As Crônicas de Acheron é uma série de fantasia publicada toda quarta-feira no Mapingua Nerd.
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Arte da Capa: Bpsola



“-Esse lugar me dá arrepios. “

“-As poderosas forças do Gohin devem estar por toda parte. E essa vastidão silenciosa me emociona! É a minha aventura, meu caro bardo! Onde estarão os Três Reis? O que seu informante disse mesmo a esse respeito? “

Após alguns dias de caminhada em meio ao frio e as cinzas, os dois homens haviam finalmente atravessado a ponte estreita que ligava o sinuoso penhasco à Torre. A antiga construção – erguida em meio ao abismo que circundava os limites do Gohin – se impunha solitária sobre a densa névoa que vinha do vazio. Seus grandes portões escancarados e as muralhas derribadas eram testemunhas de seu abandono.

“-E que aventura para ser a tua primeira, jovem vilca. Ainda és um jovem mancebo, e já estais metido em grandes negócios. Bom, quanto aos Três Reis… o velho pouco falou… apenas disse que deveríamos encontra-los aqui.”

“-Bem, na Torre já estamos.”

Enquanto caminhavam no grande salão, avistaram duas grandes escadarias de pedra em suas extremidades. “- E agora, para onde ir?” Disse Cravedin.

“- Esquerda. Sinto boa sorte vindo de lá. Respondeu Melikae, olhando os altos.

***

Cansados, os dois homens decidiram parar por um tempo. Melikae sentando-se pegou da cintura o odre e tomou alguns goles de cerveja.

“- Já estamos a horas subindo, e tudo o que vejo são mais e mais degraus! Espero que isso não seja algum tipo de ilusão desse lugar malévolo.”

“- Aqui é a terra dos livres, meu caro bardo. Nem malévolo, nem benigno. Diz a tradição dos antigos habitantes das Terras Proibidas. Afinal, não é para cá que os que decidiram não servir nem o Uno nem o ódio e a inveja de Draemoniach vem? “

“- É tudo falácia, Cravedin… o que é dito sobre o Gohin, pois presenciei coisas terríveis aqui. Todo o desígnio de seus habitantes é mau! Os profanos conquistadores acreditavam que o Uno e os Maiorais temiam que Atheran criasse seu Mundo Mosaico, afinal eles possuíam uma visão deturpada sobre adoração. Porém, não há caminho do meio quando se trata de bondade e malfazejo. Todos acabam pendendo para algum dos lados.”

“-Não seja tão crente. Simplesmente o homem faz escolhas a todo momento. A liberdade ao meu ver… reside em escolher qual caminho seguir estando ainda assim livre de juízo e paga. Não vê? O Ciclo aqui acontece continuamente. Você vai, e logo volta. Sem Fyr… seus irmãos e o Uno. Disseste que o teu informante se foi, e logo retornou. Algo fantástico, se levarmos em consideração como as coisas são em Acheron! Se a essência do homem é uma mistura de bondade e malfazejo… como podemos atingir o padrão imposto pelo Uno? Quero dizer… Vivemos uma vida “acertando e “errando”… e ao final, somos recompensados? Pelo bem ou pelo mal que fizemos? Afinal, o que nos difere? Se no fim todos somos um pouco de cada… por que alguns servem a Fyr e vão para Bel, e outros tornam-se escravos sofredores perpetuamente? Isso nunca me pareceu lógico….toma… esse pedaço de pão. “ Disse o jovem levantando-se.

Enquanto ele falava a respeito do Gohin, Melikae em silêncio refletia olhando o rapaz. “Veneno é uma palavra… Uno… é uma palavra. Assim é o antigo ditado dos que se dizem libertos.” Lembrou o bardo. Mas nada disso fazia sentido. “A descrença leva sempre à escravidão da própria vontade.” Após algum tempo descansando, voltaram a subir os degraus. O silencio imperioso era interrompido unicamente pelo caminhar interminável escadaria circular acima. Por fim, disse:

“-Meu jovem de ideias surpreendentes… já somos próximos há certo tempo nessa terra estranha e nada me disseste a respeito de tua missão. Qual é o intento do povo de Thelim para te enviar para tão remoto e perigoso lugar?”

“-O mesmo que o teu, suponho. Quando os boatos de que tu e teus amigos pereceram à demanda correram pelos domínios do Povo da Visão, Claekuth tirou-me de meus afazeres para me preparar. E assim, estou aqui. E que bom que te encontrei… afinal, como dizem… é sempre melhor dois do que um!”

