Comporte-se como uma mocinha. O que é comportar-se como uma mocinha?
Meninas crescem ouvindo frases assim. E não só frases proferidas por pessoas próximas: contos de fada, filmes, programas de televisão. Tudo parece dizer que meninas devem se comportar como uma mocinha. E que, pra ser considerada uma boa mocinha, deve-se abrir mão de suas opiniões, silenciar e não contestar nada do que lhe for dito. Ah, tudo posto em palavras disfarçadamente em um: sente-se como uma mocinha.
Por mais que muitas vezes não seja dita com más intenções, é irritante ter que ouvir isso cada vez que você se senta só porque suas pernas não estão inclinadas para o lado com os tornozelos cruzados e se tocando levemente, à la O Diário da Princesa (2001). Não é só o fato de aparecer ou não uma calcinha. É que, de tanto repetida, essa frase soa como uma tentativa de domesticação.
E às vezes a gente só quer sentar de perninha de índio.
O modo como meninas são ensinadas a se portar em situações sociais, principalmente quando há conflito de ideias, beira a omissão. Meninas, mocinhas e mulheres não são estimuladas a contestar e a grande maioria da sociedade também não espera que elas contestem. A feminilidade, no senso comum, é associada à passividade de tal modo que, quando uma mulher defende suas ideias com embasamento, é tachada de agressiva, pretensiosa. O mundo não está preparado para mulheres que contestem. E é daí que vem o raciocínio absurdo de que feministas são agressivas e, ainda mais absurdo, feminazis.
Me poupe.
De tanto ouvir, diretamente ou indiretamente, tal ideia, meninas e meninos a internalizam desde a infância. Depois, na vida adulta, reproduzem os mesmos mecanismos aos quais foram expostos durante toda a vida. É um ciclo que só pode ser interrompido com representações femininas fortes, independentes, contestadoras e inteligentes. Com opiniões e reflexões que estimulem meninos e meninas a enxergarem o mundo com criticidade. Como Mafalda, Mônica e Marjane.
Mafalda
Estrela de praticamente todas as provas de linguagens que fiz na vida, Mafalda é, junto com tango, Evita e Ricardo Darín, um dos maiores ícones da Argentina. Criada pelo cartunista Quino em plena ditadura militar argentina, Mafalda é uma menina extremamente inteligente e contestadora. As tiras se passam no bairro de Santelmo, em Buenos Aires.
Apesar de ser uma menina com menos de 10 anos, Mafalda não é feita exclusivamente para o público infantil. Na verdade, a complexidade e ironia de suas tirinhas são melhor percebida por adultos, cuja realidade é contestada toda hora pela sabedoria ácida da menina.
Mônica
Gordinhas, esquentadas e com vestidinhos vermelhos. A comparação entre Mônica e Mafalda vai além de aspectos visuais. De diferentes maneiras, ambas exercitam seus poderes de formar ideias e se colocar diante do mundo.
Os quadrinhos da Turma da Mônica foram responsáveis pela introdução de várias gerações à leitura, e seus gibis são, também, ícones da cultura pop brasileira. Passadas tantas décadas, a Turma se reinventou de maneiras incríveis, mas a versão clássica nunca deixa de ser influente. E tudo isso com uma personagem feminina como “dona da rua”, título que, inclusive, foi mote pra campanha Donas da Rua.
Mônica, romântica, feminina e fora dos padrões de beleza, é a dona da rua. E não aceita que tentem passar por cima dela. O que seria da Turma da Mônica se a Mônica ficasse preocupada em sentar como uma mocinha e, Magali, a comer com classe?
Marjane, de “Persépolis”
Marjane é uma representação de sua criadora, a cartunista iraniana Marjane Sartrapi. Em “Persépolis”, é a partir da ótica de Marjane que se enxerga os impactos da Revolução Iraniana (1979) na vida das mulheres. A história começa com a personagem ainda criança que, ciada por pais ativistas, foi estimulada a falar suas opiniões e a se opor quando preciso.
No caso de Marjane, sua voz é negada, e ela se revolta. As mudanças político-religiosas do seu país, agora uma teocracia xiita, a fazem ir embora e ainda sofrer como imigrante, sozinha em outros países. Tudo durante a adolescência. A história é, originalmente, contada em quadrinhos, mas ganhou uma animação para o cinema em 2007.
Meninas podem e devem se opor e impor
Foi lendo gibis e tirinhas que muita gente começou a juntar as letras e balbuciar algumas leituras. A importância dos quadrinhos para a formação e informação de crianças é poderosa e vem acompanhada com uma dose enorme de nostalgia, principalmente se você foi parando de comprar gibis ao longo do tempo.
Mafalda, Mônica e Marjane. Além de todas terem seus nomes iniciados por M, outra coincidência: todas “surgiram” em atmosferas politicamente sombrias. Mônica e Mafalda nasceram praticamente na mesma época, entre 1963 e 1964, próximo à eclosão da ditadura militar do Brasil e da Argentina. Marjane, por sua vez, conta sua história no epicentro da Revolução Iraniana, que tornou seu país uma teocracia xiita.
Elas são expressões de liberdade. Três personagens de quadrinhos que têm formas diferentes de se inserir no mundo que as rodeia, mas nenhuma delas omite suas opiniões. Seja mais comportamental ou sociopolítica, a maneira como meninas, ainda crianças, se descobrem no mundo é decisiva para que elas, com o tempo, tornem-se cada vez mais donas de si próprias. É contestando que torna-se dona de sua voz, seu corpo, da rua e do globo terrestre.