Como homem, não posso fazer uma abordagem para falar sobre a evolução da representatividade feminina nos jogos. Como fã, que acompanha e estuda os videogames, vou traçar um histórico das mulheres que marcaram essa mídia, desde os bits até os visuais foto-realistas, percorrendo as convenções de alguns gêneros. Vamos percorrer essa linha do tempo destacando 8 personagens que se destacaram e marcaram a vida de jogadoras e jogadores.

  1. Ms Pac-man (1981)

Talvez Ms. Pac-Man não pudesse ter existido, porque o jogo não é uma sequência oficial, ele foi lançado pela Midway nos Estados Unidos, que se cansou de esperar o Super Pac-Man da Namco, proprietária da franquia. Apesar de utilizar o clichê da versão feminina de um personagem masculino, pode-se dizer que Ms. Pac-Man é a primeira personagem feminina notável dos videogames, por que não dizer uns dos primeiros personagens com personalidade na história dos jogos?

Ms. Pac-Man

  1. Samus Aran (1986)

Em 1986 o cenário em que a donzela estava em perigo havia se tornado padrão. Nesse ano, a Nintendo lançou Metroid. O jogador assume um personagem em uma aventura solitária em um planeta labiríntico, cheio de inimigos e ameaças do próprio ambiente. As pessoas na época foram surpreendidas por uma quebra de convenção, pois quem estava dentro do traje espacial era uma mulher, Samus Aran, que havia enfrentado todas as adversidades daquele planeta SOZINHA. Muito da inspiração de Metroid vem do filme Alien, e Samus seria a Ellen Ripley transportada para o mundo dos games.

Os finais diferentes em Metroid

Ao mesmo tempo em que Metroid trazia a primeira heroína dos videogames, utilizou o clichê de usar uma personagem feminina como troféu. Quanto mais rápido se zera o jogo, o jogador será recompensado com a personagem apresentando menos roupa, um padrão que se seguiu para o restante da série. Apesar disso, Samus continuou como um ícone feminino nos videogames. A maior prova foi a reprovação dos fãs da versão da personagem em Metroid Other M, onde a Samus aparecia muito fragilizada a situações que já havia passado, além de demonstrar pouca autonomia em suas ações. Houve uma quebra do imaginário de sua personalidade, com um agravante de Other M ser um dos últimos da linha do tempo, no qual Samus já possuía uma enorme bagagem de suas aventuras.

  1. Chun-li (1991)

Em 1991, Street Fighter II foi lançado causando um grande impacto nos videogames, definindo os jogos de luta para sempre à uma nova popularização dos arcades. Uma das grandes virtudes do jogo foi o seu elenco de personagens, os quais são icônicos até hoje. No total de doze, um deles era uma mulher, Chun-li. Apesar de Street Fighter II contar com o princípio da Smurfette, onde uma personagem feminina está no meio de homens, a qualidade que Chun-li se separa dos demais personagens, não apenas por ser uma mulher, como ocorre em outros casos, mas por ser uma personagem que representa um país (China), possui um enredo ligado a trama central, e mesmo mais fraca em seus golpes, contou com sua velocidade como estratégia em seu estilo de luta. Chun-li fugiu do padrão de servir apenas como uma versão feminina de um personagem masculino, acompanhante do protagonista ou uma donzela indefesa que precisa ser resgatada. Em Street Fighter II, Chun-li esteve no meio dos homens para lutar de igual para igual com eles em busca de seu objetivo.

Chun-li

Após o sucesso de Street Fighter II, vários jogos de lutas e outras franquias se estabeleceram, eventualmente trazendo em seus títulos mais que apenas uma mulher no meio de homens. Porém, não há como negar que é nesse gênero onde mais se nota que as personagens femininas atendem fetiches do público masculino. Se fosse para listar todas as incoerências nesse gênero, eu precisaria fazer um outro post.

