Para Tamar Mesablishvili,
A Geórgia é um pequeno país localizado no limite entre Europa e Ásia, foi parte da antiga União Soviética e, até hoje, tem uma relação complicada com a Rússia, que tomou parte do território georgiano. Conheci Tamar alguns anos atrás, durante uma viagem pela França. Eu, brasileira, e ela, georgiana. Não esperava encontrar similaridades, mas acabamos ficando muito próximas.
Até conhecer Tamar, a Geórgia também não seria um dos primeiros países que eu me lembraria em qualquer situação que fosse. Na verdade, não tinha a mínima ideia sobre como era o país e quais eram seus problemas e qualidades. Imaginei algo frio com pessoas caladas. Tamar não era assim: fala muito e bem rápido, inclusive. “Nós, da Geórgia, somos parecidos com vocês do Brasil: calorosos”, ela me disse no ônibus, nos primeiros dias.
E, de novo, eu não esperava achar grandes similaridades.
Tamar faz faculdade de Matemática, o que também me fazia pensar se iríamos ter assunto. Tivemos. Na verdade, ela era uma leitora voraz e, muito embora nós tivéssemos conversado sobre livros e nossas culturas, foi depois que chegamos nos nossos respectivos países que ela conseguiu um autógrafo de Guram Dochanashvili, autor do livro სამოსელი პირველი (1975), “A Primeira Veste”, em português.
Ela, empolgada, contou pra mim e Laura, nossa amiga de Luxemburgo, sobre o tal autógrafo. Era o livro favorito dela e, aparentemente, um dos grandes clássicos da literatura georgiana, sem tradução para nenhuma outra língua. Com toda a empolgação dela, pedimos que fizesse um resumo sobre a história, que é uma grande odisseia. De repente, ela diz algo sobre uma “War of Canudos”. E eu definitivamente fiquei em choque: contei que aquilo tinha acontecido de verdade, no Brasil.
“Então, Antonio Conselheiro é real?!”
“Sim, e a Guerra de Canudos também. Como isso foi parar na Geórgia?!”
O fato é que nós realmente não fazíamos a menor ideia e ficamos horas tentando saber como os personagens tinham sido retratados em “A Primeira Veste”. Antônio Conselheiro, Prudente de Moraes, o sertão… Tudo era retratado no livro, com toques de ficção. O autor do livro, Dochanashvili, é historiador por formação e, provavelmente, foi assim, que “Os Sertões” (1902) conseguiu chegar à Geórgia.
“A Primeira Veste” mistura a história bíblica do filho pródigo, o protagonista Domenico, abordando temas políticos e filosóficos com elementos pós-modernistas. A história passa por três grandes fases: a Cidade da Beleza, onde todos são movidos por futilidades; Camora, caracterizada como cidade dos assassinos; e Canudos, um ambiente de comunhão que simboliza o amadurecimento de Domenico.
Na Cidade da Beleza, Domenico precisaria se acomodar com o estilo de vida trivial e fútil, provavelmente uma analogia com o modo de vida da classe média. Em Camora todos eram ricos e poderosos, mas para sobreviver ele deveria se tornar um assassino, uma analogia à máfia italiana ou ao crime organizado, em geral. Canudos, por sua vez, simboliza igualdade. O arraial tem um Rio de Rejuvenescimento, no qual todos se banham em seu primeiro dia, quando “iniciam uma nova vida com propósito”. Aparentemente o aspecto messiânico de Antônio Conselheiro é retratado através da simbologia do rio. As casas são retratadas como de pau-a-pique, sem portas. Tudo era compartilhado. Canudos, no livro de Dochanashvili, simboliza uma cidade livre. Como na vida real, o arraial chega a resistir mas, no fim, é dizimado pelas tropas de Prudente de Moraes.
O livro, no entanto, assume mais ares de conto de fada, sem especificar tempo e espaço dos ambientes descritos, ainda que use os nomes reais. Tamar não sabia, assim como muitos georgianos, segundo ela, das referências usadas por Guram Dochanashvili, que viraram tópicos de discussão há alguns anos na Geórgia, por parte da crítica e público. No final da história, Domenico retorna à casa do pai e, querendo contar-lhe tudo que havia vivido, percebe que o pai já sabia tudo que o filho encontraria mundo afora.
A censura feita pela Rússia sobre a Geórgia até 1991, quando ainda compunham a União Soviética, é o motivo pelo qual autores buscavam referências aparentemente tão distantes: não se poderia criticar a Rússia, caso contrário, a morte era certa. “A Primeira Veste” foi publicado em 1979: criticar os soviéticos não poderia ser feito explicitamente. Em 1979, tanto Brasil quanto a Geórgia viviam tempos ditatoriais, ainda que em extremos econômicos diferentes: de extrema direita, no Brasil, e de extrema esquerda, na Geórgia. Apesar de parecermos tão distantes, às vezes as reflexões são as mesmas.
Nas duas primeiras cidades visitadas por Domenico, a profissão de algumas pessoas é gritar a cada hora “são x horas e tudo está bem!”, mesmo que pessoas estivessem sendo roubadas ou mortas. Possivelmente, é uma simbologia sobre a imprensa na União Soviética, que era extremamente censurada: nenhuma crítica ao regime poderia ser feita. Todos os livros que conseguissem passar pela censura deveriam, por exemplo, iniciar com ode à Stalin.
Não consegui falar com Dochanashvili e perguntar sobre o porquê de ter escolhido Canudos e o Brasil em algo que simbolizaria uma liberdade que, na época de publicação, faltava a ambos os países. No fim, o passado de um foi usado para dar voz ao outro, quando nenhum dos dois poderia falar abertamente sobre si mesmo.
“A frase mais famosa do livro é ‘o amor é o que faz a Terra girar’”, disse Tamar.
A foto em destaque neste post, que mostra o Arraial de Canudos em 1897, tem autoria de Flávio de Barros/Acervo Museu da República.