“- E como ela está? E meu grande amigo Morjal?” Disse Melikae, tornando seu olhar para o fim da escadaria e avistando o pálido reflexo da luz que atravessava as janelas à sua frente. Alguns mericalhos voavam de um lado a outro do lugar, gritando de pavor pela presença deles.

“-Bom, ela em nada muda. Deves saber que as maçãs perpetuaram sua bela juventude… assim como a dele. Na verdade, houve dissenção a respeito da minha vinda. Mas a severidade de Claekuth foi amolecida pela insistência. Passei a minha vida sonhando com uma vida além da servidão no Thelim, e finalmente saí de debaixo de suas asas… apesar da resistência de Morjal…”

Melikae ouvia atentamente o falar distraído do jovem enquanto ambos percorriam o corredor infestado de mericalhos. Gesticulando sutilmente e com um sorriso no canto dos lábios, Cravedin contava em como convenceu a sisuda oracular a permitir sua vinda ao Gohin. No alto de sua juventude caminhava tagarelando despreocupado.  “Típico da juventude inconsequente.” Pensou ele.

“-Forasteiro! Encontramo-nos novamente!”

Os longos cabelos loiros e a aparência esquálida eram perfeitamente reconhecíveis. Preso no interior de uma das muitas celas de um lado a outro do corredor, estava ele sorrindo ironicamente de mãos estendidas.

“-Yofehl. Mais uma vez és tu! Não te cansas de ir e vir nesse mundo caótico e sem belas cores? Afinal, por que vives preso?

“-Ah! Ah! É que sempre fui afeito a esse tipo de jogos, desde antes de chegar aqui. Mas veja… dessa vez é diferente… estou enjoado disso aqui. E tu, se até aqui chegaste…certamente é o Escolhido. Como podes ver, estou preso… porém, agora quero descanso. E o Devorador1 me lançou nessa cela imunda… porque é aqui para onde trazem os arrependidos como eu.

Hum, vejo que estais acompanhado… e parece ser bem jovem… bem ao meu gosto para diversões… eh! Eh!”

“-Velho louco! Tu e teus absurdos! Respeite, meu amigo vilca! Dizei… onde encontramos a Kapele?

As risadas pérfidas de Yofehl enquanto observava Cravedin irritavam Melikae. Afinal nunca o velho respondia a contento suas perguntas.

“-Responde, homem!” Disse ele, quando um forte raio o derrubou longe.

“-Corre, jovenzinho simpático! Eles encontraram vocês! Anda! Se esconda!”

Cravedin então encarou a grande criatura de barbas tentaculares e múltiplos olhos vermelhos que com movimentos lânguidos ia com um cajado em sua direção. Assustado, correu para junto de Melikae.

“-Acorda! Acorda!”

Outro feixe violentamente acertou a parede, arrancando pedaços de pedra. O Devorador emitia um som aveludado alto e grave enquanto se divertia em ver o pavor do jovem, alvoroçando assim as outras criaturas que estavam no corredor.

“-Me ajude a levantar.” Melikae se apoiou no ombro de Cravedin. Correram em meio aos raios para um canto.

“-Somos dois e ele é apenas um. Tu o distrairá e eu correrei para flanqueá-lo. Esse maldito monstro vai sentir o frio da minha lâmina…” Disse Melikae.

Assim os dois jovens guerreiros enfrentaram o Devorador de Essências. A rapidez de Cravedin o safou dos feixes de luz destruidores lançados através do seu e cajado de metal, enquanto o astuto Melikae atravessou o corredor furtivamente de uma extremidade a outra assim cercando a criatura que alternava seus ataques entre os raios e golpes com sua cauda escamosa.

“-Toma, desgraçado!” Disse o bardo desviando-se da ágil cauda com um salto se lançando assim às costas do monstro e enfiando-lhe a espada na altura cintura. O golpe profundo fez jorrar sangue pútrido que encharcou sua manta enquanto ele se movia freneticamente tentando se desvencilhar dos ataques. Melikae ensandecido, seguro sobre seus ombros desferia vários golpes em meio aos grunhidos da criatura em agonia. E assim o bardo contador Melikae e o Devorador de Essências foram ao chão na Prisão dos Arrependidos2. A Torre então estremeceu, e do fôlego do monstro moribundo escaparam essências que percorrendo o corredor circular adentraram nas celas; algumas iam para o alto em rodopios apavorando os mericalhos gritalhões que se agitavam desordenadamente em fuga. Então, uma grande explosão fez desmoronar parte do teto e um terremoto lançou todos violentamente ao chão.

