Em maio deste ano, a UFAM foi palco da primeiríssima edição do sarau Essa é minha arte, que reuniu o trabalho de uma leva sempre crescente de artistas independentes (a maioria estudantes da própria universidade) e agitou o Centro de Convenções durante uma tarde inteira. Uma das atrações do evento foi justamente o concurso literário, que dividido nas categorias Conto, Crônica e Poema, premiou autores emergentes com uma publicação exclusiva aqui no Mapingua!
Confira abaixo o texto da escritora Vanessa Santos, vencedor da categoria Crônica:
Negra, eu?
Era criança. Uma criança cheia de ideais. Uma criança que acreditava que todas as pessoas eram iguais. Uma criança que acreditava que o bem venceria o mal, no final. Eu era uma criança que não queria ser negra, muito menos ter um cabelo crespo. Disseram-me que posso mudar. Inventaram algo para tirar esse cabelo de mim. As meninas de cabelo liso são tão lindas! Eu só quero ser bonita. Eu só quero ser notada. Eu só quero ser amada. Alguém pode tirar esse cabelo horrível de mim? Eu posso ser bonita? Mãe, paga meu alisamento por favor. Alisei. Nunca me senti tão bonita. Todo mundo falava: -estás tão linda. Meses se passaram. Tem algo crescendo em mim. De novo não…, mas eu pensei que nunca mais ia ter isso. Vanessa, tua raiz tá aparecendo. Esconde isso. Alisa de novo. Esconde isso. E eu escondi. E escondi mais de uma vez. Fui escondendo tanto a tal ponto de não me achar no espelho e de não me achar bela sem esconder aquele algo que crescia na minha cabeça.
Negra, eu? Eu sou morena. Eu dizia, sem saber que mais uma vez isso me escondia de mim. A cada vez que eu alisava meu cabelo, eu me escondia de mim. Meu cabelo é uma parte do meu corpo e, por conseguinte, é uma parte de mim. Quem disse que eu queria ser negra? Quem disse que eu queria ter o cabelo assim?
Eu me questionei várias vezes isso e comecei a me aceitar. Aceitei meu corpo, meu cabelo, minha cor. Meu cabelo é crespo, e daí? É quem eu sou. Eu não quero me mudar de mim. Meu cabelo foi florescendo dia após dia. Mostrei-me para o mundo. Eu sou Vanessa. Eu sou negra. Esse é meu cabelo. Tá, e daí?
Todo esse não querer ser eu sempre me consumiu. Minha mãe sempre disse para eu estudar muito para que eu não seja julgada por conta da minha cor. Ela tinha medo de que eu sofresse por ser quem eu sou: negra, não morena nem cor de jambo. Eu sou negra. E daí? Ninguém se importa se você é negro, branco, hétero, gay. Todos são iguais. Para de se vitimizar. É o que eles dizem. Minha mãe sempre disse para eu estudar muito para que eu não seja julgada por conta da minha cor. Eu estudei muito para ir bem longe, para “ser alguém na vida”. Passei no vestibular. Estudo agora em uma Universidade Federal. Agora que posso ajudar, eu ajudarei minha mãe com as despesas. Decidi. Vou procurar um emprego.
Consegui uma oportunidade de emprego. Fiz a prova e tirei uma nota bem alta. Agora só falta a entrevista, logo, tenho que me arrumar. Fui à entrevista. Perguntaram-me como lidar com o meu cabelo black power? No momento, eu fiquei em choque. Essa pergunta me fez lembrar da minha infância. “Você sabe que aqui nós temos regras”. Esconde isso. Tá aparecendo tua raiz, Vanessa. Esconde. Depois de tanto tempo, eu tinha que esconder meu cabelo de novo. Eu tinha que me refugiar de mim. Eu tinha que me refugiar da minha pele e de tudo que ela carregava. Mas todos não são iguais? Ninguém se importa se você é negro, branco, hétero, gay, cabelo liso, cabelo black power. Minha mãe sempre disse para eu estudar muito para que eu não seja julgada por conta da minha cor. Eu estudei tanto para, no fim, minha capacidade intelectual ser desconsiderada. Eu não passei. Pensei em vários outros motivos para não ser selecionada. Eu não queria acreditar. No entanto, estava tão nítido: foi racismo. Eu fui alvo de preconceito racial. Dói muito estudar tanto para ser considerada nada, por causa do meu cabelo que faz parte de mim e que me faz ser quem eu sou. Eu era criança. Uma criança cheia de ideais. Uma criança que acreditava que todas as pessoas eram iguais.
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