A era dos heróis no cinema está no seu ápice e atualmente é possível ver grandes referências dos quadrinhos nas telonas, mas não é de hoje que o cinema busca adaptar grandes obras da nona arte. Casos já conhecidos como Liga Extraordinária, V de Vingança, Do Inferno, Constantine e Watchmen são bons exemplos disso. O que muitas pessoas não sabem é que, assim como o filtro de que apenas filmes de Hollywood são bons, no meio dos quadrinhos existe a ideia de que apenas quadrinhos de heróis são bons.

Will Eisner, no passado, já previa o que anda acontecendo nos últimos tempos, o roteirista que teve o nome dado ao mais respeitado prêmio destinado a roteiristas e desenhistas de quadrinhos já dizia que não gostava da ideia de heróis popularizando a nona arte, Eisner dizia que quadrinhos não eram apenas para crianças e que personagens coloridos e fantasiados faziam seu trabalho parecer piada.

Os filmes Italianos e independentes assinam no rosto da academia que não são apenas obras “Hollywoodianas” dotadas de decência e magia, da mesma maneira que formatos Europeus e independentes de HQs colocam no chinelo muitas histórias de Batman ou Homem Aranha. Hoje você será levado a alguns desses títulos e passará a ter uma ideia diferente sobre essa forma de leitura que mistura roteiros e desenhos em um só formato.

Trilogia Nikopol

A Trilogia Nikopol, do francês Enki, é considerada uma das grandes obras dos quadrinhos europeus de ficção científica e temática Cyberpunk.  Ele segue no romance gráfico as desventuras de Alcide Nikopol em um futuro caótico e distópico, em meados do século XXI, onde, sobre uma Paris governada por personalidades ditatoriais, uma grande nave espacial em formato de Pirâmide plana e flutua sobre a cidade enviando seres mitológicos. Como é possível notar no titulo, a saga segue a linha de três álbuns, todos com o roteiro e os espetaculares desenhos do francês. A trilogia atualmente pode ser encontrada reunida em um só volume e possui também uma adaptação nos cinemas intitulada como Immortel.

O Mundo de Edena

Protagonizado pela dupla Atan e Stel, O Mundo de Edena é uma odisséia espacial transcendental escrita e desenhada pelo francês Jean Giroud (Moebius). Na trama, dois mecânicos espaciais são atraídos para uma estrela viva e encarregados de transportar todos os seres pensantes da galáxia. Moebius é dono de uma grande autonomia e autoridade no universo dos quadrinhos, seu nome tem um forte peso em relação a roteiros interpretativos e o traço em seus desenhos é considerado o melhor dos últimos tempos. O ponto curioso a respeito dessa saga é que ela surgiu na década de 80. Moebius, na época, era responsável pelos desenhos dos brindes de fim de ano da empresa Citroën (é completamente comum encontrar personagens dos brindes entre as páginas do Mundo de Edena). A saga transmite uma bela mensagem de solidariedade e companheirismo na relação entre Atan e Stel em suas aventuras pelas galáxias.

O Gosto do Cloro

Um rapaz enfrenta graves problemas na coluna e um dos meios de tratamento é voltar a nadar, até então ele não imaginava que voltar a nadar não levaria apenas soluções para seu problema na coluna. Bastien Vivès revela em seus quadros, de maneira sensível, a vida de um garoto que, na tentativa de resolver um problema de saúde, acaba despertando interesse em uma das frequentadoras do lugar. Ele é um rapaz sedentário em busca de alívio na coluna estropiada; ela é uma ex-competidora que agora só nada por prazer. O mais curioso é que além de toda a HQ se passar em idas a um clube, o formato visual adotado pelo francês é muito bonito. O quadrinho foi vencedor do prêmio francês revelação Angoulême, o mais respeitado prêmio Europeu. O Gosto do Cloro é uma daquelas obras que, com certeza, logo estará nas telonas, então é sempre excepcional conferir de onde um bom filme francês foi adaptado.

Maus

Maus (“rato” em alemão) poderia ser apenas mais uma de muitas obras que retratam o drama de pessoas que sobreviveram aos campos de concentração de Auschwitz, no entanto o diferencial dessa obra é o formato escolhido pelo autor. Art Spiegelman escolheu o formato de quadrinhos para registrar as memórias do pai, Vladeck Spiegelman, um judeu-polonês que sobreviveu ao holocausto.

