“Ela era Lo, apenas Lo, pela manhã, um metro e quarenta e cindo de altura e um pé de meia só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly na escola. Dolores na linha pontilhada. Mas nos meus braços sempre foi Lolita.”
– Capítulo de abertura de “Lolita”
“Lolita”(1955) é um clássico da literatura mundial, ainda que tenha sido censurado em vários países europeus. Escrito pelo russo Vladimir Nabokov, a obra é considerada como um dos livros essenciais do século XX e, assim sendo, não é de se espantar que tenha marcado muita gente. Se você não leu “Lolita”, é importante saber que não tem spoiler: você já sabe, desde a primeira página, que é o relato de um pedófilo.
“Como deixaram isso fazer sucesso?”, você pode estar se perguntando agora. Bem, o livro serve – ou deveria servir – de alerta para algo extremamente perigoso: a romantização de abusos e crimes sexuais. O livro é um clássico, principalmente, pela maneira poética que Humbert Humbert, o narrador-personagem, descreve Dolores Haze, sua enteada de 12 anos. Nabokov consegue mostrar como é fácil se deixar levar por palavras bonitas e romantizações, mesmo sabendo do que o narrador foi capaz de fazer.
“Eu te amava. Não passava de um monstro pentápode, mas te amava. Fui desprezível e brutal, e torpe, e tudo o mais, mas je t’aimais, je t’aimais! E houve momentos em que eu sabia como te sentias, e a consciência disso era um inferno, minha pequena!”
–Humbert Humbert “Lolita”
Há inúmeras citações poeticamente bonitas no livro. Poeticamente. Não se esqueça que todo o “amor” que Humbert Humbert diz sentir por Dolores é proporcional à infinidade de abusos que ela sofreu no tempo que foi obrigada a acompanhá-lo. Toda a devoção que ele diz sentir é, na verdade, um amontoado de egoísmo e perversidade. “Lolita” é perturbador porque é feito de palavras bonitas.
“Como eu esperava, ela deu o bote sobre o frasco contendo cápsulas rechonchudas, lindamente coloridas e carregadas do Sono da Bela. ‘Azul!’, exclamou ela. ‘Azul violeta. Do que elas são feitas?’ ‘Céus de verão’, disse eu, ‘ameixas e figos, e o suco de uva dos imperadores’”
– Humbert, ao dar soníferos a Dolores
Para mim, essa é uma das citações mais perturbadoras. Coberto de didatismo, Humbert dá a Dolores – repito, uma menina de 12 anos – soníferos, para que possa estuprá-la durante o sono. Não é uma obra fácil de digerir. A obra retrata Dolores a partir da perspectiva pedófila de Humbert: como se cada movimento dela fosse para seduzi-lo. Um ponto importante é que o livro é o depoimento, no tribunal, do narrador, acusado de pedofilia. Isso está na primeira página.
Tudo isso faz de “Lolita” um aviso, um retrato de destruição. O que preocupa é, na verdade, como isso tudo é lido atualmente. O termo ‘lolita’ virou adjetivo, substantivo e fetiche. Sinônimo de ‘ninfeta’. Diversas produções fizeram releituras de histórias sobre jovens que se relacionam com homens mais velhos, sempre vendendo relacionamentos abusivos como “amor” ou, ainda, culpabilizando a menina/mulher. Só consigo pensar que entenderam errado a mensagem do livro, que anula propositalmente a visão de Dolores para mostrar seu sofrimento.
Lolitização na teledramaturgia
Não é a primeira vez que falo sobre a relação entre “Lolita” e a telenovela “Verdades Secretas”(2015). Nunca cheguei a ver um depoimento de alguém da produção, mas tenho certeza absoluta que a novela foi baseada no livro.
A história é praticamente a mesma: um homem mais velho se interessa sexualmente por uma menina, finge amar a mãe da garota só para se aproximar dela. Ele, então, cria uma obsessão doentia pela moça, que disfarça dizendo que é amor. A mãe morre e, então, ele vê isso como uma forma de ser “feliz para sempre” com a moça. Em nenhum dos dois casos é amor, é puro abuso. Senão crime, como é o caso do livro.
Embora Arlete/Angel (Camila Queiroz) seja mais velha que Dolores e, aparentemente, tenha mais poder de decisão que ela, não esqueça que, na novela, a personagem tinha 16 anos. Alex (Rodrigo Lombardi) não a estupra, mas comete abusos de várias formas para encurralá-la. No fim da trama, ela tem 17 anos, a mesma idade com a qual Humbert encontra Dolores pela última vez.
Se já era complicado ler e digerir o livro, o que dizer de se deparar com essa pesquisa? Feita por vários veículos de comunicação, o público foi quase unânime que Alex e Arlete deveriam se casar e, quando se pedia para que os votantes justificassem suas escolhas, a resposta era “porque ele fez tudo aquilo por ela, o amor tem que prevalecer”. Não é amor, Alex era um megalomaníaco abusivo.
Os resultados preocupam porque mostram o quão enraizada está a ideia de que abusos são demonstração de amor e que meninas, não importa qual idade tenham, sejam sexualizadas. Ainda bem que pelo menos o final da novela não foi o que apontavam as pesquisas de público. Provavelmente, as cenas finais foram algumas das poucas nas quais se pôde, finalmente, ter noção do real sofrimento da vítima.
Lolitização na mídia
É muito comum ouvir que “meninas amadurecem mais rápido que meninos”. Assim como boa parte das frases feitas, não se enxerga o quanto é destrutiva em larga escala. Meninas não amadurecem mais rápido, elas são responsabilizadas e sexualizadas muito cedo. O que não faltam são exemplos na mídia e, principalmente, na vida da maioria das mulheres, que começam a ser chamadas de “gostosa” na rua antes mesmo de descobrir o que é menstruação.
Mas, retendo-me aos exemplos midiáticos, o mais recente foi da W Magazine, que listou Millie Bobby Brown, à época com 13 anos, como um dos motivos pelos quais a televisão estaria mais sexy. Muito carismática, a intérprete de Eleven, da série Stranger Things, surgiu com visual completamente adulto, demonstrando uma tentativa de sexualização da indústria, como já aconteceu com outras atrizes jovens.
No Brasil, Valentina, participante de 12 anos do Masterchef Júnior, sofreu inúmeros ataques e abusos de pedófilos via redes sociais. A polêmica com a participante teria, inclusive, feito com que o material bruto em vídeo do programa fosse reeditado para que Valentina fosse menos exposta. A repercussão chegou a veículos internacionais e foi decisiva a ponto de a emissora não renovar o programa para uma segunda temporada.
Embora pareça surreal, a realidade atual não está tão distante assim da experiência de ler “Lolita” e se deixar levar pelas palavras de um criminoso, que as fala como se fossem ‘elogios’. A figura da lolita – assim mesmo, já substantivada – é tão frequente na mídia que passou a ser falada abertamente, com a desculpa de que “as meninas de hoje em dia já têm corpão”.
O quão distante é isso do raciocínio doentio e criminoso de Humbert Humbert?