É impossível ler “A Espera” sem que questões pessoais atravessem a leitura das pouco mais de 240 páginas da edição brasileira, lançada por aqui pela editora Pipoca & Nanquim. O tema dos laços familiares, que parece ser muito caro à autora Keum Suk Gendry-Kim, se apresenta de forma clara e poderosa, despertando no leitor preocupações e sentimentos profundamente recalcados sobre o passado.
Sinopse: já se passaram mais de 70 anos desde a eclosão da Guerra da Coreia, quando centenas de milhares de famílias coreanas foram separadas entre o Norte e o Sul. Todas elas suportam esse longo período sem nem sequer saberem se os seus amados estão vivos, aguardando por um reencontro improvável. Essa graphic novel nasceu com o propósito de compartilhar a memória dessas pessoas.
A HQ trata do drama vivido pelas famílias separadas durante a Guerra da Coreia, especialmente sobre a vida de Jiná e sua mãe, Gwijá. A trama é fictícia, mas completamente verossímil, não apenas por reunir parte dos relatos da própria mãe da autora, como também de outras personagens da vida real que sofreram com a separação. Mesmo com essa estrutura, Keum consegue criar uma obra de contornos históricos bem apurados e com personagens extremamente palpáveis.
Gwijá é cativante e, para quem leu “Grama”, da mesma autora, a comparação com a vovó Ok-sun Lee é quase imediata. Ambas representam imagens de resiliência e coragem que emocionam, inspiram e também surpreendem. Gwijá precisa casar muito cedo, uma forma de impedir que ela fosse levada pelos soldados japoneses durante a ocupação da Coreia. Já casada e com dois filhos, uma nova tragédia se abate sobre ela: a guerra a separa do marido e do filho mais velho. Mesmo com a fome, as dores e o risco de ser morta no caminho, ela segue determinada a reencontrar a família, desejo que não se extingue com sua chegada a um local seguro ou com a formação de novos laços com outro refugiado e seu filho.
A relação entre Gwijá e sua filha, Jiná, é o que move a narrativa. A espera do título é o desejo inabalável de que Gwijá reencontre o filho perdido no Norte, mas Jiná trata o desejo da mãe de forma displicente na maior parte do tempo. Após um certo período ver sua mãe envelhecer e perceber o quão pouco fez pelo seu desejo, o quanto se afastou deliberadamente ou o tempo que demorou para que entendesse que ela já estava partindo, se torna dilacerante. A culpa atinge Jiná e ela reflete sobre o passado da mãe e como ela mesma sempre se posicionou sobre o fato de ser fruto de duas famílias separadas pela guerra.
Keum tem a habilidade singular de criar metáforas visuais que traduzem bem os momentos dramáticos da narrativa. Seu traço simples e leve imprime um tom suave aos quadros, com excelentes passagens silenciosas que não deixam de significar. Há muita expressividade na caracterização das personagens e um jogo constante entre quadros sem cenário com outros cheios de detalhe, que conduz muito bem a história.
Com a obra, Keum Suk Gendry-Kim apenas confirma suas qualidades como narradora e a posiciona como uma das melhores quadrinistas da atualidade. Seu maior trunfo é a simplicidade narrativa aliada à complexidade dos seus temas centrais e de suas personagens.
Perda, culpa e dor são alguns dos principais temas de “A Espera”, uma bela e melancólica reflexão sobre a guerra e como ela pode afetar as pessoas diretamente e as gerações seguintes. Mesmo que para alguns a sombra da guerra seja algo distante ou que a esperança na reunificação já tenha se esvaído, o sentimento de incompletude perdura nos corações das famílias separadas. A saudade da terra, da comida e de tudo o que compreende a cultura e a identidade daquele povo, continua palpitando em cada um deles, numa eterna e triste espera.