Meus pais tinham várias fitas K7, mas apenas cinco ou seis tinham Let’s Dance. No entanto, eles ouviam todo dia essas mesmas cinco ou seis fitas.

Após assistir O Labirinto, meu pai chamou minha atenção para um fato curioso:

– Sabe o vilão desse filme? Ele é o cantor daquela música que você gosta [gostar = ouvir milhares de vezes a mesma música e passar a cantarolá-la involuntariamente].

Mal sabia que ele já tinha participado de outros filmes, como Fome de Viver e O Homem que Caiu na Terra. O importante para mim naquele momento era que aquela voz grave e elegante do rádio tinha ganhado um rosto. Um rosto bem peculiar. Um rosto que a cada época descobria um jeito novo de ser peculiar.

Quem viveu os anos 60, 70 e mesmo 80 sabe do impacto que foi David Bowie não só para a música como para a cultura pop em geral. Era como se alguém jogasse num liquidificador elementos do teatro, da ficção científica, da cultura oriental e dos quadrinhos e saísse um mix não só interessante como dançante.

Claro, existia também toda a questão do estilo de vida do artista. Androginia era algo extremamente ousado numa época em que as maiores potências do planeta Terra competiam para ver quem tinha mais culhões. Ora, é bem possível que muitas discussões sobre sexualidade nas ruas e nas casas tenham tido Bowie como seu estopim.

Mais que relativizar tabus, as performances de Bowie conseguiam passar uma mensagem muito mais simples a audiências quase invisíveis: de que ser estranho podia ser divertido, de que “podemos ser heróis mesmo que só por um dia”. Uma mensagem que ganhou grandes proporções ao longo das décadas ao ponto de hoje muitos grupos, antes marginalizados, poderem se declarar abertamente, sem medo de represálias. Como parece que tem ocorrido com os nerds. Evidente que ainda há muito a ser feito, principalmente no que se refere ao preconceito no interior desses mesmos grupos.

Artistas que alargam as fronteiras do que é possível em uma determinada época são uma espécie rara. Em extinção, dirão alguns. Aqueles que nos marcaram, que nos acompanharam por quase toda nossa vida, seja provocando nosso senso comum ou embalando nossos momentos especiais, muitas vezes só têm sua contribuição avaliada quando já não estão mais entre nós.

Antes de concluir, queria ressuscitar mais uma lembrança:

Quando assisti a uma entrevista daquele sujeito peculiar na televisão, me impressionei com o fato dele continuar com os olhos maquiados. Minha mãe revelou que eles eram assim mesmo, e por uma razão lógica:

-Ele é um alien!

Pensei comigo: pode ser que a invasão extraterrestre não seja tão feia quanto se pinta…

 


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