Era sexta feira, dezembro, e tudo o que queria era sair dali. Em pleno horário de almoço, mal conseguia manter os olhos abertos. A colher pesava mais que o normal. Estava com problemas de sono, digo, falta de sono. Não conseguia dormir direito há um mês inteiro. Talvez fosse toda a tensão de fim de ano. Sempre dedicou-se ao trabalho, ainda mais neste ano conturbado quando tudo ficou mais caro e sua mulher adoeceu. O stress devorava sua sanidade diariamente. Algumas pessoas lhe tiravam do sério bem mais do que gostaria. Parecia que algumas pessoas só sabiam fazer isto. Queria ver alguns colegas de trabalho mortos ou, apenas, não vê-los, porém não podia fazer nada. Seus amigos, sua filha e sua esposa eram quem lhe davam forças para manter-se na linha. Era melhor assim. Já havia pensado várias vezes no quão perigoso seria para o mundo se portasse uma arma. Não o faria e, mesmo assim, não deixava de gostar delas. Tinha uma paixão especial por seu sabre de luz e, lá no fundo, acreditava que, de alguma forma, conseguiria, um dia, dominar a galáxia.
— Está chovendo! — a frase trouxe-a de volta à realidade e horas já haviam se passado. Era quase fim de expediente e ela mal se dava conta que fez tudo no piloto automático.
— Já que não neva aqui, uma chuva é sempre bem vinda — queria tomar banho de chuva, porém também não podia fazer aquilo. Tinha que esperar o Siena preto de sua mãe chegar até onde ela trabalhava. Não iria ensopar o carro. Não sabia dirigir e também não iria toda molhada de ônibus. Ela preferia o calor, o frio lhe fazia mal. Entretanto, ainda assim queria tomar banho de chuva.
— Tem razão, Ju. Estou indo… Boas festas.
— Até.
Era sociável, apesar de tudo, no entanto não havia interesse algum de partilhar do espírito natalino com quem mal falava com ela. Queria mesmo era estar em casa, jogada, vendo TV ou tendo diálogos de um casamento feliz com sua amada. Queria comer algo. Queria tomar banho de chuva, mas não podia… não era mais criança. Mesmo não sendo mais criança, lá estava ela… Esperando sua mãe lhe buscar.
Não demorou muito para que sua carona chegasse. Cumprimentou sua mãe, falaram um pouco sobre como havia sido o dia de cada uma e então uma leve pontada tornava-se uma dor aguda em sua cabeça. Precisava dormir. Fechou os olhos e um torpor tomou, rapidamente, conta de seu corpo. Dormiu.
Quando acordou mal podia acreditar na situação em que se encontrava. Seu mundo estava de cabeça para baixo. Literalmente. Seu corpo doía. Seus ouvidos faziam um zumbido estranho, mas não havia nenhum outro som além disso. Demorou algum tempo para soltar-se do sinto de segurança e sair do carro capotado, que por sinal, estava vazio. Tudo ao seu redor parecia vazio. Os carros, as casas, ela mesma.
Estava na rua de casa e não fazia ideia de como tudo havia acontecido, mas seguiu o rastro de sangue que dava até a porta de casa. Puxou as chaves e abriu a porta. O rastro a guiava até a cozinha.
— Como foi seu dia?
— Foi…
— Horrível — ela conhecia aquela voz… Era familiar… Familiar demais, já que se tratava da sua própria voz.
Correu até lá e se viu agredindo a própria esposa. Era perturbador. Uma cena que ela não gostaria de ver. Uma cena que ela não merecia ver. Um pesadelo. Pegou a faca na mesa e apunhalou o seu clone pelas costas.
Fincar.
Puxar.
Fincar.
Puxar.
Fincar.
O sangue espirrava em seu rosto.
Claudia a encarava, pasma.
— Está tudo bem agora… Eu salvei você!
— Quem é você? Você matou minha esposa! — Não conseguia entender aquela reação… Ela não a reconhecia? O que estava acontecendo.
— Eu vou matar você! Sua degenerada! Invadiu minha casa, matou a minha mulher!
— Mas Clau…
— Cala a boca! — A mulher gritava desesperada… Sua face já se transfigurava em outra coisa que não era a pessoa com quem ela havia se casado… E foi aí que ela percebeu que tudo estava errado.
