As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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-Senhor, aqui está a túnica. Os Separados o esperam.

-Encha minha taça de vinho mais uma vez, e me dê mais um pedaço desse bolo. Me ajude aqui, parece que está apertada em minha cintura. Seja rápido, servo!

Enquanto Notrum se preparava, comia com voracidade. Mais uma manhã de conversas inúteis. E depois ainda devo ir ao Templo realizar minhas preces. Malditos bárbaros! Ao menos a caçada me diverte! – pensou ele, aprumando suas longas tranças grisalhas debaixo do Matrih1. –Me dê o cajado.

-Tendes que cuidar da tua saúde. Se continuares a comer dessa maneira, em breve nem ele será suficiente para te auxiliar a caminhar. Ouça o que digo, meu Senhor, pois cuido de ti desde vossa mocidade!

Com dificuldade, o velho Jiltrate assentou a túnica azul sobre os ombros do senhor do povo de Ziporih. –Veja, está ficando pequena… já quase não te serve. Mal consigo atá-la, pois engordaste bem! Falarei com o padeiro e o cozinheiro-mor para fazer refeições mais leves nos próximos meses. Mas tens que me ajudar também nisso. Deves entender que tua aparência serve de inspiração para o povo. Se a tornares deformada, como poderão confiar em ti?

-Ah, me poupe disso por enquanto, meu amado. Agora não é hora. Estou pensando no que aquelas raposas têm a me dizer. O povo já começa a murmurar, pois o cerco tem se estendido mais do que imaginava. E se durar mais, haverá fome. E tudo o que não preciso nesse momento é de uma revolta!

-Se queres mais uma vez meu conselho… digo-te: fala a Sorbam para ir até o líder dos homens do leste negociar. Não temos chance contra tão numeroso exército. Uma paz negociada será mais vantajosa que os grandes prejuízos de uma eventual guerra.

-Eis o problema! – disse Notrum, interrompendo – Não vês? Esses ardilosos que me esperam às portas do meu bosque particular não desejam paz. Querem guerrear contra mais de vinte mil orientais e suas feras!

-O Senhor é o líder de Ziporih. Filho de Nartreg. E voz do Uno entre os homens na Terra dos Carvalhos. A vossa vontade é a que prevalece.

-Não me sinto nada disso, Jiltrate. Mas obrigado por lembrar-me. Venha, vamos logo. Ainda tenho que presidir os cânticos logo mais no Templo. Espero pelo menos lograr êxito e abater um gamo. Ao menos ainda temos terras suficientes dentro dos nossos muros para diversão.

***

Sobre a pequena ponte que atravessava o riacho ao redor do palácio, estavam montados em seus cavalos Klith, Demarin e Mafroun. Impacientes, jogavam runas para passar o tempo até a chegada de Notrum, pois o frio que anunciava o inverno havia acabado de chegar trazendo seus matizes brancos e cinzentos sobre a grama e as copas do bosque que circundava o grande edifício de pedra. O sol havia escondido sua luz naquela manhã, deixando todos preguiçosos para a costumeira caçada.

-Meus filhos, estou feliz em mais uma vez tê-los em minha companhia para juntos nos divertirmos – disse Notrum –  e espero que também possamos decidir o que faremos sobre o cerco.

-Onde está Sorbam, meu pai? – indagou Mafroun.

-Eu não sei. Creio que esteja ocupado com os preparativos. Ele sempre aparece pela manhã, durante a refeição…

-Meu pai não sabe onde está seu general? – interrompeu o jovem Klith – Estamos à beira de uma guerra! Nesses momentos o senhor do povo da Cidade de Pedra deve estar no controle de seus exércitos! Seria prudente averiguar o que Sorbam está fazendo, pois a preguiça dos tremares poderá levar nosso povo à ruína. Precisamos responder aos bárbaros com um ataque violento para destruí-los! Essa inércia de Sorbam me preocupa. O que me leva a pensar se ele não tem tramado contra ti, meu senhor.

-E nossos celeiros estão esvaziando. Se não elevares para um terço o tributo do trigo, logo os cofres estarão desprovidos. Há três meses nada entra ou sai pelos nossos portões! – retrucou Demarin.

-Chega! – gritou irritado, Notrum – Não percebem? Em momento algum falaram sobre a vontade do Uno a respeito de tantos problemas. Demarin, tu és meu regente… mas eu sou teu senhor, e não posso aumentar o imposto dos grãos. Já houve aumento. O povo se revoltaria, pois começam a sentir os efeitos do cerco. Sobre Sorbam, tenho total confiança nele. Não atazanem minha essência! E sim, antes de caçarmos, façamos uma prece ao Uno.

Descendo de seus cavalos, os homens olharam para o céu cinza. E de mãos para o alto, assim realizou a seguinte prece o senhor de Ziporih:

-Senhor da Cidade Abençoada, estamos aqui, na condição humilde de instrumentos da tua vontade para te pedir um sinal. Tu, que formaste a Terra dos Carvalhos com a água do Lago da Criação2 que mantém os Jardins de teu arauto Orath e a purificaste com a descida da Água Súbita3, ouve a prece daquele que detém a Tua Voz em Acheron. Há três meses teus filhos de Ziporih padecem de isolamento e escassez por conta do cerco que exércitos vindos do leste tem feito sobre a última Cidade de Pedra. Somos pequenos e impuros perante a Tua bondade infinita, mas sabes que no Templo da Ordem existe ainda verdadeira adoração a Ti e a teus Filhos. Por isso, aqui peço por todas as mais de cem mil essências boas que vivem no interior dos muros de minha cidade. Ouve esta prece e atende-a conforme a Tua benevolência. Orienta-nos sobre o que devemos fazer! Que nossos inimigos desmaiem de horror perante a tua força, que certamente enviarás dos portões de Bel em nosso auxílio, e não permita que o Mal sobrevenha sobre nossas casas! Nesse momento te peço em humilhação, por mim, meus filhos Klith, Demarin e Mafroun, e todo o meu povo… mostra-nos o caminho a seguir, pois sabemos que Tu não te agradas em alianças com o Mal. Mas em nossa finitude de pensamento, não conseguimos enxergar outro caminho que não seja esse. Por isso, mais uma vez, peço-te… ouve o meu lamento, e mostra-nos o caminho que devemos tomar em momento de tão grande perigo!

