A minha paixão pelos mitos sempre me levou a lugares magníficos, mas eu descobri cinco anos atrás que o nosso continente era um lugar tão fantástico quanto Ásia ou Europa. De lá pra cá, eu tenho me deparado com muitas histórias, boas e ruins, sobre nosso folclore. Dispenso falar do que me desagrada. Creio que vale a pena compartilhar apenas o que é bom. Mesmo tentando economizar este ano, acabei me deparando extasiado ao ver um livro sendo financiado no Catarse. Tratava-se de Araruama.
Em Araruama, o momento do nascimento é um ritual sagrado. Monâ, a mãe do tempo e de todas as coisas, costura a duração de vida dentro do corpo de cada criança. Ao som das palavras de Majé Ceci após o parto, cada destino é selado: Kaluanã, nascido para uma vida mais longa que os números podem dar conta; Obiru, o capanema que morrerá jovem, destinado a descascar mandioca sob o olhar de desgosto do pai; Apoema, a que vê além e sonha em voar.
Em “O Livro das Sementes”, o primeiro volume da série, o leitor é transportado para uma realidade dura e encantada, onde as palavras são magia, a floresta é o mundo, e forças determinam o equilíbrio da Ibi, a terra. A harmonia se baseia nas regras dos deuses, onde morte e vida, caça e caçador convivem até que a luz se apague. Mas este ciclo tão familiar pode estar com os dias contados, pois sobre a Ibi se espalha um sentimento novo e incômodo: uma “fome sem apetite”, uma paixão pelas pedras derretidas. É o anúncio de que tempos sombrios estão por vir, sob formas nunca vistas antes— e os destinos das crianças de Araruama estão tão entrelaçados como raízes retorcidas.
O autor do livro é Ian Fraser, que nasceu em Salvador, Bahia, no ano de 1983. Formado em Cinema & Vídeo e fundador do Teclado Disléxico. Seu primeiro romance, “O Sangue É Agreste”, venceu o Prêmio Jovem Autor Inédito pelo Selo João Ubaldo Ribeiro. O romance, um faroeste brasiliense repleto de experimentalismo formal, é o primeiro capítulo na trilogia “Os Livros Do Sertão”. Ele também escreveu e produziu a peça “A Máquina Que Dobra o Nada”, sucesso de crítica e vencedora do Prêmio Braskem de Teatro, a maior premiação do teatro baiano, na categoria Melhor Espetáculo Infanto-juvenil. Bem, depois de tudo isso ficou impossível eu não querer fazer uma entrevista com ele. Confira abaixo nosso bate papo.
MN: Eu sei que é uma pergunta boba, mas qual sua inspiração para a obra?
R: Acho difícil um autor encontrar uma única inspiração para compor sua obra. Dificilmente as coisas são simples assim. Creio que Araruama seja uma junção de desejos, influências e inspirações. A ideia inicial veio com a vontade de entender a relação do homem com a morte, um tema que sempre me fascinou. Com isso, nasceu um questionamento: se nós soubéssemos, desde o nascimento, quanto tempo de vida nós temos, como seria a nossa sociedade? Como seria nossa relação com a “escuridão final”? Com essa indagação em mente, comecei a criar uma narrativa medieval, inspirada nos costumes dos highlanders (meu sobrenome Fraser vem de uma linhagem escocesa). Cheguei a traçar algumas linhas, mas a ideia parou, pois estava me dedicando ao meu primeiro romance, que até então se chamava Sangue Impiedoso.
Preciso contar um pouco sobre meu primeiro romance, pois esse pedaço de arte teve grande impacto em mim como artista e como homem. Sou formado em cinema e vídeo, e durante o curso eu acabei escrevendo três filmes de faroeste, bem nos moldes americanos mesmo. Até nos nomes: Jefferson Cooper, One Shot Billy e assim vai. Era uma história densa, que eu acreditava ter muito potencial. Em 2012, eu conheci a minha atual namorada, que me incentivou a colocar aquele roteiro em forma de prosa. Escrevi a primeira versão e entreguei para ela. Logo nas primeiras páginas ela me fala “estou cansada de ler autores brasileiros escrevendo sobre outras culturas”. BOOOM. Meu mundo caiu. E caiu porque havia muita verdade naquela opinião. Por que escrever sobre cowboys se eu tinha jagunços? Por que a Batalha do Álamo e não a Guerra de Canudos? Pronto. Minha vida como homem/artista mudou. Sangue Impiedoso virou o Sangue é Agreste e acabou vencendo o Prêmio Jovem Autor Inédito pelo selo João Ubaldo Ribeiro.
