Em uma rara ocasião na qual conseguiu sentar no ônibus para fazer o seu trajeto para casa, Paulo olhava o céu acinzentado no final da tarde. Imaginava, entre outras coisas, se algum dia iria estar voando pelo céu. Nos seus fones de ouvido brancos e baratos tocava uma melodia inspiradora que o fazia observar as altas árvores pelo caminho, tão grandes que cobriam até mesmo o vasto céu.
Dias cinzas em uma cidade como esta não eram comuns. Era inevitável que em um dia como este, em que o sol resolvia se esconder, Paulo não permanecesse pensativo sobre suas conquistas e obrigações futuras. Paulo não parava de pensar sobre um slide que deveria fazer para a aula de um professor de engenharia muito exigente. Entre as promessas de Paulo, estava a promessa de no mínimo preparar um slide que o professor pudesse achar pelo menos bom, não ótimo, apenas bom.
Os sonhos de Paulo não voavam tão alto, o jovem tinha os dois pés fixados no chão. Se alguém o contasse, o rapaz jamais acreditaria que 25 anos após esse dia Paulo estaria voando pelo céu. Não só iria realizar seu sonho de voar em um avião, mas também realizaria o inimaginável sonho de voar em uma nave percorrendo o espaço.
***
– A vida é boa por aqui, Natália. Mas agora chegou a hora de uma aventura sem volta. – Natália era a única companhia de Paulo em sua nave. A máquina com inteligência artificial era a segunda em sua linha de criação e foi programada para atender as necessidades do Astronauta. O próprio Paulo escolheu o nome da máquina, pois era o nome de uma velha amiga que há muito tempo o rapaz não via.
Paulo olhava pelas janelas de sua nave e não via nada além do breu. Um único ponto solitário no meio da escuridão parecia ser o planeta terra, pelo menos era o que Paulo imaginava. Ao andar pela nave, resolveu pegar uma espécie de microfone e fazer sua última gravação em destino à terra.
– Controle de solo, aqui quem fala é Paulo Monteiro, mas podem me chamar de Major Tom. Como anda o clima aí em baixo? Aqui em cima até que é legal. Essa é a minha última transmissão para esse planetinha Terra que acredito que estou vendo aqui do espaço. Perdoem o som de mil computadores ao fundo, mas é que o dia está agitado aqui em cima. Não fiquem irritados, logo mais não vão ser mais perturbados por mim. Bem, essa transmissão é minha última pois estou partindo para uma nova aventura que não tem mais volta. Não se preocupem, escolhi sabiamente meus próximos passos e só queria dizer que cumpri tudo aquilo que haviam me proposto. Em breve, os mil computadores vão enviar os dados para vocês. Até uma outra vida, controle de solo.
Paulo encerrou sua transmissão e olhou para Natália, que agora estava desligada. A máquina jamais o deixaria sair da nave para dar um último pulo para o espaço. A verdade é que Paulo estava cansado de ver apenas o breu e agora sentia que sua vida estava completa. Fosse no espaço ou no planeta Terra, agora Paulo havia cumprido sua missão.
A atitude de Paulo poderia ser um tanto quanto egoísta, pois na Terra deixou uma filha que agora já tinha 8 anos de idade. O rapaz se separou de sua mulher no terceiro ano de casamento, havia alguma coisa muito estranha sobre seus relacionamentos chegando ao terceiro ano, pois os mais duradouros sempre acabavam nesse período.
Ao caminhar pela plataforma principal ao som de mil computadores, o rapaz pegou seu capacete branco com visor cromado que tanto insistiu para ter, o colocou e se assegurou de que havia o travado da forma correta. Conferiu o nível de seu último tanque de oxigênio e caminhou em direção a porta de saída da nave.
Seus passos não hesitavam. Paulo estava ciente de seu destino e de como sua vida estava caminhando para um final. No peito não existia um sentimento triste, mas sim felicidade e confiança de que lá fora uma certa paz o esperava. Cada passo a mais era um passo a menos para o início de sua última jornada.
Paulo abriu a válvula principal e saiu para a área de acesso que marcava o final da nave. Trancou a válvula por onde entrou e apertou alguns botões que liberavam a porta principal. Respirou fundo, mesmo sabendo que isso só iria ajudar a consumir o pouco do oxigênio que o restava. Com um pouco de força, Paulo abriu a porta principal e deu um último salto em direção ao espaço.
Sem estar preso a nenhuma corda que o segurasse a nave, Paulo agora era pura matéria voando pelo espaço. Não se sentia nervoso, não se sentia solitário. Ainda que fosse a única pessoa viva naquela imensidão, Paulo se sentia acompanhado de todos os seus amigos e amores que deixou na terra. O rapaz olhava para a vasta imensidão com olhos de criança, a cada momento se surpreendia ainda mais com o tamanho de tudo aquilo. Ao longe, as estrelas brilhavam enquanto sua nave ia ficando para trás.
O astronauta conferiu seu tanque de oxigênio, que ainda estava pela metade, e fechou os olhos. Vagando solitário pelo espaço, começou a ter alucinações com memórias antigas. De repente, Paulo estava vestido de astronauta em um ônibus e viu sua versão mais jovem, que usava fones de ouvido brancos e baratos, olhando para um céu cinza.
Ao olhar para o lado, agora Paulo se via ainda vestido de astronauta ao lado de sua ex mulher dando luz a sua única filha, Laura. Um pouco depois, o astronauta se viu carregando no colo sua filha de dois anos, que se encantava ao ver a gigante roupa branca do rapaz. Laura olhava seu reflexo no grande e cromado capacete e não via mais o rosto do pai que agora flutuava sozinho no espaço, vivendo apenas de ilusões que imitavam memórias de vidas que ele nunca viveu.
Na sua próxima ilusão, agora o astronauta transitava por diversos momentos de sua vida, andava pelo passado e por um passado bem mais distante. Em sua roupa de astronauta, corria pela mesma rua na qual em sua infância brincava de futebol. Ao virar a esquina, Paulo observava Laura dando seus primeiros passos. Quando olhou para trás foi levado diretamente para o velório de seu falecido pai, que morreu quando o astronauta era adolescente. O jovem chorava de saudades e fugia do velório, correndo em direção à porta.
Em um breve vislumbre de consciência, Paulo abriu os olhos, viu que seu tanque de oxigênio estava quase no fim e forçou um sorriso. Observando todo o espaço a sua volta, o rapaz constatou que não conseguia mais ver sua nave espacial.
Ao perder a consciência mais uma vez, Paulo agora se via de volta em sua nave, onde tentava impedir o seu outro eu de sair em busca de sua última aventura. Os dois astronautas brigaram ao som de mil computadores. A tentativa de Paulo de impedir seu outro eu de sair da nave foi em vão e teve de se ver saltando para sua última aventura.
Quando abriu os olhos, Paulo viu que seu oxigênio havia chegado ao fim e em sua frente surgiu um vórtex multicolorido que o sugava. O vórtex tocava melodias da adolescência de Paulo, além disso, o rapaz ouvia vozes e faces amigas que o consolavam.
Seus olhos ficaram vermelhos e sua boca agora estava aberta. Sem ar para respirar, Paulo começou a perder a consciência pela última vez.
Paulo da Silva Monteiro foi o primeiro amazonense a morrer no espaço.
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