Após o término da prece, Notrum desanimado fitou seus filhos que se mantiveram em silêncio. O sentimento de abandono era naquele momento compartilhado pelos quatro homens, pois há tempos não presenciavam resposta do Uno no serviço do Templo. Senhor de Bel, eu represento a vontade do teu reino. Mas o teu reino está nos céus. O meu reino, Senhor… é aqui em Acheron. Ajuda-me – refletiu ele. –  Eia! Vamos nos distrair um pouco!

***

-Cuidado com a caça! O chão está úmido! Esse declive é íngreme. Disse Sorbam.

-Que bom que nos encontraste, meu amigo. – Falou Notrum, exausto após chegar no fim da trilha. Não teria sido tão divertido sem ti. Sua companhia sempre é bem vinda.

Atrás deles iam conversando – montados em seus cavalos – Klith, Demarin e Mafroun. A manhã se passara rapidamente pois o grupo se ocupara caçando gamos. O grande animal abatido, era levado por Sorbam num estrado atado ao cavalo.

-Nosso pai como sempre dando ouvidos aos que abusam de sua bondade. -Falou Demarin. Viram? Chegou aqui, apenas para tirar o meu mérito de abater do animal. Certamente eu conseguiria, pois faltou muito pouco! E agora estão lá os dois. Como se fossem irmãos!

-Acalma-te, homem. – Disse Klith. Sorbam não é o que procura aparentar. Tenho novidades vindas direto da casa de Taremil. Sabem o copeiro… Dektliu? Aquele velho corrupto, qualquer saco de especiarias com alguma prata corrompe seu caráter! E adivinhem quem anda visitando a cama da concubina favorita de nosso velho e gordo pai? Sim, o seu general honrado e acima de qualquer falha! Sorbam!

-Meu irmão. Que informação valiosa! Mas, como pensas em contar isso a Notrum? Certamente seria necessário mais que tua palavra para o convencer disso, afinal, tua devassidão em muito irrita nosso pai. Não respeitaste nem o leito do senhor da Cidade de Pedra! Tens sorte que ele é um fraco. Se fosse comigo, certamente teria te esquartejado e enviado os pedaços para o Poço da Perdição em Thelim. Disse, após uma gargalhada debochada, Mafroun.

-Minha devassidão em muito não excede a tua corrupção, pois bem sei que tens usado a prata dos negócios dos celeiros de Ziporih para ti. – Retrucou Klith. Aliás, temos que conversar a respeito disso, pois esse negócio é interessante.

-Vejam bem meus irmãos. Estamos aqui, tramando contra Sorbam e falando de nosso pai. Mas não podemos reclamar de Notrum, pois ele não nos incomoda. Além de ter assassinado Numir, Brametahn e Zotrial para nos colocar em seus lugares! Finalmente estamos em posição confortável entre os nobres e a Ordem do Templo.

-Sim, apesar de tudo ele é um bom pai. – Disse, rindo ironicamente, Mafroun. Mas surpresas certamente o esperam, pois logo mais tenho coisas muito importantes a resolver.

E assim foram o senhor da Cidade de Pedra, seu general tremar, Sorbam, e seus filhos Klith, Mafroun e Demarin.

Registrou o escriba…

E vi em minhas visões Notrum no Templo da Ordem, chorando o vazio das preces que preenchiam sua essência. Seu semblante angustiado olhava a grande estátua que o representava ao lado do Uno. “- Por que não me ouves, Senhor! Tudo o que fiz foi por amor à tua reta imagem! O quanto tenho te pedido para falar através de mim, e tudo que recebo é o teu silêncio! Já não posso mais enganar meu povo e a mim mesmo.” Teria ele pensado. E enquanto de olhos fechados sorvia a solidão que emanava das frias colunas de pedra em frente ao altar de sacrifícios, ouviu o ruído delas. As formigas, cansadas e esquálidas pelo longo marchar através dos caminhos tortuosos que as trouxeram dos extremos da Terra dos Carvalhos encontraram nas frestas das paredes de pedra o lugar ideal para subir e escrever o grito de socorro de seus amigos. Na linguagem dos Antigos, assim disseram:

“Frotihgvar frotihgve tion nirtgtoug siumean.”

“Ouçam. Ouvirdes o som do nosso lamento?”

na língua média falada à época da Era do Declínio

E o desenho que fizeram em fileira sobre a grande parede em muito surpreendeu Notrum. A árvore em chamas que iluminou o grande salão do Templo fez o senhor de Ziporih entender o clamor de Vatrehuh.

Continua…


1-O chapéu sagrado da vestimenta ritualística de Notrum.

2-Dizem os Antigos que no Lago da Criação a Alegria do Uno transbordou em criatividade para formar Acheron e a criaturas que nela habitam;

3-A água que veio dos das fundações de Bel para pôr um fim à Dissensão entre Vento e Sol.