Minha mentalidade mudou. O fogo que queimava dentro de mim começou a arder com as cores de nossa bandeira. Parece piegas, mas é isso mesmo. Patriotismo na veia. Então, com o sucesso crítico de Sangue é Agreste, decidi investir em algo mais comercial, algo que tivesse um apelo maior e que pudesse me ajudar nessa jornada de me tornar um autor profissional, aquele que pode viver puramente da arte (algo muito difícil no Brasil, pode acreditar). Foi assim que eu voltei para aquela ideia original, que citei no primeiro parágrafo. Eu ia fazer uma fantasia, com todos os toques de J.R.R. Tolkien, Game of Thrones, Harry Potter, Star Wars e tudo que eu tinha de influência, mas eu ia dar o tempero nacional nele. Foi assim que nasceu Araruama, uma mistura de Senhor dos Anéis com Cem Anos de Solidão (não ouso me comparar aos gênios que escreveram esses livros, mas a ideia era misturar o que eu adorava de ambas as obras).
MN: Como é escrever uma aventura de fantasia fugindo do clichê da capa e espada?
R: Não sei se eu fujo dos clichês. Eu não faço o óbvio, mas não fujo do clichê. Por exemplo, eu sou um discípulo do Joseph Campbell e do seu livro O Herói de Mil Faces, que acabou gerando a teoria do Monomito, ou a Jornada do Herói. E quem analisar Araruama vai encontrar com certa facilidade os passos estabelecidos pelo acadêmico americano. A questão é como você vai apresentar isso para o seu público. Matrix e Star Wars são, em sua essência, a MESMA HISTÓRIA. MESMINHA. No entanto, são obras completamente distintas, que mostram os mesmos passos de forma diferente.
MN: Vi que o livro abrange as culturas pré-cabralinas de toda a América do Sul. Como se deu o processo de estruturação da mitologia de Araruama?
Eu queria criar um universo que não fosse muito vasto, já que o nível de complexidade seria exponencialmente proporcional ao seu tamanho (gosto de livros curtos, rápidos de ler). Foram sete tribos, cada uma inspirada em uma cultura pré-cabralina ou mesoamericana. Itaperuna é inspirada nos astecas, Ivituruí é uma homenagem aos incas, Otinga tem muito dos tupinambás e assim por diante. Não deixei de homenagear algumas tribos americanas também, sendo a tribo de Buiagu um claro tributo ao povo Anasazi, com suas cidades cavadas nas pedras. A pesquisa foi diversa, desde achados na internet (sim, uma fonte maravilhosa de informação) e em revistas periódicas, à livros mais densos e acadêmicos, como os trabalhos de Claude Lévi-Strauss e Joseph Campbell. Outras fontes e dicas de leituras são: América Mítica, de Rosana Rios, Mitologia Indígena, de Luiz Galdino, a Coleção Mundo Indígena, da Editora Hedra, o livro As Melhores Histórias das Mitologias Asteca, Maia e Inca, de A. S. Franchini, Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada por um índio, de Kaka Werá Jecupé, além da saga Astecas do escritor Gary Jennings.
Mas a grande verdade é que eu não me considero um expert no assunto. Longe disso. E é exatamente por não ser um exímio conhecedor do passado, ou do presente, que fiz questão de criar um mundo inteiramente fantástico, um mundo fictício inteiramente meu – lembrando do fato de que estamos falando de alguns povos que ainda existem, ainda respiram e cantam. Acho importante deixar claro: Araruama sempre foi uma obra de enaltecimento, de homenagem, NUNCA uma obra de representação.
MN: Quanto tempo você investiu no desenvolvimento do projeto?
