Todos achávamos que a notícia da semana seria a morte, aos 76 anos, do físico britânico Stephen Hawking. A Vírgulas Cardeais dessa semana, inclusive, seria sobre como ciência e arte podem – e devem – confluir. Esse texto ainda sairá por aqui. No entanto, pelo menos para nós, brasileiros, não foi a morte de Hawking a principal notícia da semana.
O assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol – RJ) e seu motorista, Anderson Pedro, na noite da última quarta-feira (14) está sendo tratado como execução. Marielle foi a quinta vereadora mais votada do Rio nas eleições de 2016, era socióloga e mestre em administração pública. Mais que isso: era uma voz que incomodava. Ter este espaço no qual posso me comunicar é uma responsabilidade: não falar sobre a morte de Marielle seria ser omissa em uma conjuntura que nos obriga a tomar posição.
O Dia Mundial da Poesia é dia 21 de março, assim, quis ter um poema como objeto dessa vez. Tinha escolhido “O Sentimento do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, para traçar paralelos com a ciência. Para minha surpresa, o mesmo poema também se encaixou na situação de medo que a morte de Marielle deixou o país.
O poema
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor
É assim que começa um dos poemas mais conhecidos do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que intitula seu terceiro livro de poesia, “O Sentimento do Mundo” (1940). Aqui, Drummond fala sobre solidão, contemplação, guerra e amor.
O poema, assim como boa parte do livro, é movido por uma dualidade entre ver a realidade, cruel, e acreditar que ela pode ser alterada positivamente. O sentimento do mundo é a consciência do quão ruim é a realidade e do quão difícil é manter a esperança perante a tudo que se vê.
Escrito durante a Segunda Guerra, por alguém que já tinha testemunhado o horror da Primeira, é possível imaginar a causa do tom triste das observações de Drummond, mas também são essas que enfatizam o caráter universal de sua obra poética. Embora tenha um tom mais introspectivo e niilista, Drummond lança o olhar sobre o mundo ao seu redor e suas respectivas dores.
O crime
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis
Em menos de dois anos de mandato, apresentou 16 projetos de lei, era defensora dos direitos humanos. Há poucos dias havia denunciado a violência da polícia em Acari, na região do Irajá, e era uma das relatoras da comissão parlamentar que acompanha a intervenção federal na segurança pública do Rio.
Na noite da última quarta, Marielle voltava para casa após uma roda de conversa com outras lideranças jovens, feministas e negras, quando o carro onde estava foi alvejado por, pelo menos, nove tiros. Marielle e o motorista, Anderson, que estava na linha de tiro, morreram na hora. A assessora de imprensa que acompanhava a vereadora foi a única sobrevivente.
A morte de Marielle causou grande comoção nacional e internacional, ainda que muitos tenham ironizado sua morte e dito que ela teve o que merecia, já que “direitos humanos é defender bandido”. O crime é considerado um atentado à democracia, já que Marielle fazia constantes denúncias de abuso policial, inclusive durante a intervenção na segurança pública, sobre a qual era terminantemente contrária.
Esse amanhecer mais noite que a noite
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
É assustador.
Por mais que alguém ainda queira dizer que “não temos certeza de quem foi”, é impossível dissociar o trabalho político de Marielle de sua morte. Aparentemente, quem a matou sabia, inclusive, onde a vereadora estava sentada no carro. Ela era o alvo, o motorista morreu por estar no meio da trajetória da bala.
A cidade, uma das maiores do país, na qual o crime aconteceu está ocupada por uma polêmica intervenção militar na segurança pública com ares de manobra política. É ano de eleição, a primeira depois de um golpe, e o país continua em crise. Fui a uma palestra da Eliane Brum na qual ela dizia que a crise no Brasil não é só política ou econômica: é uma crise de identidade e de palavra. Chegamos a um ponto em que as palavras perderam significado, perderam efeito.
O Brasil já teve uma ditadura. Se não estudarmos história, se não entendermos o que de fato aconteceu com o país, a ditadura vai se repetir. Se não se estuda, não se conhece e, portanto, não se evita. A Alemanha está propondo visitas a campos de concentração como forma de educar as novas gerações sobre o horror do nazismo. Aqui, muita gente defende uma reforma tecnicista do ensino médio.
É assustador pensar que uma defensora dos direitos humanos, eleita e atuante, tenha sido morta por motivações políticas em um país que se diz democrático. Os camaradas não disseram que havia uma guerra, uma guerra que, de tão absurda, às vezes esquecemos. Uma guerra que pode, sim, nos levar a um governo, se não ditatorial, reacionário. Não faltam candidatos com esses perfis que, inclusive, exaltam torturadores.
Temos razão em ficarmos assustados com os rumos que todas as esferas do país estão dando a si mesmas. Nada conflui, tudo parece sombrio, nebuloso. Já não se confia em mais ninguém. Vozes que incomodam começam a ser apagadas de maneira aberta. As pessoas têm medo de voltar para a ditadura, enquanto outras, sabe-se lá o porquê, a pedem de volta.
Começamos a ter medo de ficarmos sozinhos vendo corpos passarem. Corpos calados que já abrigaram vozes poderosas. É difícil ter esperança que tudo possa melhorar, mas é necessário ter alguma esperança. E é desse sentimento do mundo que precisamos agora para que as palavras não sejam anestésicas e cada amanhecer não se torne cada vez mais escuro.