Uma mulher, ainda jovem, decide tomar algumas decisões que apontarão seu futuro. Algumas decidem que querem mais, outras não sabem que merecem mais. Segundo a Jornada da Heroína, teoria formulada na década de 90, o principal diferencial de narrativas com protagonistas femininas é a quase onipresença de um período de reflexão sobre si mesma.
É importante saber quão diferentes podem ser tais reflexões. Para ilustrar a complexidade e, ao mesmo tempo, cumplicidade de narrativas feitas por e sobre mulheres, Lady Bird – A Hora de Voar (Greta Gerwig, 2017) e A Hora da Estrela (Clarice Lispector, 1977), ainda que com 40 anos entre elas, têm vários paralelos a serem traçados.
Macabéa
“Limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela”
Narrador, sobre contar a história de Macabéa
O livro de Lispector é leitura obrigatória em grande parte dos vestibulares brasileiros. Considerado uma das maiores obras da terceira geração do Modernismo, focada na introspecção, A Hora da Estrela foi, também, o último livro de Clarice. A história é contada a partir do ponto de vista de um narrador-escritor que criou sua protagonista, apesar de tentar se livrar dela: uma nordestina anônima no Rio de Janeiro.
Macabéa é órfã, foi criada por uma tia abusiva em Alagoas, seu estado natal. Sua tia lhe ensinou a datilografar e, com essa habilidade, foi para o Rio. Lá, vivia uma rotina maçante e também abusiva, ganhando menos que um salário mínimo, mas sempre subserviente àqueles à sua volta. Ela sempre se contentara com pequenas felicidades, sem nunca perceber que era infeliz. Para ela, se entristecer é um luxo ao qual não tinha direito.
A virada acontece durante uma visita a uma cartomante. “Que vida horrível a sua!”, diz a senhora quando puxa as cartas de Macabéa, que nem imaginava o quão ruim era a vida que levava. No entanto, a previsão é que a vida da moça melhorará a partir de então: vai ser recontratada e casar com um estrangeiro chamado Hans, que a amaria muito. Com a notícia, Macabéa resolve tomar as rédeas da própria vida. “Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida”. Então, é atropelada por um Mercedes amarelo e morre na sarjeta.
Christine “Lady Bird” McPherson
Como ela mesma diz, “Lady Bird” é seu nome de batismo porque ela mesma se batizou assim. Mora com os pais, o irmão e a cunhada no subúrbio da cidade de Sacramento, na Califórnia, da qual sonha em sair o mais rápido possível. O filme se passa no início da década de 2000, acompanhando Lady Bird durante seu último ano do ensino médio.
O principal objetivo de Lady Bird é sair de Sacramento e conseguir vaga em algum dos cursos de teatro de uma universidade na Costa Leste dos Estados Unidos. Ao redor dela, ninguém parece acreditar na sua capacidade, sempre desencorajando e pedindo para que ela se contente com um pouco menos do que ela quer.
Em resposta a isso, uma crescente rebeldia aparece, o que piora sua relação – já um tanto difícil – com a mãe. Em meio aos conflitos, Lady Bird tem envolvimentos amorosos fracassados, diversas discussões com a família e uma série de planos para aumentar suas notas e ser aprovada na universidade. No entanto, ao conseguir a vaga e ir estudar em Nova Iorque, Lady Bird percebe o quão sozinha está no mundo e, ainda assustada, sente saudades de tudo que deixou para trás.
A hora da estrela e a hora de voar
A primeira chave para enxergar os paralelos possíveis entre as obras é observar a relação das duas protagonistas com seus respectivos nomes. Macabéa recebe esse nome depois de um ano de nascida, como parte de uma promessa de sua mãe à Nossa Senhora da Boa Morte. Nunca teve vontade de perguntar o que o nome significava. Lady Bird, por sua vez, cria seu nome e nega o que lhe fora dado pela família. Em Macabéa, o nome era um indicativo de subserviência e, em Lady Bird, de rebeldia.
Tanto Lady Bird quanto Macabéa são acompanhadas por sequelas ou dores. Na primeira, a cena inicial, na qual se joga do carro em movimento, lhe rende um braço quebrado. Na personagem de Lispector, por sua vez, é dito que a história toda é acompanhada por uma levíssima dor de dente. A convivência das personagens com isso talvez seja mais para o leitor/espectador sentir a urgência de transformação que percorre ambas as narrativas.
A religião também é uma relação possível entre as duas obras. Por estudar em um colégio católico, é recorrente ver o modo debochado como Lady Bird encara dogmas da religião, embora ela vá à igreja quando se vê sozinha no mundo. Já Macabéa vê a religião com descrença, mas tem medo e reza para se sentir menos culpada quando se sente atraída sexualmente por alguém. A questão sexual é, inclusive, outro elemento em comum, já que ambas iniciam as obras virgens, ainda que lidem de formas opostas com seus desejos.
Apesar de tudo, o que mais chama atenção é, na verdade, o final. O final que, para nenhuma das duas, era o final esperado. As narrativas são interrompidas em momentos de epifania, de explosão interna, de felicidade. Ambos os desfechos se passam em não-lugares, e embora as personagens permaneçam em momentos de extrema solidão, estão cercadas por pessoas.
Solidão essa que permite, nos dois casos, ver mudanças bruscas na forma como as personagens se veem no mundo. Em A Hora da Estrela, é olhando um capim de sarjeta que Macabéa admira a natureza à sua volta; em Lady Bird, é contando para a mãe que se emocionou ao dirigir em Sacramento, a cidade que tanto dizia odiar, pela primeira vez.
As rupturas presentes nas histórias de A Hora da Estrela e Lady Bird – A Hora de Voar já são irônicas em seus títulos. A ‘hora’ tão esperada é o momento de maior confusão na trama, e não a solução para todos os problemas. A hora da estrela e a hora de voar são mais duras e menos fluidas do que se pensa. A beleza da confusão e do amadurecimento é o fato de nunca se terminar com fins, só com outros começos.