com seus olhos escuros, fitando Ranemann certa vez aos pés da grande sequoia. Intrigada, a jovem sensitiva se perguntara do porquê Vatrehuh ter dito aquilo. Afinal, teria o líder do Povo das Árvores também ouvido a essência de Atelith? Somente os grandes detentores do Dom da Visão possuem tal capacidade. E nem ela com todo seu treinamento dado pela própria Claekuth tinha poderes suficientes para ouvir a essência dos incapazes. E se algo estivesse acontecendo entre Atelith e Vatrehuh sem o conhecimento da nobre vilca? Seria ele confiável a ponto de revelar má intenções de Atelith a ela?

“-Olhem, estão vendo? A luz… vem forte dali. Naquela direção está Grande Mar. E as ilhas que lá existem são habitadas pelos bárbaros orientais. Eles têm peregrinado em grandes ajuntamentos por essas terras e subindo o vale rumo ao ocidente. Com frequência levam consigo feras e animais abençoados capturados. As notícias que as formigas a mim contam é de que estão se unindo, pois, o Caos em movimento os conclamou para o oeste. Mas não tenho ideia para onde vão exatamente.” Mas é fato que forças malignas estão reunindo.” Disse Vatrehuh, apontando para o horizonte em direção ao oriente em meio a um profundo suspiro.

Atelith e Ranemann observavam o horizonte escuro e vasto sobre as copas das grandes sequoias que serviam de refúgio para o Povo das Árvores há tempos. O firmamento solitário que se encontrava com o os limites da planície não mudara de aparência desde a chegada das jovens às terras das sequoias colossais. Com a melancolia aflorando em sua essência enquanto contemplava a paisagem, Ranemann pensava nos seus que haviam ficado para trás em Thelim. Saudade e resignação eram sentimentos constantemente experimentados por ela. Não tinha mais esperanças a respeito de Melikae estar vivo, bem como Zitri. Certamente haviam sucumbido à demanda. E quanto a ela, rumava a passos lentos para a destruição. Ao longo de todos os meses desde sua partida – após a reunião na casa de Claekuth – não percebera o cumprimento das predições de seus amados oraculares sobre si. Estariam enganados? Até aquele momento parecia que sim. E Atelith abrira seus olhos a esse respeito. Entristecida, disse Ranemann.

“-Cuida para que teu povo não pereça. Minha demanda me levará para longe daqui em breve, e certamente também em breve cumprirei o Ciclo, vitoriosa ou não. E já não me importo com meu destino, pois todos os meus ou pereceram ou ficaram para trás, e só me restou Atelith. Meus amados em Thelim talvez já não existam. Quem sabe se a podridão tentacular do Caos em movimento chegou nos extremos do ocidente? É provável que sim, e a julgar pelo que vi em minhas andanças nos últimos tempos, as terras do ocidente já devem ter sido tomadas pelo ódio e inveja de Draemoniach. Sinto saudades dos meus. Da vida tranquila e das histórias fantásticas que ouvia de meu pai. Sinceramente me arrependo de ter aceitado tal incumbência. Essa demanda não se parece em nada com as histórias heroicas de Acheron… e tenho perdido a todos que amo. “Não se importava com eles, não é isso? Se sim, terias ido pessoalmente em perseguição aos bárbaros. Dizei, por que deixaste os dois padecerem tamanho malfadado destino?”

Ranemann então pôde ouvir a voz de Vatrehuh ecoar em sua mente enquanto o repreendia silenciosamente. Sentia falta também de Mafura e Jotih. Os dois jovens haviam sido extremamente hospitaleiros com ela e Atelith desde que as encontraram perdidas descendo o vale nas fronteiras da Floresta Escura. Não compreendia o porquê dele aparentemente não ter se importado com o sequestro dos próprios sobrinhos, seus braço-direitos juntamente a seu irmão Jotuh. Vatrehuh parecia indiferente ao destino dos jovens. “Deixai o tempo maturar todas as intenções, pequena mulher. Os caminhos por onde nossa percepção transita são largos e confortáveis, e por vezes não se encontram com as realidades da carne. E dela vem a fraqueza. O homem é fraco. Nossa raça está em declínio, pois nossos pais heroicos caíram desde a chegada da Água Súbita e os que vieram após ela repetiram os mesmos erros. E nossos feitos são agora arremedos frente aos do passado glorioso dos homens. Tenho me preparado para a guerra, pois provavelmente seremos surpreendidos com um ataque violento. Mas nosso povo é pequeno e pacato. Nossas armas são rudimentares perto das refinadas lâminas dos bárbaros orientais, que ainda tem ao seu favor a feitiçaria do Caos em movimento e de sua serva Loucura. O povo de Thelim se isolou do resto de Acheron, tornando-se orgulhoso e amigo apenas dos seus protetores Vilca. Nossa raça nunca se unirá. Como sempre assim o foi.” Sentenciou a voz silente que falava à essência de Ranemann, sob os olhares de Vatrehuh e Atelith.

