“Que bando de panacas!” – Pensou Celeno Novo quando todos saíram da sala.
Ficou em pé com as mãos sobre a mesa de vidro transparente por alguns instantes olhando para as suas unhas impecavelmente feitas. Lembrou-se da herança do pai e levantou o olhar para contemplá-la. Um carrinho de bebidas antigo, que, mais do que o monopólio que lhe era direito, era sua maior ambição, no outro extremo da sala. Andou em direção a ele sentido o seu peso dobrar a cada passo…
O cansaço o consumia.
Tomou um copo e entre as várias garrafas coloridas, escolheu uma marrom com um Bourbon que havia ganhado em seu último aniversário.
“Se ao menos eu tivesse a certeza de que são só problemas temporários…”
Mas sabia que não eram.
Serviu a bebida em seu copo, inalando o doce e forte aroma do álcool antes de tragá-lo de uma vez. Admirou as bolhas que se formaram no fundo do copo, como se aquelas 11 ou 12 bolinhas fossem mentes com sonhos dentro, sonhos maravilhosos que ele poderia controlar, sonhos que jamais sairiam de seu controle, que nunca se tornariam pesadelos… Mas não eram apenas 11 ou 12 bolinhas com mentes.
Segundo os dados, eram 3,5 bilhões. E contando.
E ele não sabia quanto mais a Terra dos Sonhos iria aguentar quando todos os quartos ficassem ocupados pelas mentes sonhadoras.
“Os sintomas já começaram” – Refletiu ele. “Papai sabia. Ah, o filho da mãe sempre soube.”
Serviu-se de mais uma dose de Bourbon, deixou escorrer pela garganta, serviu-se de outra em seguida, depois a sexta, a sétima, a oitava…
E atirou o copo contra a janela.
Ainda chovia lá fora e o céu carregado de nuvens cinzentas bradava com trovões, como ameaças no horizonte. Quando se tornou um pouco mais fina, as gotas que caíam contra o vidro pareciam querer se misturar ao Bourbon que deslizava pela parte de dentro. As janelas dos prédios ao redor começaram a acender uma a uma, ganhando vida própria, e Celeno se deparou com seu reflexo que ficou bem nítido no vidro com o escurecer.
Às vezes, ele se perguntava se valia mesmo à pena ser CEO da USB.live.
Mesmo sendo tão novo, não se lembrava de ninguém no mundo que possuía um monopólio como o dele com menos de 40 anos, e ele ainda iria fazer 23.
Um rapaz aplicado, visionário e destemido (como ele mesmo se julgava) metido em briga de cachorro grande e ainda por cima um tipo de celebridade! Suas apresentações levavam o público a loucura e ao delírio, pois, se tratando de d-hand, ele era o melhor abre-alas pra qualquer produto que inventassem, arrasando quarteirões em menos de uma semana com cada novo lançamento.
Nunca havia falhado antes e os imprevistos que havia enfrentado sempre foram resolvidos num piscar de olhos…
Mas nada do que veio antes se comparava àquela falha na GRESON.
Respirou fundo, se jogou na poltrona levando o polegar e o indicador ao alto do nariz relembrando as palavras do pai que reverberavam em sua mente, ecos de um passado não tão distante:
“Uma hora Celeno, a rede do d-hand vai estar tão avançada que vai ser difícil controla-la. Sei disso como sei que um dia irei morrer, calmo e tranquilo em casa. E até esse dia, espero que quem estiver à frente dos negócios saiba como lidar com isso.”
Celeno odiava ter que admitir que o pai estava certo. Com exceção do fato de morrer calmo e tranquilo em casa – já que Celeno o matara envenenado, colocando veneno de rato na taça de bebida do pai, durante uma comemoração de aniversário do lançamento do d-hand – o velho tinha toda a razão sobre as falhas que chegaram e ainda estariam por vir na rede de suporte.
Mas ele daria um jeito. Ou melhor, os programadores dariam. Do contrário, Renâncio, aquele engravatado nervoso e mesquinho com aquelas gravatas bregas iria querer tomar café da manhã com um de seus rins, caso não fosse reembolsado com o investimento das ações que havia feito.
Celeno detestava Renâncio, como ele sabia que Renâncio o detestava. Tudo, aliás, no que dizia respeito à Renâncio. Sua voz com um sotaque estranho, sempre dando muita ênfase na última sílaba da última palavra de cada frase, seu queixo pontudo ridículo que só se comparava à sua postura ridícula de senhor do mundo, com aqueles ternos e gravatas mais ridículos ainda.
“Tudo vai se resolver.” – Disse a si mesmo, de olhos fechados.
“Tudo têm que se resolver.” – Completou.
A chuva finalmente cessou, mas nem sinal das nuvens pesadas irem embora.