Todo Amor do Mundo Cabe em 8gb é um conto de ficção científica disfarçado de romance, ambientado em Manaus futurista (pero no mucho) e publicado semanalmente no Mapingua Nerd. Leia os capítulos anteriores aqui.
Imagem de Capa: Jokov
De acordo com Einstein e sua Teoria da Relatividade, o tempo era relativo.
Mas isso era porque ele nunca havia usado um d-hand antes.
Se Einstein tivesse usado um d-hand, ele diria “uau, então quer dizer que o tempo não significa nada quando usamos esta coisinha aqui?”.
Muitos usuários concordariam com ele.
Por sorte, Einstein morreu muito antes do surgimento do d-hand.
E a tempo de finalizar sua famosa Teoria da Relatividade.
Quando você usa um d-hand, nada mais importa.
Talvez só o clima amanhã, se vai chover ou fazer sol, mas, ei! Existe o d-hand pra saber se você deve sair de casa com guarda-chuva ou com uma roupa mais apropriada para o dia quente! Pra quê se preocupar? Basta acessar o aplicável de meteorologia astral, assim com certeza você poderá se precaver caso venha uma chuva torrencial e você corra o risco de se molhar, tudo isso de acordo com o horóscopo do seu signo (taurinos ainda não estavam inclusos devido a falta de uma atualização). Afinal, nunca se sabe se vai fazer Sol ou não, ou quando o seu carma ficará negativo e você acabe voltando pra casa encharcado no fim do dia, mesmo com a meteorologia dizendo que faria um baita sol.
Se Guilherme tivesse utilizado seu d-hand para verificar as condições de tempo naquela manhã, ele não teria chegado ensopado na aula.
Mas, quem sabe, não foi apenas uma questão de carma astral?
Era algo que só astrólogos e meteorologistas com um vasto referencial em seus d-hands poderiam debater.
Passou pelo corredor central da faculdade, onde uma turma de universitários conversava animadamente. Eram 3 garotos e duas garotas e todos pareciam estar muito felizes por algo que Guilherme não sabia e nem fazia questão de saber. Uma das garotas balançava o seu d-hand no ar enquanto os outros 4 riam.
-Daí ele pegou meu d-hand e eu disse: ei vovô! Esperaí! Você não pode usar esse aí, esse é meu!
– E o que ele disse? – perguntou um dos rapazes.
– Disse: Ah, isso explica porque estou me sentindo com vontade de ouvir Justin Bieberlake.
Os 4 tornaram a rir, dessa vez com mais gosto. Nem notaram quando Guilherme passou por eles.
Ele seguiu andando, até chegar ao saguão de entrada do prédio. Muitos alunos estavam com capas de chuva e guarda-chuvas coloridos enrolados. Nas paredes de avisos, anúncios de aplicáveis em promoção e aplicáveis gratuitos. Dobrou à direita, entrou pela esquerda e seguiu para a cantina.
Um dos amigos de Lia notou sua chegada, fez menção de comentar com os outros quem estava ali, mas logo tomou parte em uma discussão que estava acontecendo na mesa, enquanto Lia terminava, aparentemente relutante, uma taça de sorvete.
A maneira como Lia tomava sorvete – pensava Guilherme – era extremamente engraçada. Não ao ponto dele morrer de rir, mas o suficiente para, quando se lembrasse da cena, esboçasse um sorriso demorado. De todas as vezes que ele a viu na cantina, ou ela tomava um sorvete ou um refrigerante. Não lembrava se já a tinha visto comendo outra coisa. Era sempre o sorvete que chamava atenção. Duas bolas de chocolate, uma de baunilha e cobertura de morango. Raramente ela mudava os sabores, mas nunca a cobertura. Depois, ao se sentar, encarava o sorvete franzindo o cenho, como se arrependesse de ter pedido aquela quantidade. E então, resignada, começava pela cobertura, como se tivesse sido condenada a alguma sentença sem fiança. E era aí que Guilherme achava graça. Ficava impressionado com o fato dos amigos dela nunca terem percebido isso e tirado brincadeiras, mas eles estavam sempre muito centrados em suas conversas e discussões sobre aplicáveis que era justificável que não tivessem notado.
Havia também o cacoete dos cotovelos.
Até mesmo Guilherme tentava entender a excêntrica razão – pra não dizer estranha – de ele achar os cotovelos de alguém tão bonitos.
Ela tinha a mania de massagear o direito com a mão esquerda por 10 ou 15 segundos e, passado mais ou menos esse tempo, ela apenas coçava o esquerdo com a mão direita. Talvez ela tivesse machucado quando era criança e tenha ficado com sequelas. “Vai saber” – Ele pensava.
Um dos amigos sentados (o que havia notado a presença de Guilherme) contou uma piada e todos gargalharam, com exceção de Lia que apenas esboçou um projeto de sorriso.