  1. Celes Chere (1994)

O gênero RPG já tinha o costume de apresentar personagens femininas mais atuantes, não posso deixar de fazer uma menção a Alis Landale, a heroína de Phantasy Star, que no primeiro jogo da série, em 1987, já salvara um sistema solar. Mas meu destaque nesse gênero é a personagem Celes do jogo Final Fantasy VI, o primeiro da série que contou com uma protagonista feminina: Terra Branford. Mas o que torna a Celes um destaque maior nessa postagem?

Celes

O ponto forte da personagem é sua jornada de desconstruções. Celes inicia como uma donzela em perigo, sendo salva pelo personagem Locke. No decorrer da história, ela lida com conflitos internos por ser aliada dos vilões (Império Gestahl), sendo orgulhosa e dura, mas ao mesmo tempo descobre amigos com o grupo de rebeldes, conhecido como Returners. Em contato com Terra, Celes encontra alguém com quem pode dividir suas aflições, pois a protagonista passou por situações parecidas em sua vida. De mulher resgatada, é Celes que, depois que o mundo acaba, consegue reunir forças para juntar todos os personagens novamente, encorajá-los e lhes dizer que ainda existe esperança.

Celes não se destacou por meio da força bruta, derrubou as maiores adversidades sem violência, sua força como personagem é demonstrada no sentido mais amplo da palavra. Celes teve de lidar com a morte do seu pai de criação, que havia se tornado a única companhia em uma ilha isolada no fim do mundo. Em profundo desespero tentou se matar, mas conseguiu juntar forças para mudar literalmente o jogo, do seu jeito.

A cena da ópera, onde Celes “canta” Aria di Mezzo Carattere. Na verdade a voz não é reproduzida pela limitação de som do Super Nintendo

  1. Lara Croft (1996)

Não tem como fazer um post falando sobre personagens femininas sem falar de Lara Croft. Ela é um considerada um ícone; quando se pensa em mulher na mídia dos videogames, geralmente é a Lara que vem em mente.

Lara Croft, a direita de 1996, a esquerda de 2013

1996 foi um ano em que a indústria dos videogames mergulhou nos gráficos poligonais, o primeiro Tomb Raider é um marco nesse aspecto. O título apresentava uma mulher protagonista com um corpo “realista”, não era de surpreender que Lara Croft chamaria a atenção dos jogadores. Toby Gard, o criador da personagem, queria criar uma personagem que fugisse dos estereótipos e cujos movimentos se adequassem a um jogo de forma palpável. Em um momento do desenvolvimento, Gard acidentalmente aumentou os peitos de Lara e o restante da equipe achou melhor manter desse jeito. Toby Gard acabou saindo da desenvolvedora Core Design, por reclamar da pouca liberdade criativa, sobretudo na própria Lara Croft.

Os primeiros Tomb Raider foram um sucesso, entretanto, a história da franquia é de altos e baixos. As aventuras de Lara Croft já foram reiniciadas duas vezes, mudando as origens e até mesmo a personalidade dela. A releitura mais recente da personagem começou no jogo Tomb Raider de 2013, que conta uma nova origem, uma Lara bem mais jovem e inexperiente. O aspecto de sobrevivente foi adicionado, em contraponto àquela mulher quase super humana que era apresentada nos jogos anteriores.

Angelina Jolie e Alicia Vikander

Lara Croft se tornou icônica em seus primeiros anos, e logo os jogos foram adaptados a filmes. Angelina Jolie estrelou dois filmes, um em 2001 e outro em 2003. Depois de mais de uma década, um novo filme da série será lançado em 2018, desta vez Lara Croft será interpreta por Alicia Vikander, em uma adaptação mais orientada pelo reboot de 2013.

  1. Jade (2003)

Beyond Good & Evil é um clássico cult lançado pela Ubisoft, sua protagonista Jade rapidamente se tornou uma das personagens femininas mais memoráveis. O seu criador Michel Ancel tinha a intenção de criar uma personagem que se assemelhasse com uma pessoa real, e sua esposa, como ilustradora, foi fundamental na construção da personagem.

