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Revoadas do Uirapuru – Contos na Paris dos Trópicos
Parte 16: A Garota Psiônica
Manaus, 25 de novembro de 2015
Parecia que o tempo havia congelado por alguns segundos. A explosão foi como uma onda translúcida onde o epicentro era aquela mulher de cabelos azuis. As plantas que ela cuidadosamente dedicou boa parte do seu tempo se estilhaçavam como os vidros das paredes da estufa e da casa, os balcões de madeira, os potes, tudo ao nosso redor.
Eu estava olhando Helena e percebi que ela olhava no fundos dos olhos de Julia e acredito que isso tem a ver com o fato de nós duas não termos nos despedaçados numa grande pasta de carne, ossos e sangue.
Quando o tempo voltou ao normal, eu vi que, assim como Helena, estava dentro de um circulo igualmente translúcido. Havia, num ato reflexo, estendido as mãos numa tentativa vã de proteger meus olhos e agora que a explosão terminou, tentava entender como sobrevivi.
– É simples. Acessei a mente da Julia e pude usar os poderes dela para criar uma barreira de vácuo para impedir que fôssemos afetadas pela explosão.
– E sim! Podemos acessar as habilidades de qualquer pessoa acessando suas mentes ao olhar em seus olhos.
– E não! Como a barreira durou apenas um segundo, o vácuo não afetou seu corpo de nenhuma forma. Venha, me ajude aqui! – Disse Helena enquanto segurava Julia que havia desmaiado.
Levamos Julia para a mesa da sala da casa. Precisei afastar os cacos de vidro com um pano para não machucarmos. Estávamos a céu aberto num cenário totalmente apocalíptico. E não achava aquele um lugar para permanecer por muito tempo.
– Nós temos que ser rápidas! – Helena tinha pressa.
– Sim! Aqui não parece um lugar seguro. Mesmo estando num lugar relativamente isolado, alguém deve ter escutado a explosão e isso deve atrair curiosos – Expressei minha preocupação.
– Minha maior preocupação não é com curiosos. Me preocupo é com os amigos dela. Sabe, existe uma “cota” de níveis de poder que psiônicos podem utilizar e essa explosão deve ter chamado à atenção de todos eles. E não duvido que ela tenha feito intencionalmente para chamá-los caso a explosão não nos destruísse. O que, no caso aconteceu.
– Vamos levá-la para sua casa! Lá estaremos mais seguras, não? Você deve ter proteções! Ou pro santuário Wander! Ou sei lá… qualquer lugar que não seja aqui! – Eu estava realmente assustada. Se ela sozinha quase nos matou instantaneamente imagino seus amigos.
– Não dá tempo. Não vou conseguir mantê-la inconsciente por muito tempo. Talvez não chegássemos nem no carro. Precisamos fazer aqui. Somente parada consigo me concentrar. Ela é extremamente forte. Mais forte do que imaginei. – Helena parecia cansada.
– Eu não entendo! Quem é ela? De onde você a conhece? Eles são nossos inimigos? Nós representamos uma ameaça a eles? E quem são eles? Nós somos os caras maus? Eles fazem parte da guerra dos Wanders? Eu preciso de respostas!
– Você realmente quer conversar AGORA? Temos poucos minutos antes que todos os amigos dela extremamente furiosos estejam aqui e isso será nosso fim e você quer respostas?! Nós não somos inimigos deles. Eles não fazem parte da nossa guerra. O resto te conto SE sobrevivermos dessa, ok? – Helena estava impaciente e consenti em silêncio.
– Sua missão é muito simples, novata. Você precisa acessar a mente dela e descobrir seu maior segredo. Ele é a chave pro que estamos procurando.
– VOCÊ ESTÁ LOUCA? – Gritei assustada – você quer que eu entre na mente de uma garota PSIÔNICA? Você tem ideia do quão louco isso é? Você sabe melhor que eu que psiônicos possuem a mente como ponto forte, certo? É como mandar uma garotinha colegial com uma faca de passar manteiga para a trincheira inimiga cheia de bombas, minas terrestres, canhões e soldados altamente treinados! Isso é impossível!
