O Dia Mundial do Livro foi na última segunda-feira e, hoje, a Vírgulas chega à décima semana de existência. Não poderia falar de nada senão de livros, e todos os produtos que me levaram até a literatura. Vocês já devem saber que a coluna preza por interpretar fatos e produtos usando a literatura como guia, mas hoje saberão como e o porquê de a Vírgulas Cardeais ter surgido.
Agora a literatura vai guiar um texto da coluna sobre a própria coluna. E tome metalinguagem.
Talvez este pudesse ter sido o assunto do primeiro post, mas acho que não faria tanto sentido se não estivesse minimamente segura sobre o conceito da coluna. Preferi começar com o conteúdo propriamente dito e depois, se fosse dando certo, explicar o porquê de ele existir.
Há mais ou menos um ano, escolhia o tema da minha iniciação científica. As únicas certezas que eu tinha eram que seria algo relacionando comunicação e literatura. A primeira ideia, na verdade, era um estudo sobre a adaptação de “Dois Irmãos” para a televisão. A ideia do Projeto Quadrante me fascinava desde a exibição de “Capitu”. O fato é que não achava que era o tema certo ainda. Sentia que faltava uma conexão mais forte entre mim e o projeto e, por isso, passei boas semanas tentando entender do que sentia falta.
A solução veio quando percebi que não tinham sido só os livros que tinham falado a mim desde cedo: outras mídias me levaram até a literatura. Foi assim que me reconectei, depois de alguns anos focada na faculdade de jornalismo, ao que tinha me feito chegar até ela. A tradição oral, quadrinhos da Turma da Mônica, o desenho As Trigêmeas e minha coletânea de clássicos Disney que me ensinaram a ler. E a gostar muito de ler.
“O Rei Leão”, clássico da Disney, é inspirado em “Hamlet”, de William Shakespeare
O livro nunca falou sozinho.
Aprendi a ler enquanto contava as mesmas histórias que meus pais me contavam, na tal coletânea de clássicos Disney. De tanto querer ouvir as mesmas histórias, eu já sabia decorada a sequência de palavras do livro e me guiava pelas figuras, baseadas em frames dos filmes que a Disney já tinha lançado. Não foi à toa que o primeiro romance que li na vida foi “Vinte Mil Léguas Submarinas”, que baseava meu episódio favorito de As Trigêmeas. Se hoje a escrita é a linguagem que escolhi pra me comunicar com o mundo, foi porque outras linguagens me introduziram a ela.
Historicamente, a leitura é ligada à ideia de intelectualidade, enquanto outros meios culturais permanecem subvalorizados em um sistema que continua aceitando somente o conhecimento científico e “letrado”. Não é de se espantar que crianças e jovens percam o interesse pela leitura quando só ela é legitimada no processo de aprendizagem. Apesar de compreensível, é preocupante. Em um país onde 30% da população nunca comprou um livro e que 54% das crianças têm nível de leitura insuficiente, é impossível ignorar que faltam iniciativas que tragam de volta o interesse da população pela leitura. Leitura que, por muitos séculos, também excluiu grande parte do povo em muitas partes do mundo.
Assim, surgiu o tema da minha pesquisa, que tem As Trigêmeas como objeto de estudo e fala sobre como interesses mercadológicos nos fizeram esquecer do potencial educativo de uma boa programação infantil.
Usando o mesmo raciocínio, percebi que muitas das minhas decisões, opiniões e gostos, até hoje, são extremamente ligadas às minhas leituras, ainda que passe alguns meses sem conseguir ler romances. É através da escrita que me expresso melhor. Me apegava aos livros enquanto objetos e nunca queria fazê-los voltar a circular, eram troféus que de nada valiam porque não sabia como compartilhar tudo que tinha absorvido deles.
Ler era um prazer um tanto solitário, uma felicidade clandestina, como diria Clarice.
Foi pensando assim que surgiu a ideia do que seria a Vírgulas Cardeais. Os livros não podem ser a única fonte de conhecimento e de interpretação diante da enorme variedade de conhecimentos na existência humana. Aqui, os livros têm função de guiar os raciocínios, não porque são uma forma de cultura superior, mas porque é importante estabelecer o diálogo entre diferentes mídias e ambientes. Por mais improváveis que pareçam, as relações entre literatura, realidade e outros meios culturais existem e devem ser abordadas em conjunto. Respeitando não só o conhecimento vindo dos livros, mas também das outras muitas e, particulares, formas de ser ler o mundo e as pessoas.
Porque os livros não falam sozinhos.