Jade

Apesar de Jade ser citada como negra, o gerente de relações públicas Tyrone Miller diz que é difícil estabelecer uma etnia, pois o jogo se passa em outro planeta. Uma das especulações sobre a ambiguidade de sua etnia é porque os desenvolvedores queriam que mais jogadores se vissem nela. Jade é uma das personagens mais elogiadas no que diz respeito a criar corretamente uma personagem feminina. Como falei no início, Beyond Good & Evil é um clássico cult, pois foi bastante elogiado pela crítica e é adorado por quem o jogou, porém tímido nas vendas. Sempre se especulou sobre uma sequência, mas apenas na E3 2017 que a Ubisoft mostrou que um novo jogo está sendo produzido, onde apenas os olhos verdes de Jade aparecem com mais detalhes no trailer.

  1. Faith Connors (2008)

Faith é protagonista do jogo Mirror’s Edge, é uma personagem que utiliza de sua agilidade e movimentos de parkour, em um futuro distópico, contra um governo totalitário. Os desenvolvedores colocaram o jogo em uma perspectiva de primeira pessoa, para, de certa forma, conectar o jogador com a personagem. Faith foi bem recebida pelo seu design e por não ser uma personagem sexualizada, sua aparência se reflete em seu próprio atletismo e na estética limpa e minimalista do jogo.

Faith

A personagem sofreu algumas críticas por ter pouca personalidade. O segundo jogo, Mirror’s Edge Catalyst de 2016, buscou trazer uma profundidade maior à personagem, porém não foi tão aclamado quanto o primeiro no geral. Coloquei Faith nessa lista, porque analiso que a partir de 2008, pode-se notar um ligeiro aumento nos jogos que colocam personagens femininas em um papel mais importante. Afinal de contas, desde a geração passada o público que joga passou a se diversificar. No Brasil, por exemplo, 52,6% do público é formado pelas mulheres.

  1. Aloy (2017)

Para fechar, coloquei a protagonista de Horizon Zero Dawn, com uma pergunta no ar: o que será no futuro? A relevância de Aloy se dá em todo o processo de seu desenvolvimento, pois a desenvolvedora Guerilla Games apostou em uma nova franquia, com um estilo de jogo que nunca haviam trabalhado antes e que seria um grande projeto. Eles enfrentaram a própria Sony que dizia que adicionar uma protagonista feminina seria um risco, mas a Guerilla desde o início da produção (2011) queria uma mulher como personagem principal.

Aloy

Horizon se comprovou um jogo de grande sucesso, um dos melhores do ano, uma nova franquia que em seu primeiro título disputou com Super Mario e The Legend Of Zelda. Aloy foi muito bem recebida, muito por ser uma personagem muito palpável. Quando joguei Horizon, em vários momentos pensava: “por que mesmo é tão difícil ter uma protagonista feminina?”, “o que um homem faz de tão especial que uma mulher não pode fazer e ser a heroína de sua própria história?”. É muito interessante ver que o ponto que fazia a narrativa fluir, era a curiosidade e a intuição de Aloy, o jeito que essas características naturalmente estavam presentes na evolução da personagem. Acho que nenhum jogo, nem mesmo a série Metroid me fez refletir sobre isso. Porque em Horizon, a Guerilla Games fez parecer que é a coisa mais comum jogar com uma mulher e se aventurar em um mundo rico e cheio de possibilidades.

Aloy pelo artista Damien Rouge

Porém foi uma doce fantasia que me inspirou durante dezenas de horas nessa prazerosa jornada. Mas, infelizmente, ainda não vivemos nesse mundo rico e cheio de possibilidades, os videogames não deixam de ser reflexos de muitos pensamentos fora dele, sobretudo o machismo. Nos jogos podemos interagir com muitas vidas de um jeito que nenhuma outra mídia permite, porém não é um tanto limitante vivenciar sempre as mesmas histórias com os mesmos clichês? Com os mesmos heróis padronizados e as mesmas formas de recompensa? Assim como algumas personagens me marcaram positivamente, há tantas outras com ótimas concepções que infelizmente são limitadas por estereótipos sexistas.