Quando Lia sorria, todo tempo parecia fluir devagar e não importava se o céu estivesse escuro e cinzento… Um simples esboço momentâneo de seus lábios era o suficiente para um grande sol invisível aquecer o coração de Guilherme, mesmo estando ensopado. Astrólogos e Meteorologistas que estudassem a maneira que esses pontos afetavam em suas previsões de clima e humores iriam descobrir que existe muito mais do que monitorar frentes frias e suas relações com os movimentos dos astros que sua vã filosofia poderia conceber.
E por último, havia o olhar.
O que era inegável era que ele conseguia, em seus desenhos, expressar cada nuance daquele olhar, cada expressão séria, feliz e triste, magnificamente bem. Certa insegurança com tudo era o que Guilherme imaginava que aqueles grandes olhos castanhos transmitiam, insegurança essa que ele mesmo sentia em relação a ela…
Foi então que ele se deu conta do que estava acontecendo. Sentiu um rubor nas bochechas e virou-se depressa. Ficara parado ali por um bom tempo (sabe deus quanto), encarando-a e nem se dera conta de quando ela havia lhe retribuído.
Ele já havia virado o corredor, quando ela gritou:
– Ei, espera!
Todos na mesa voltaram sua atenção para Lia.
– Quem era? – Perguntou Jorge, o cara que tinha notado o esquisito chegar primeiro.
-Ninguém. – Retrucou Lia, olhando para o fundo da sua taça de sorvete.
-Eu vi, hein! Você tinha chamado aquele cara. O que você queria com ele?
-Nada Jorge! Que coisa!
-Hmmmmm. Acho que alguém quer fazer amizade com ele, hein? – Jorge encarou o resto, como se esperasse aprovação do amigos para continuar tirando sarro.
Mas ninguém deu a mínima. Logo uma nova discussão surgiu na mesa (a GRESON – Grande Rede Social-Neural) havia saído do ar por algumas horas, naquela manhã chuvosa. Algo assim tão raro era sempre motivo pra discussões que nunca levavam a nada. Quieta, Lia ouvia cada vez menos a voz dos amigos. Havia se transportado. Jorge a observava pelo canto do olho, meio desconfiado, mas logo deixou de dar atenção a ela também.
Ela estava na biblioteca.
No dia anterior, passara o dia todo pensando numa maneira de aborda-lo e falar com ele. Ficava imaginando de que maneira poderia fazer isso sem mencionar aquilo que obviamente ele não usufruía. D-hand. Aplicáveis. GRESON. Essas coisas.
Simples.
Pelo que ela já havia percebido, ele desenhava. Diziam as línguas que era metido o suficiente pra dizer que havia aprendido sozinho mas corria o boato de que suas habilidades eram fruto do auxilio de um tal de aplicável chamado “vô”.
Ela não acreditava nisso.
Criou coragem, respirou fundo, e foi à mesa dele. Pedir um lápis.
Ele lhe deu um, sem falar nada, de cabeça baixa.
Ela agradeceu, mas se perguntou se falou muito baixo ou se ele simplesmente a ignorou. Como não obteve resposta, voltou a se sentar.
De qualquer maneira, ela agora tinha um lápis para lhe devolver;
E decidiu que tentaria de novo, em algum outro lugar que não fosse na cantina.
Mais tarde, em sua mesa, Guilherme desenhava no quarto com a tv sobre o criado mudo ligada enquanto o CEO da USB.live fazia um discurso sobre o lançamento de um novo aplicável que prometia revolucionar as relações humanas com o sobrenatural, em meio a flashs e aplausos.
“Imagine um mundo onde você consiga compreender todas as crenças e religiões.
Imagine um mundo onde pessoas que não acreditam em nada, por mais que tenham tentado (sim, estou falando de vocês, ateus, céticos e vegetarianos) possam acreditar em algo maior que eles! Pois agora é possível acreditar em qualquer coisa divina! Se você é daqueles que nunca em sua vida conseguiu compreender a existência de um poder maior que controla tudo o que você faz, nós da USB.live temos o prazer de anunciar o nosso novo aplicável para d-hand, o BELIEVE!
Só o Believe tem os cétricos neurais necessários que despertam a crença em alguma religião de acordo com a sua preferência e afinidade! Cristianismo, budismo e outros “ismos” estão inclusos no pacote e” – Guilherme desligou a televisão.
Havia terminado mais um. Terminou de rabiscar as sobrancelhas, relevou o contorno dos lábios e descansou o lápis na mesa. Contemplou sua obra por alguns instantes, por alguns séculos que pareceram segundos.
Uma Lia emburrada e surpresa o encarando.
Tal como os outros desenhos, guardou-o na primeira gaveta à direita, a mesma onde o seu inutilizado d-hand estava jogado no fundo, e foi se deitar.
Amanhã seria mais um dia.