– Não. Não é impossível! E essa é sua missão desde o começo! Olha, garota… Eu sei que sob toda essa pose de mulher independente existe uma garota insegura que tudo que faz precisa da aprovação de terceiros para saber até onde vai sua competência. Você precisa acreditar mais em si mesma.
– Você foi a única que conseguiu destruir os fios vitais de uma pessoa sem treinamento algum. Eu acredito em você! E eu preciso manter a Julia inconsciente. Esse é o trabalho mais difícil, acredite. Enquanto ela estiver inconsciente, seus poderes estarão reduzidos. E nesse ponto vocês duas estarão equiparadas! – Helena tentava me motivar.
Respirei fundo. Eu sabia que ela estava apenas tentando me encorajar. As chances de sucesso são mínimas. Sem falar que ela me mandou ir atrás do maior segredo dela. Ou seja, me mandou ir atrás de algo que não faço ideia do que seja e que é a coisa mais bem protegida na mente daquela moça.
Não ousei pedir alguma dica do que poderia ser esse segredo. Senti que se dissesse mais uma palavra Helena terminaria o que Julia tentou fazer há poucos minutos.
Olhei para a moça de cabelos azuis. Ela mantinha apenas a esclera dos olhos exposta. Mas estava tudo lá. A porta para sua mente. Olhei para Helena com determinação. Alguns estilhaços começavam a flutuar. Ela logo anularia o controle de Helena e recobraria a consciência. Eu precisava ser rápida.
Estava em um deserto. Dunas por todos os lados e um vento forte dificultava minha visão. Não havia sol, mas tudo estava perfeitamente iluminado. Identifiquei a maior duna e fui em direção a ela. Precisava estar no ponto mais alto para tentar encontrar uma saída.
Ao chegar no ponto mais alto eu vi ao longe, atrás de uma duna, algo que parecia ser uma Pirâmide Asteca. Vários níveis cada vezes menores conforme chega-se ao topo ligados por uma longa escadaria e no topo a entrada. Só podia ser ali.
Caminhei como nunca havia caminhado antes. Eu sei que era apenas a mente de Julia mas é extremamente difícil você andar tanto sabendo que o cansaço é apenas uma justificativa da mente em tornar tudo aquilo plausível. É impressionante o poder que a mente tem e extremamente irônico eu pensar isso nessa situação.
Ao chegar ao topo da duna que estava entre mim e meu objetivo, vi que não tinha apenas uma pirâmide Asteca. Aquela era a maior. Outras doze, sendo seis de cada lado estavam no caminho para a pirâmide maior.
Eu sei que não devia, mas tomei o caminho mais fácil: iria passar pelo caminho que se formara entre elas para acessar a pirâmide maior. Não havia tempo para contornar, eu já havia perdido muito tempo no trajeto até aqui. E quando coloquei o primeiro pé naquele caminho a areia daquela passagem se transformou em barro, facilitando minha caminhada.
Logo nos primeiros passos eu vi no alto um pássaro sobrevoar a área. Parecia ser uma águia. De qualquer forma, era certo que sabiam da minha presença ali.
Conforme eu ia passando pelas pirâmides menores, uma pessoa de cada saía de dentro do seu cume. Todos estavam vestidos da mesma forma: Peles de animais bem trabalhadas e coloridas serviam de manto, algumas pinturas corporais, sandálias de couro, algo que parecia uma cinta de couro bastante resistente acima da cintura e abaixo do peitoral com plumagem colorida ao redor e um cocar com uma base de gesso com uma miniatura de um animal na fronte e tecidos e igualmente coloridos assim como as plumagens do topo.
Cada um possuía também um broquel em cada braço esquerdo e clavas enormes na mão direita. E todos eles estavam na base da escadaria de suas respectivas pirâmides apenas me observando. Seus rostos pintados tentavam intimidar e eles estavam conseguindo.
Resolvi focar na pirâmide principal. Estava na metade do caminho e não parecia haver ninguém nela. Mesmo também por que não queria enfrentar nenhum deles. Voltava a me arrepender de ter desistido das aulas de Kung Fu. Evitaria qualquer forma de confronto aqui. estava em desvantagem em todos os sentidos.