R: Tempo é algo que eu aprendi a respeitar, não é à toa que a Deusa primordial de Araruama é Monâ, a mãe do tempo e de todas as coisas. Me lembro que quando comecei a trabalhar em Araruama, estava acontecendo a chamada do Selo Fantasy, promovido pela Editora Leya. Me lembro de querer muito participar e até pensei em adiantar a escrita, correr para entrar e participar. Mas esse foi um impulso que morreu em alguns segundos. Eu sabia que tinha algo especial na cabeça e eu tinha que respeitar a ideia, e o tempo que ela necessitava para nascer. Creio que demorei uns três meses criando o universo e suas regras, estipulando a cadeia narrativa e personagens. Foram mais uns três meses escrevendo. Depois de escrever, foram mais alguns meses de trabalho com Paulo Torinno e suas ilustrações.
Com o livro “pronto”, eu tentei fechar com uma agência literária. Chegamos a trocar alguns e-mails e por um tempo pareceu que íamos fechar um acordo, mas o público alvo de Araruama acabou sendo o “deal-breaker”.
Então eu parei e analisei a realidade. Eu era um autor iniciante/desconhecido com uma fantasia inspirada em povos nativos, não teria editora grande que fosse apostar em mim. Eu teria que empreender meu livro sozinho. Escuto muito o Nerdcast, do Jovem Nerd, e após escutar o programa 379 (Literatura Fantástica Brasileira), eu me inspirei a fazer o projeto nascer.
A primeira coisa que eu percebi foi que eu teria que ter grana no bolso. Elaborei uma meta de economia salarial e fui juntando dinheiro por 2 anos. Nesse tempo, meu primo havia lançado um CD através do Kickstarter (ele vive nos EUA) e eu pensei “tá aí uma plataforma boa”. Nesses dois anos de espera, fui criando as recompensas, agregando mais artistas ao projeto e, com o tempo, as peças foram caindo em seus devidos lugares.
MN: Como se sente com o sucesso estrondoso da campanha de Financiamento Coletivo?
R: Ver seu planejamento acontecer exatamente do jeito que você tinha antecipado é uma das melhores coisas que a vida artística pode oferecer. Tem vídeo meu na internet dizendo, logo no começo da campanha, que minha meta pessoal era os 100% no primeiro mês. Errei por dois dias. Agora, o que me enche de felicidade e o que me dá mais gás ainda para trabalhar é saber que há um público sim para narrativas que fogem do óbvio. Nada contra dragões e elfos, tenho a tatuagem da escritura do anel em meu braço, mas há espaço e mercado para coisas diferentes. Sou um leigo no mundo editorial, não quero afirmar algo que não conheço, mas parece haver um cabresto que impede as grandes editoras de apoiar e ganhar grana com projetos menores. Vi isso quando tentei fechar meios de divulgação para Araruama na internet, principalmente no YouTube. Conversei com uma grande agência, buscando um canal com um bom alcance, e o preço que eles me deram era tão fora da realidade que ficou óbvio para mim que eles procuram apenas divulgação de marcas como Coca-Cola, Dell etc. Na caça por tubarões, eles deixaram de ganhar dinheiro porque não souberam negociar com peixe pequeno. Enfim, essa é uma opinião pessoal, tirada de minha vivência.
MN: Você se inspira em outros autores da literatura brasileira contemporânea? Há alguma indicação que gostaria de deixar para quem quiser ler algo parecido com Araruama?
R: Sim. Adoro descobrir/ler autores nacionais. A hashtag #todosjuntossomosfortes, que usei e uso na divulgação de Araruama, também define minha visão com os meus contemporâneos. Tenho a Jana P. Bianchi, o Vilson Gonçalves e o Davi Boaventura como amigos próximos, sendo o Davi um dos responsáveis pela minha vida como escritor. Tem também o Hugo Canuto, que escreve quadrinhos, isso sem falar nos grandes Antônio Xerxenesky, Samir Machado de Machado, Enéias Tavares e Daniel Galera, que são autores maravilhosos, verdadeiros tesouros nacionais.
Como já deu pra perceber, o financiamento está sendo um sucesso e eu recomendo que você antecipe e garanta sua cópia até o fim do mês. Não perca tempo e aproveite do Catarse aqui. Para encerrar este post maravilhoso deixo uma citação de Campbell (cuja a admiração por tal autor é compartilhada por mim e Ian):
“Dizem que o que todos procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior de nosso ser e de nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos. É disso que se trata, afinal, e é o que essas pistas [os mitos] nos ajudam a procurar dentro de nós mesmos”.
Retirado do livro “O Poder do Mito” de 1986.