***

Cravedin abriu os olhos sem fôlego e empurrou abruptamente o velho que com sua boca lhe roubava o ar. “-Que fazes comigo, homem imundo?”

“-Plantando a minha semente em ti, belo mancebo.” Enquanto se limpava, Yofehl ria, olhando Melikae de costas ao largo em direção às celas.

“Maldito! Estavas a profanar meu corpo enquanto estava desacordado?”

“-Calma…calma. Não é o que estais pensando, menino. Tua juventude é bela, porém me é resistível. E tu vais me agradecer… pois eu vi. Está além do teu olhar, e minha experiência de eras já me disse tudo o que deveria saber.

Enjoado, Cravedin de pé afastou-se do velho homem nu procurando Melikae. O corpo do Devorador jazia de bruços no chão, envolto em uma grande poça de sangue negro que absorvia a luz que vinha do teto desnudo. Melikae saiu de uma cela, e assustado disse:

“-O que houve com teu corpo, velho louco?” É impressão minha ou renovaste tua pele em questão de segundos?

“-Teu jovial companheiro me fez muito bem em compartilhar um pouco do que possui. E tu… tu és nosso libertador! Agora sei que és o Escolhido. Nesse lugar conseguiste servos fieis que agora te devem muito. Creio que somente o Escolhido seria capaz disso! Como viste, minha aparência mudou, e agora posso finalmente descansar de minhas travessuras por essas terras. Conclama os libertos, e eles te servirão…meu senhor!”

“-Tu e teus enigmas… estou farto deles! Não sou o que dizes coisa nenhuma! Dizei… onde termina esse corredor? A Kapele…está escondida aqui? Afinal, será através dela que encontrarei Mitranil?” Pergunto Melikae, enquanto observava admirado a pele viva de Yofehl.

“-Outros semelhantes ao que derrotaste estão por todo o Gohin… guardando a essência dos que não desejam mais ficar. Os de maior valor sempre são os trancafiados na Torre. Bom, bem viste que aqui estava eu também… o que deve te levar a crer que não estais tratando com gente de pouca importância. Mas…olha, chama-os…que eles virão até a ti, pois a palavra deles é fiel ao seu cumprimento. Em breve enfrentarás perigo maior que qualquer sádico Devorador de Essências empanturrado de homens fartos disso aqui.

“-A quem devo chamar?”

“-Os arrependidos.”

Então, do interior das várias celas eles saíram lentamente. Com suas armaduras e martelos. Os elmos escondiam seus rostos, mas ainda assim existia gravidade no que se podia ver de sua fisionomia. Reunindo-se enfileirados, se colocaram à frente do bardo preenchendo corredor acima até onde a vista dos aventureiros da Terra dos Carvalhos podia enxergar. Um deles, dando um passo à frente disse:

“-Tu, que nos libertaste da prisão eterna por rejeitar o Ciclo do Gohin…recebe-nos para poder aqui retribuir com boa paga. Tu, que por eras fora aguardado por todos os cansados da escravidão dos próprios desejos e que descobriram as inverdades da Grande Serpente caída, guia-nos de volta aos nossos lares, para que assim possamos retornar ao Ciclo do Nosso Pai. Dizei, agora Escolhido do Gohin, o que desejas de nós conquistadores para que possamos estar quites com tamanha bondade que nos fizeste, retirando os grilhões que nos aprisionavam a esse mundo pervertido pelo ódio do grande Dragão?”

Ao ouvir a voz solene do homem desconhecido, Melikae sentiu um frio percorrer a sua coluna. Sem compreender o que estava acontecendo, disse gaguejando:

“-Certamente não sou o Escolhido, porém estou à procura de Mitranil. E preciso que me ajudem quanto, a isso. Depois, o Uno mostrará se devo libertá-los ou não.

“- O que desejas assim será feito.”

Num piscar de olhos, os homens se transformaram em uma densa névoa que envolveu Melikae, Cravedin e Yohfel, elevando-os do chão. Através da fenda nos altos da torre, os homens puderam ser levados para além de seu interior.

Continua…


1-Diz-se assim das criaturas malévolas que habitavam o Gohin e aprisionavam em seu fôlego os arrependidos que desejavam escapar do Ciclo do lugar;

2– Os Antigos dizem que o lugar onde Dutryor aprisionou os corpos dos temidos conquistadores das Terras Proibidas era o corredor espiral da Torre.