Então num átimo de segundo Ranemann se viu sozinha muito acima das árvores. O espaço ao seu redor girava vagarosamente em meio às nuvens da infinitude que repentinamente agora se encontrava. Ao longe viu as faces de Claekuth e seu pai, sentados enquanto conversavam aparentemente nervosos juntamente a Atelith e Melikae. Os ecos de suas vozes eram incompreensíveis a ela. Assustada, Ranemann estendeu seus braços com a intenção de tocá-los pela intensa saudade instantaneamente produzida ao se deparar com a cena. E de repente pôde ver sua jovem amiga de frente a uma fogueira gritando de dor enquanto Morjal desenhava delicadas linhas coloridas sobre seu corpo com uma lâmina fina encharcada de tinta e sangue. Enquanto as imagens surgiam por entre as nuvens no espaço iluminado, a saudade foi gradativamente substituída por angústia e sem compreender o que estava acontecendo, a jovem sensitiva correu em desespero para longe de tudo o que estava assistindo. Porém quanto mais corria para fugir, mais as vozes confusas se tornavam próximas dela e as imagens passaram a rodopiar à sua frente. Cansada e ofegante, Ranemann então percebeu em um relance seu amado Melikae agachado, tremendo de frio… em meio a neve. “Melikae! Meu amor!” Gritou, sem que ele, no entanto, pudesse ouvir sua voz. Com as mãos à cabeça e o semblante transtornado, Ranemann correu em direção ao jovem bardo contador, na tentativa de abraça-lo. Mas ao aproximar-se dele, repentinamente se deparou com uma mulher pequena, deitada tranquilamente nos braços de Zitri e ao redor de uma fogueira. Sem conseguir tocá-los afastou-se assustada. “Que tipo de delírio é esse? Que peça agora o Caos em movimento me prega a ponto de torturar minha essência aturdida confrontando-me com meus desejos mais primais?!” Pensava em desespero Ranemann enquanto corria sem rumo. Foi quando que por bem pouco quase se lançou desavisadamente sobre um precipício. E de lá avistou fogo iluminando a escuridão abissal. A intensa luta de homens e animais e grandes amontoados de corpos cobriam a planície repleta de árvores. O fogo que vinha do céu as derribava e incendiava muitos seres, enquanto gigantes maciços* caminhavam causando estrondos e terremoto. Com suas clavas ceifavam muitos sob o comando de criaturas rastejantes* malévolas que recebiam ordens da luz amarela que iluminava o grande lugar.

Aterrorizada e prestes a cair do alto, Ranemann sentiu uma forte mão repousando sobre seu ombro. Saindo do transe, se viu novamente sobre a sacada de madeira construída em cima os galhos da velha sequoia onde residiam há dias desde que ali chegaram.

“- O que houve, mulher? Enquanto falávamos contigo, tu nos ignoravas olhando para algum lugar ao horizonte de onde vem a luz do Caos em movimento.” Disse desconsertado Vatrehuh.

“-Estais bem, minha irmã?” Perguntou assustada Atelith, segurando nas mãos dela.

“-Eu…eu …por um momento… era como se não estivesse aqui. Creio que me perdi em pensamentos a ponto de sonhar acordada. E não foi nada agradável tudo o que sonhei. Pois foram seguidos pesadelos que tive. “Não fostes tu, homem das alturas? Queres me confundir com teus jogos mentais? Saibas que não é assim que conquistará minha confiança em detrimento à de minha irmã.” Falou sua voz na mente de Vatrehuh.

E olhando Ranemann, disse docemente o líder do Povo das Árvores:

“-Está visivelmente cansada, minha querida. Os perigos do dia de hoje exauriram tuas forças e tu já apresentas sinais de confundimento. Vamos… vamos dormir, pois amanhã precisarei de vós na preparação do meu povo para a iminente guerra.”

E juntos, desceram as escadas.

Continua…

I-Como comumente os do Povo das Árvores eram chamados, por habitarem nos altos das sequoias colossais;

II-Dizem os Antigos que os povos que habitavam a planície das

sequoias colossais migraram do Maphion e lá se estabeleceram sua habitação;

III-Receptáculos das essências dos grandes conquistadores das Terras Proibidas despertos pela podridão tentacular do Caos em movimento quando chegou à cidade abandonada;

IV-Servos degenerados do Caos em movimento. Com seu corpo disforme e seus membros inferiores deformados, os grandes servos comandaram os exércitos juntamente com a Loucura na primeira grande guerra;