Há algum tempo, mesmo antes de começar a faculdade, sabia que queria começar algo falando de literatura. Acontece que, cursando Comunicação, uma das melhores coisas que aprendi é que cada um tem um jeito próprio de se comunicar com o mundo e, para boa parte das pessoas, não é a escrita que cumpre esse papel.
A literatura é extremamente importante para ser estudada, e mais ainda é o modo como ela dialoga com os mais variados produtos, mídias e situações individuais e sociais. Não falar sobre as milhares de outras formas de comunicação e cultura, é, de certa forma, apagá-los de sua importância cultural. E aí vêm os vídeo games: é comum que não se observe e perceba o valor cultural dos jogos enquanto arte, mídia e toda a ciência exata por trás de seu desenvolvimento.
Diante de mim, duas bonequinhas: princesa Ida e rainha Ro. Uma coletânea de Paulo Leminski e várias abas abertas com entrevistas de desenvolvedores. É neste ambiente que escrevo a coluna desta semana. É fácil saber o porquê de eu ter decido escrever sobre haicais e meu jogo-mais-que-queridinho, “Monument Valley”.
Brincadeira harmônica
velha lagoa
o sapo salta
o som da água– Bashô
Concisão. Esta é a essência do haicai, forma poética vinda do Japão. O termo “haicai” é a união das palavras “brincadeira” e “harmonia”, em japonês. Os versos desta forma tentam capturar a brevidade do tempo e da natureza, sendo sua forma tradicional dezessete sílabas poéticas e em apenas três versos. O poeta responsável pela criação e popularização do haicai no Japão foi Matsuo Bashô (1644-1694).
Após Bashô ter definido a estrutura padrão do haicai, no entanto, a forma poética se modificou, tornando-se mais flexível, principalmente quanto ao número de sílabas poéticas. A estrutura, porém, permanece simples e contemplativa. Tais mudanças da forma ocorreram, principalmente, pela imigração japonesa ao redor do mundo.
esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem
– Paulo Leminski
No Brasil, o haicai ficou conhecido, principalmente, pela obra de Paulo Leminski (1944-1989), poeta brasileiro que misturava trocadilhos, ditados populares e haicais. Conhecido pela alcunha de “samurai malandro”, é considerado um poeta de vanguarda e sua obra influenciou artistas de várias áreas e movimentos, incluindo a poesia marginal e a concretista.
Harmônica brincadeira
A franquia de jogos mobile foi criada e produzida pela desenvolvedora independente ustwo games, e atualmente conta com dois jogos, Monument Valley e Monument Valley 2. Entre os diversos prêmios da franquia, destacam-se o The Game Awards 2017 e um Bafta. Com uma estética especialmente marcante, a desenvolvedora afirma que, além de M.C. Escher, outras inspirações para a Geometria Sagrada foram pinturas, poesias e diversos elementos da cultura japonesa. A história, repleta de simbolismos, é contada por pequenos poemas, e é material para muitas interpretações.
O primeiro jogo é focado na princesa Ida, que busca perdão por algo que nem mesmo nós, jogadores, entendemos exatamente o que é. “Monument Valley 2”, por sua vez, conta a história de Ida antes dos acontecimentos do primeiro jogo, focando-se na relação entre a princesa e sua mãe, a rainha Ro. “A história de uma mãe que não é só mãe, mas a criadora desse mundo é uma narrativa que tivemos que contar”, afirma Dan Gray, produtor da ustwo Games.
Cada fase possui uma mecânica diferente, e é necessário considerar que a arquitetura é, de fato, impossível: ilusões de ótica e origamis também foram base para a lógica do jogo. Considerado muito fácil ou curto demais por muitos, o jogo é caracterizado, pelo designer da desenvolvedora, Ken Wong, como uma narrativa que é “mais próxima de uma música do que de um livro ou filme”.
A solidão que traz perspectivas
Long ages lie heavy on old bones in these buried halls
Sacred Geometry was our pride, our downfall
But forever will our monuments stand in this valley
– A Narradora, Capítulo IX – A Descida
Um dos elementos da cultura japonesa que inspiraram o jogo foi, com certeza, a poesia. É através de monólogos de haicais que A Narradora (ou The Storyteller), um fantasma de uma civilização ancestral, lança pistas sobre o que seria, de fato, a jornada da princesa Ida por perdão. Como os próprios desenvolvedores do jogo já disseram em entrevistas, a arquitetura é o personagem principal do jogo. No entanto, percebe-se, principalmente por conta da Narradora, que a história não é tão linear assim.
Não se sabe ao certo quem é A Narradora e nem se pode dizer com certeza que se trata de uma mulher. O próprio nome da personagem, em inglês, ajuda a mantê-la andrógina. No entanto, o mais provável é que se trate, de fato, de uma mulher humana. Alguns fãs do jogo chegam a supor que seja a própria mãe de Ida.
Pela teoria mais difundida e que, de certa forma, se confirma ao fim do primeiro jogo, Ida e o Povo Corvo (Crow People, no jogo) teriam roubado a Geometria Sagrada dos humanos e todos morreram. A jornada de Ida, no primeiro jogo, seria para pedir perdão para os humanos e livrar a si mesma e seu povo da maldição de vagar eternamente pelo Vale Monumental. Sim, Ida seria a vilã e sua maldição seria, ironicamente, ter que viver como humana, a raça que ajudou a destruir.
O tom contemplativo usado pela Narradora ao se referir ao vale faz com que emoções, incluindo um rancor em relação a Ida, apareçam em boa parte dos níveis, logo antes que a princesa devolva parte da Geometria Sagrada, que está expressa de forma diferente em cada uma das fases. É a interação entre Ida, Ro e a Narradora que moldam a narrativa do jogo: simples, contemplativa, solitária e fragmentada, assim como a estrutura dos haicais.