E duvido que meus poderes funcionassem dentro da mente dela. Desde quando entrei não via os fios vitais dela. Já era de se esperar que essa não fosse uma mente comum. Era impossível ter qualquer forma de controle aqui dentro.
Segui direto ignorando todas as doze pirâmides menores e ao chegar ao topo da pirâmide principal vi Julia saindo da entrada. Ela usava um vestido com listras de várias cores com símbolos astecas entre elas. Usava também algo que parecia uma espécie de maxi colar enorme de ouro e jóias coloridas e pela primeira vez via algo assim que não parecia brega como costumava ser os maxi colares. Em seus ombros, ligados ao colar, duas ombreiras douradas com uma cabeça de águia em cada lado. Tendo cada cabeça voltada para um de seus lados.
Seus cabelos azuis estavam “calmos” dessa vez. Extremamente lisos e cumpridos pareciam normais dessa vez, embora seus olhos continuassem apenas a esclera. Ela trazia em suas mãos uma lança dourada que prontamente apontou para mim.
– Quem é você e como você chegou aqui? – Julia disse em tom extremamente hostil.
– Me chamo Milena. E preciso muito da sua ajuda. – disse enquanto a cumprimentava inclinando-me em reverência. Mas sem tirar os olhos dela.
– Independente do tipo de ajuda que queiras, não és bem vinda aqui! Vá embora imediatamente!
– Eu também vim para ajudar. Não deixaria Helena te machucar!
– Helena! – Os cabelos de Julia começavam a levantar como se estivessem sob eletricidade estática e em menos de um segundo sua mão estava em meu pescoço e ela apertava enquanto me erguia.
– Você está com Helena? Pense bem na resposta antes que quebre seu pescoço com um graveto seco.
– Sim. Mas não quero que ela lhe faça mal e farei de tudo para impedir isso. Eu não quero que ninguém mais morra por causa dela ou de ninguém. – disse com o pouco de fôlego que me restava.
Julia me soltou. Caí de joelhos tossindo e recuperando o ar novamente.
– Eu vi em seus olhos que você realmente diz a verdade. Jamais havia visto um coração tão justo. Mas você deveria saber que não conseguirá me proteger dela. Você veio atrás do meu maior segredo, certo? Pois está aqui. – Julia disse me entregando uma pequena caixinha de música azul.
Ao segurar a caixa eu vi que tudo começava a tremer. Os guerreiros entraram em suas pirâmides que começavam a se desfazer em areia.
– Aí dentro está meu maior segredo. E eu o protegi com minha vida. Saiba que ao abrir essa caixa, eu morrerei. E eu deixo esse poder em suas mãos. Você sabe que isso aqui é para salvar sua Ordem. E eu preciso saber se sua vontade de salvar pessoas é tão grande que está disposta a sacrificar vidas por isso.
Eu estava trêmula. Não acredito que isso estava acontecendo. Porque as coisas tem que ser assim? Porque alguém sempre tem que morrer para que outras possam viver? E que desgraçada é a vida de quem tem que decidir isso.
– Quando eu tocar sua testa você acordará e o conteúdo dessa caixa se unirá a você. Entenda que estou fazendo esse sacrifício pela salvação do nosso mundo. Estava esperando por todos esses anos alguém merecedora disso. Vá e salve a todos, Milena. – Julia dizia como uma despedida. E assim ela tocou minha testa.
Voltei à realidade. Senti algo dentro de mim. Olhando meus próprios fios vitais percebi uma luz azul presa a minha alma. Olhei Julia e seu corpo estava sem vida. Helena me olhava triste como quem perdera alguém especial.
– Você conseguiu, novata. – Helena tentava disfarçar.
Eu não sabia expressar o que sentia. Era uma mistura de várias emoções. Revolta, ódio, tristeza, frustração, medo. Eu tinha a obrigação de conseguir salvar esse mundo para que essa vida não seja desperdiçada. Não era mais só por mim ou por Helena. Era por Julia também.
Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa ouvimos passos ao nosso redor. Doze pessoas nos cercavam vindo da mata. Um deles que parecia ser o líder estava mais à frente.
– Vejam amigos. Tezcatlipoca ficará extremamente satisfeito com esses dois sacrifícios que acabamos de encontrar.