Sinopse: a ocupação europeia na Amazônia e o avanço do colonialismo português foi marcado pelo genocídio de centenas de povos nativos. Após anos de conflitos, massacres, doenças e escravização, a resposta indígena veio à altura, com o surgimento de um grande líder oriundo da maior nação guerreira da selva, os manaos, Ajuricaba, um jovem corajoso e inteligente que foi capaz de reunir mais de 30 tribos contra as investidas da coroa portuguesa e conseguiu impedir, durante cinco anos, a expansão do projeto colonial português em toda a calha do Rio Negro.

Há anos o cenário manauara de quadrinhos não vivia um momento tão atípico. Eventos, coletivos de produtores e novos quadrinhos, das mais variadas temáticas e formatos, surgiram e começaram uma espécie de movimento. Começo o texto com esta afirmação pois tenho outra, um pouco mais ambiciosa: a graphic novel Ajuricaba é um marco importante desse movimento.

O roteiro de Ademar Vieira é excelente, consegue apresentar a figura histórica do líder manao e adiciona camadas que entregam um protagonista bastante verossímil, talvez o maior trunfo da HQ. Ajuricaba não é o modelo de herói ocidental cristalizado na cultura pop, nem o anti-herói, popularizado mais recentemente. Nosso protagonista vai além do puro desejo de vingança ou do nacionalismo cego, ele é a encarnação de povos dizimados, de culturas extintas, de línguas assassinadas pela mão do invasor. Movido por um desejo de justiça e de reparação, Ajuricaba inspira compaixão e tristeza no leitor. Para o leitor nortista vai além, gera revolta, dor e até certa culpa. Como pudemos fazer isso? Como fomos tão complacentes com o colonizador?

Cabe aqui falar um pouco sobre a produção do quadrinho que, segundo Ademar Vieira, foi realizada a partir de intensa pesquisa. Ajuricaba já foi ficcionalizado anteriormente, no teatro, na literatura e também nas HQs, mas aqui sua história ganha contornos realmente novos. A língua manao, parte da família linguística arawak, foi extinta com seu povo e pouco registro se tem dela, um dos únicos foi realizado por um expedicionário francês que passou pela região. Ademar utilizou muitas palavras do idioma original, além de ter acesso a descrições de como os manaos se portavam, sua indumentária e, sobretudo, o que se sabia de Ajuricaba.

O desenho de Jucylande Jr., simples e direto, empresta à narrativa visual a brutalidade que ela exige. As expressões faciais e as cenas de guerra são o ponto alto do traço do artista. Em contrapartida, a arte-final de Tieê Santos aplica um leveza contrastante nos painéis amplos e contemplativos. Arte e roteiro conversam muito bem e entregam cenas magníficas da floresta, dignas de serem enquadradas e admiradas. A capa de Ana Valente também agrega bastante ao material. Apesar de não conversar com o traço do miolo, a pintura da artista e toda a composição da capa e quarta capa são belíssimas e destacam outro ponto alto da HQ: o projeto gráfico.

Além da ótima diagramação do também quadrinista, Geovan Motter, alguns paratextos, como trechos que explicam sobre o resgate da língua manao e do que há de real e fictício na obra, são bem informativos e ajudam na compreensão de quem foi o líder indígena e de sua importância histórica. Roteiro, arte e projeto gráfico colocam Ajuricaba no mesmo patamar de qualidade que o cenário independente brasileiro vem estabelecendo nos últimos anos.

O único ponto que deixa a desejar em Ajuricaba é que o quadrinho acaba mais rápido do que deveria. As personagens são bem construídas, a narrativa é envolvente e a leitura passa rápido. Senti falta de mais páginas, mais tempo para mostrar um pouco mais de certos conflitos muito ligados à identidade do povo do Norte, discussão mais do que necessária para os nossos dias. Tenho certeza que o roteiro concebido pelo autor daria conta de 200 páginas de quadrinho tranquilamente e a leitura ainda provocaria o mesmo efeito de impulsionar o leitor a continuar avançando.

Mas isso nem de longe é um defeito, demonstra apenas o que falei no início: Ajuricaba é um marco importante no quadrinho manauara e nortista. A obra é uma grande prova do que nossos contadores de histórias podem fazer. Aqui temos narrativas incríveis que merecem e precisam ser conhecidas. O Black Eye Estúdio entrega um verdadeiro manifesto sobre ser manauara e brasileiro, que vem nos lembrar de algo: andamos diariamente num chão manchado pelo sangue dos povos originários, dos primeiros, dos donos da terra.

Ajuricaba é um quadrinho essencial para o nortista e para o povo brasileiro. Huena, manaos!

Classificação:

Avaliação: 5 de 5.

CRIAÇÃO E ROTEIRO: Ademar Vieira
ARTE E CONCEPTS: Jucylande Jr.
ARTE-FINAL: Tieê Santos
ARTE DA CAPA: Ana Valente
DIAGRAMAÇÃO: Geovan Motter PUBLICAÇÃO: 2020
PÁGINAS: 132