É senso comum que a cultura pop (e geek) é guiada pela cultura americana. Seus heróis e vilões refletem as ideologias que se quer propagar ou combater. Antes mesmo dos EUA entrarem na segunda guerra, o Capitão América já socava a cara do Hitler nos quadrinhos. E quando a guerra foi vencida, Hollywood se certificou de que o mundo creditasse a vitória aos EUA, e não à União Soviética, que teve papel muito mais fundamental na derrota do nazismo alemão.
Isso porque, assim que as metralhadoras esfriaram, começou a Guerra Fria entre a turma das estrelas e listras e a galera da foice e do martelo. Esse período durou até o final dos anos 80, e gerações inteiras cresceram vendo o Rambo e o Braddock matando vietcongs heroicamente, vilões icônicos como Ivan Drago, ou mesmo Stalin e Fidel Castro, retratados como grandes inimigos dos EUA/humanidade.
O medo passou
Quase 30 anos depois da queda do muro de Berlim, Deadpool abraça o russo Colossus, em uma parte da Mansão Xavier que tem um quadro de Karl Marx na parede. Mais tarde, Colossus derrota um vilão que o chama de “comunista filho da puta” e responde: “É assim que fazemos na mãe Russia”.
Embora ainda seja um assunto polêmico, parece que o comunismo não assusta mais ninguém. Os millenials não cresceram com medo de ogivas nucleares e tudo que sabem sobre o relógio do juízo final é que ele aparece naquele filme do Snyder e virou um novo quadrinho da DC. Por isso, parecem haver cada vez mais obras se debruçando sobre o assunto novamente. Mas, diferente do que estávamos acostumados a ver na sessão da tarde, agora nem sempre a foice e o martelo estão na mão dos vilões.
Vermelhou o curral?
Não fiquei muito surpreso por encontrar Karl Marx no jogo Assassins Creed Syndicate, que acontece em Londres durante a Revolução Industrial e traz diversos personagens históricos. O jogador se alia a Marx e o auxilia em algumas missões, como reunir provas de que trabalhadores estão sofrendo abusos nas fábricas e protegê-lo da repressão policial.
Nos cinemas, vimos chegar no ano passado o filme “O Jovem Karl Marx“. Notícias comentam o interesse de Leonardo DiCaprio em interpretar Lenin em filme, e que Gal Gadot (Mulher-Maravilha) vai produzir e pode protagonizar um filme chamado “My Dearest Fidel”, sobre uma jornalista americana que teve um caso com o dirigente cubano durante a Crise dos Mísseis. Parece que os camaradas nunca foram tão sexy.
E por falar em sexy, a HQ Red One (que, por algum motivo incompreensível, foi publicada no Brasil como “Red Skin“) tem como protagonista uma militar soviética bem diferente daquelas louras frias, de cabelo curtinho e masculinizadas que costumavam representar a mulher soviética na cultura pop antigamente. Ela recebe do Kremlin, nos anos 70, a missão de se infiltrar nos Estados Unidos para espalhar propaganda comunista na terra do Tio Sam. Lá, ela assume o alter ego de uma heroína que empunha a foice e o martelo e combate líderes religiosos extremistas, racistas e políticos fascistas. PLEASE COME TO BRAZIL.
Na mesma época em que Red One estava saindo, Garth Ennis publicava a excelente Campos de Batalha, uma HQ que traz histórias de guerra, sendo uma delas sobre um batalhão feminino soviético que pilota aviões sucateados contra os alemães na invasão à Rússia durante a segunda guerra.
The Americans, série que foi lançada em 2013 e que ainda está sendo exibida com grande sucesso na TV americana, tem como protagonistas dois espiões da KBG, infiltrados nos Estados Unidos durante a guerra fria como um casal americano comum.
Mark Millar declarou no Twitter que a Warner está interessada em adaptar para o cinema a graphic novel Superman: Entre a Foice e o Martelo (Red Son, no original), que ele começou a conceber no início dos anos 90 e que foi publicada em 2003.
A HQ mostra o que aconteceria se a nave com o bebê kryptoniano não tivesse caído no interior do Kansas, mas na União Soviética durante a guerra fria. Na história genial, o Superman é um herói proletário que ajuda o regime do camarada Stalin a prosperar, e espalha os ideais comunistas no mundo inteiro, erradicando guerras, desigualdades e crimes, exceto nos Estados Unidos, que se recusam a aceitar e contam com a ajuda do cientista e capitalista Lex Luthor na luta contra a maior arma do exército vermelho.
O Superman desse universo apareceu recentemente na nova série Renascimento da DC, se aliando ao Superman do nosso universo para combater um inimigo comum.
Uma vez vilão, sempre vilão
Mas como velhos hábitos são difíceis de perder, é claro que a maneira antiga de retratar os comunas persiste: recentemente joguei o divertidíssimo Trials of The Blood Dragon (que acontece no universo de Far Cry 3 Blood Dragon), que traz de volta, de forma bem humorada, o clima dos filme de ação da sessão da tarde e coloca você enfrentando os malditos comunas do Vietnã até a Lua, com direito a águia careca, bandeira americana e muuuitas frases de efeito.
O mesmo clima de paranoia e espionagem dos filmes sobre guerra fria dos anos 80 estão presentes na terceira temporada de Stranger Things, numa trama que retrata os camaradas da maneira estereotipada da época: durões, caladões e maus até os ossos. E eu amei cada segundo.
Mas o fato é que os comunistas e seus nomes mais proeminentes estão estrelando quadrinhos, filmes e até batalhas de rap, de forma que alguns chegam até a enxergar doutrinação ideológica marxista infiltrada, enquanto outros simplesmente veem como o capitalismo explorando um tema pra fazer dinheiro. Pra mim, enquanto for divertido, tá massa.