A escolha de Art rendeu a Maus o prêmio Pultizer, a HQ foi a primeira da história a receber o mais respeitado prêmio jornalístico. O clássico teve sua primeira parte publicada em 1986, quadrinho em que Art descreve os Judeus como ratos, os Alemães como gatos, os Poloneses como porcos e os Americanos como cães. A segunda parte dessa metáfora carregada de metalinguagem foi publicada em 1991 e, ao mesmo tempo em que flashbacks da memória de Vladeck retratam com detalhes seus dias em Auschwitz, o quadrinho também retrata a difícil relação que Art possuía com o pai.

Pílulas Azuis

A autobiografia em formato de quadrinho conta, com sensibilidade e maestria, a história de Frederick Peeters, um jovem quadrinista que, na tentativa de buscar sentido na vida, acabou conhecendo a emblemática Cati. Conversas tranquilas e francas cercam o casal, o que leva Fred a descobrir algo que o coloca a beira de um abismo. Cati é soropositiva, e o pior, a portadora do HIV tem um filho que também possui o vírus. O quadrinho é cercado de diálogos intelectuais, mas não complexos o suficiente para o claro entendimento, e os desenhos em preto e branco casam bem com os temas abordados e o ar bibliográfico. Frederick Peeters assume o comando do roteiro e arte contando de maneira poética e recíproca a sua história de amor com uma mulher contaminada com o vírus da Aids.

Persépolis

Persépolis é uma HQ autobiográfica que discorre sobre a vida de uma garota iraniana e todos os percalços em meio a um ambiente opressor e formado por ideologias conservadoras. Desse modo, temos um belo relato de vida permeado por um contexto histórico riquíssimo e repleto de reflexões. O ano é 1979, revolução Xiita, Marjane tem apenas 10 anos quando de repente se vê obrigada a usar véu e se separar dos amigos de classe por serem do sexo oposto, se para uma pessoa adulta politizada e acostumada com uma sociedade moderna já é difícil enfrentar uma repentina mudança de regime político, tente imaginar a situação para uma criança de 10 anos. Em Persépolis, Marjane Satrepi retrata como foi sua infância e adolescência frente a uma República Islâmica extremamente conservadora. Em seu ano de lançamento, somente na França foram vendidos mais de 400 mil exemplares do quadrinho. A HQ ganhou uma adaptação que foi premiada em Cannes e em 2008 foi indicada ao Oscar de melhor animação.

O Soldador Subaquático

O Soldador Subaquático conta a história de Jack, um jovem profissional responsável pela manutenção de uma plataforma petrolífera no litoral do Canadá e à espera do nascimento de seu primeiro filho. Chamado para realizar um serviço de alto risco, ele vive uma experiência fantástica relacionada à morte de seu pai, também soldador submarino e morto em um acidente de trabalho. Dizem que depois da profissão dos astronautas a profissão mais perigosa do mundo é a de Soldador Subaquático, nessa obra o roteirista Jeff Lemire leva os leitores para o fundo do oceano a fim de refletirem sobre dilemas e princípios da vida.  Lemire já revelou que o quadrinho tem traços biográficos e que a ideia de escrever sobre esse tema foi logo depois da descoberta de que sua esposa estava esperando seu primeiro filho.

Fracasso de Público

Fracasso de Público é uma HQ independente com roteiro e arte de Alex Robinson. Publicada originalmente em 78 capítulos, depois compilados em três tomos pela Gal Editora, em 2001 a TopShelf reuniu os volumes em um só tomo, que rendeu o total 608 páginas. A HQ é ganhadora de diversos prêmios e foi hiperbolicamente considerada pela revista Wizards americana como a melhor HQ independente já lançada até o momento. A trama da HQ gira em torno de quatro personagens completamente diferentes, mas com uma coisa em comum: todos eles estão frente a um fracasso iminente. A HQ tem clara influência no sucesso e clássico já conhecido Apanhador no Campo de Centeio. Nada pode descrever melhor a qualidade do quadrinho do que a crítica e seus prêmios alcançados, Fracasso de Público foi vencedor do prêmio Eisner e o Gran Prix de Angôuleme.


O universo dos quadrinhos está cercado de boas e surpreendentes obras que vão muito além de heróis, capas e socos, vale ressaltar que existem coisas e cenas que funcionam apenas nos quadrinhos e por isso não são bem adaptadas nos cinemas e os autores estão cada vez mais se esforçando nesse quesito. O Mapingua separou dicas importantes de quadrinhos europeus e underground, mas essa indústria apenas cresce e logo novos marcos para a cultura Pop surgirão.