— Me perdoe, mas eu tenho que fazer isso…
Mais sangue, mais uma vez. Cheiro de morte por todo o cômodo. Desespero correndo em cada uma de suas veias e artérias. Vou poupar-lhe desta cena, pois é horrenda demais até para mim. Então, vamos direto ao ponto em que ela encontrava-se ajoelhada ao chão, suja de sangue, chorando sobre os corpos frios…
Uma mão, tão escura quanto as trevas que lutavam para invadir seu coração, tocou-lhe o ombro. Um calafrio se espalhou por ela como se uma serpente de gelo deslizasse por debaixo de sua roupa. O medo pareceu outra serpente que lhe enforcaria envolvendo seu pescoço, porém todo o horror se dissipou quando a entidade lhe dirigiu a palavra.
— Criança, acalme-se… é tudo um grande pesadelo… você já vai acordar… — A figura atrás dela tinha quase dois metros de altura, coberta por um manto carmesim, um vermelho bem mais bonito que o sangue espalhado pela sala, a mão que tocava seu ombro tinha um aspecto incomum: apresentava pequenos pontos luminosos em meio a vastidão do breu tal como estrelas na noite.
— E quem é você? O Papai Noel, por acaso?
— Há quem diga que sim, mas eu não gostaria de ser chamado assim por você, Juçara, apesar de eu ter vindo lhe trazer um presente.
— Isso tudo já tá bem estranho pra mim…
— Pegue logo antes que eu me arrependa — entregou-a um cilindro metálico que ela conhecia muito bem.
— Mas isso é um…
— Sabre de luz?
— É. Eu já tenho um…
— Não como esse, criança. Esse é de verdade.
— Então, não posso aceitar. É uma arma. Não posso portar uma arma. Isso é perigoso para outras pessoas.
— Você não irá usar contra pessoas.
— Olha, em outra ocasião eu diria que é impossível, mas depois dessa bagunça eu não sei o que dizer.
— Você poderia agradecer…
— Muito obrigada… e… Qual teu nome?
— Morfeu.
— Como em Matrix? Então… é tudo mentira?
— Não — risos — É como me chamavam na Grécia… E eu gosto desse nome.
— Então também não é seu nome?
— Eu tenho vários nomes.
— Entendi.
— Então você veio pra dizer que isso foi só um sonho ruim?
— Um pesadelo, atualmente os pesadelos estão vazando para o lado de vocês… por isso você e algumas pessoas estão com problemas pra dormir…
— Mas isso não aconteceu de verdade, certo?
— Certo, mas poderia ter acontecido.
— E por esse motivo me deu isso?
— Sim. Vai precisar se defender daqui pra frente.
— Mas você sabe que eu não posso ter armas… É perigoso pras pessoas…
— Isso só vai funcionar contra coisas do lado de cá.. Mesmo que eles passem pro lado daí….
— Tá bom… Acho que assim eu posso aceitar… Se bem que eu nunca recusaria um sabre mesmo…
— Juçara.
— Juçara?
— Juçara!
— Claudinha! — A voz ao longe tornou-se audível à medida que a visão daquele lugar se dissipou dando espaço para a imagem de sua amada.
— Eu dormi?
— Sim, filha — sua mãe, sentada no banco do motorista, com o carro estacionado em frente de casa, esperava sua nora ajudar a filha sair do carro.
— E esse presente que você está abraçando aí?
— Um amigo me deu.
— Sei…
— Deixa de ciúmes…
— Então me conta quem te deu…
— Lá dentro eu te conto.
Não sabia por onde começar, não sabia bem se iria contar tudo. Naquela hora ela só queria ter uma boa noite de sono ao lado da pessoa que ela amava. Então, lembrou que ainda era cedo e que não era um dia comum. Decidiu tomar um café acompanhado dos biscoitos dignos da festividade. Antes de entrar em casa, e procurar uma forma adequada de responder às perguntas de sua esposa, olhou para o céu à espera de um trenó ou algo assim, mas não aconteceu. Teve medo dos próximos pesadelos que teria que enfrentar… Sabia que mais coisas lhe aguardavam. Por fim, entrou em casa, tirou os sapatos e agradeceu mentalmente ao seu novo amigo pelo presente de natal.