“Eu parei de contar os dias
Não meço mais as distâncias…”
Ele só lembrava desse trecho do poema. Uma pena, ele sabia que o resto era bonito. Pensava nisso enquanto caminhava por aquela paisagem nostálgica, que ele tentara esquecer. A rua estreita, com casas pequenas, onde o sol se sentia à vontade para brilhar forte, o verde das arvores imensas no horizonte, e o ruído do rio ali perto. Sentia também tristeza, lembrando que em menos de dez anos tudo aquilo já teria desaparecido, dando lugar a uma nova paisagem, uma de construções grandes e imponentes.
Sim, ele se lembrava do futuro, porque era de lá que ele vinha.
Não de um futuro de esporádicas invenções tecnológicas, com alguns robôs andando pelas ruas, aplicativos que tornavam a fala quase inútil e formas cada vez mais modernas de assistir filmes e ler livros; não, pois até mesmo este futuro já se tornara o passado de um futuro ainda mais distante, onde as próprias ideias de civilização e individualidade haviam sido transformadas em novas percepções.
Mas ele não pensava nisso enquanto andava, só estava entorpecido pela paisagem e pelos sons, enquanto seu objetivo primário permanecia firme no fundo de sua mente: Chegar à casa de número 39, portão amarelo, depois do parque.
As poucas pessoas que transitavam pela ruazinha olhavam de um jeito estranho para ele, quando passava por elas. Havia algo de esquisito, bizarro, entretanto inexplicável no sujeito de chapéu grande, vestido de forma simples: sandálias pretas, calça e camisa branca.
– Que homem estranho, mamãe. – Ele imaginava o garotinho moreno falando para a mãe, ao vê-lo atravessando a rua. Ele fizera o melhor que podia para se vestir à maneira da época, porém, um visitante do futuro nunca pareceria realmente adequado ao presente. Ele lembrou dos filmes que já vira retratando o período medieval, e pensou que um habitante da Idade Média estranharia ver as roupas de sua época vestidas e feitas por alguém do futuro.
Curioso, na distante Idade Média um homem poderia passar sua vida toda sem se deparar com nenhuma grande mudança, assim como seus filhos e netos. Ele, entretanto, já se deparara com tantas mudanças que o próprio conceito da palavra se tornara obsoleto. Para ele e os habitantes do futuro distante, principalmente em relação às crianças que nele nasciam, a vida era um fluxo imparável, cada dia, uma nova forma de experimentar a realidade.
Chegar à casa nº 39, portão amarelo, depois do parque. O parque já estava à vista.
A viagem no tempo ainda era um passatempo caro, extremamente caro, ou seja, nada que ele não pudesse pagar. Haviam regras, muitas regras, mas visitar um momento da infância não era um pedido fora do comum, principalmente entre os habitantes do futuro de idade mais avançada. Para os ricos, uma visita realista dentro da própria memória era o suficiente, para os que eram como ele, uma viagem pelo próprio tempo era o único método satisfatório.
Por que aquele momento? Aquele período? Os outros não precisavam saber. Nem queriam, na verdade. Depois do parque, portão amarelo, casa 39. Ele passava pelo parque.
Ele pensava agora em como o tempo pode mudar as coisas, as estruturas do que se entende sobre sociedade, transformar as fronteiras de países e ainda assim, não ter poder o suficiente para alterar certos aspectos da natureza humana. Os sentimentos que ainda fazem Shakespeare e as tragédias gregas serem lidas no futuro distante. Talvez um dia surja um antídoto para o arrependimento e o remorso, se surgir, ele ficou feliz por estar vivo antes desse momento. Assim fará o que deve fazer.
Depois de passar pelo parque, ele contemplou, parado, a fileira de casas da rua em que entrara. Casas pequenas, simpáticas, que quase não viam seus habitantes, sempre ocupados. Uma das casas era a 39, de portão amarelo. E ele a avistara agora.
Ele lembrava da casa, claro, fora a casa de sua infância. Ele se lembrava claramente daquele dia que revisitava, pois fora o primeiro em que sua mãe brigara seriamente com ele, de uma maneira tão intensa que a ele parecia assustadora até hoje. Tudo porque ele, ainda criança, esquecera de trancar o portão por dentro quando sua mãe saíra, e passara o dia em casa à mercê de ´´alguma ameaça“, como sua mãe dissera mais tarde, com raiva e medo estampados nos olhos.
Sua mãe estava certa, ele devia ter trancado o portão, porque alguém com um propósito obscuro realmente se aproximava da casa, e era ele mesmo; envelhecido por dentro com o passar das décadas, rejuvenescido com os inúmeros métodos medicinais do futuro, mas ainda assim ele. Somente ele.
Foi fácil abrir o portão, ainda mais fácil foi abrir a porta. A sala era exatamente igual à de sua memória, com o sofá velho no canto da porta, um prato deixado na mesa e a televisão ligada em um volume baixo. A sala estava vazia, pois a criança estava no quarto, brincando com os animais de madeira que ganhara de aniversário.
Ele foi até o quarto, abriu a porta. Sim, exatamente como na lembrança em primeira pessoa, ele se viu lá, brincando com os animais de madeira. A criança deu um olhar para cima, e seus olhos inocentes não teriam como saber todas as coisas horríveis que veria no futuro, que as mãos que brincavam com os animais de madeira fariam coisas terríveis, e que o remorso e o arrependimento surgiriam muito, muito tarde. Mas não tarde demais, pois o futuro distante abolira esta ideia.
A criança não teve tempo de se perguntar quem era aquele homem, pois ele, o homem, tinha um propósito firme, e para alguém que já fizera tantas coisas ruins, dar um fim a si mesmo era só mais uma tarefa. Ele sabia que coisas ruins ainda aconteceriam nas décadas que viriam, mas não seria um dos responsáveis. Não mais.
Será que seu ato criaria, no futuro, um precedente para regularizar viagens no tempo? Não importava, porque agora, de repente, ele não pertencia mais ao futuro.
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