USB.live lançará nova atualização em dois dias!” – Era o que diziam todas as notificações de todas as redes sociais de todas as pessoas conectadas ao sistema plug-in-hand, naquele insonso mês de setembro.

Não era a primeira vez que a poderosa (e onerosa) USB.live prometia uma atualização “inovadora” e imprescindível aos seus ávidos clientes, para que estes pudessem desfrutar de toda capacidade que o suporte poderia oferecer. Agora, com as melhorias do sistema, seria possível tocar qualquer instrumento sem o delay que normalmente acompanhava uma flauta doce (ou um piano, por exemplo) deixando-os com dois segundos de atraso de som ao serem tocados.

Esse problema acabava sendo uma dor de cabeça para as pessoas que tocavam instrumentos simulados, pois não havia nada pior do que tocar uma flauta (ou um piano) e o som sair desconfortavelmente fora de sincronia: “Como aprender a tocar instrumentos assim?!” – Reclamavam os clientes da USB.live em sua página intitulada “deixe aqui a sua
infelicidade com a gente” – Ao que os assessores da empresa sempre respondiam com finesse e educação:

“Estamos trabalhando arduamente e o mais rápido possível para solucionar este problema e acabamos verificando que estes atrasos só ocorrem com alguns instrumentos (piano e flauta). Ficamos felizes em informa-lo(a) que em breve lançaremos uma atualização com as correções necessárias. Enquanto isso, já tentou tocar oboé? Possui um som maravilhoso e as técnicas, tutoriais e notas custam apenas 50mb de sua memória. Obrigado, tenha um bom dia! P.S: Persistindo os sintomas de atraso após as atualizações, um médico deverá ser consultado.”

E assim, arrumando uma falha no sistema e uma solução, uma falha no sistema e uma solução, a USB.live sendo uma empresa de caráter, valores, fibra e ética ficava cada vez mais podre de rica.

E não importava o quanto as pessoas iriam reclamar.

Não importava o quanto elas alegariam que estavam comprando “mais do mesmo” e torrando a memória e os neurônios com porcaria inútil. Quando saísse a nova “atualização” que no julgamento da USB.live seria indispensável, muitos conectariam seus d-hands (drivehands) no pulso e se sentiriam completos tocando instrumentos simulados, aprendendo a falar outras línguas sem um mínimo de prática e tirando fotos com os olhos, a cada piscada.

Sem contar as músicas.

Os filmes.

E os livros (que quase ninguém usava no d-hand pois era muito chato ler de olhos fechados) que as pessoas enfiariam em suas mentes, através das pequenas entradas Universal Serial Bus que haviam em seus pulsos.

Todo mundo, era certeza, faria isso. Mais cedo ou mais tarde. Uma hora ou outra.

Menos o Guilherme.

O Guilherme achava aquilo tudo um saco.

Mesmo tendo uma entrada USB.live no pulso.

Fizera quase “obrigado” quando completou 15 anos. Era necessário pois, segundo o seu pai, era a única maneira dele ter certeza que o filho aprenderia alguma coisa na escola, recebendo e segurando o ensino dos arquivos de matéria e conteúdo escolar (que há muito não eram revistos pelos professores, diga-se de passagem) que eram empurrados na
cabeça dos alunos pelos pulsos.
Enquanto grande parte das pessoas de sua idade gostava de compartilhar músicas, arquivos, vídeos e outras experiências sensoriais de cunho questionável e duvidoso pelo dhand, Guilherme gostava mesmo era de desenhar.

E isso, modéstia à parte, ele fazia muito bem.

Principalmente, quando desenhava Lia.

Com o passar dos anos desde o lançamento do d-hand pela grandiosa USB.live muito se questionou qual seria a idade ideal para se ter um; “Ora, se o meu filho pensa, não vejo porque ele não ter um.” – Alegavam alguns pais na enfermaria de recém-nascidos, enquanto o médico especializado da USB.live furava o pulso esquerdo da criança sem dó nem piedade para a fazer a ligação com a porta de entrada ao sistema nervoso. “É melhor, pelo menos aprende a ler e escrever mais cedo. Qual é a necessidade de creche hoje em dia?” – Questionavam outros.
Nesse sentido, talvez Guilherme fora um felizardo por ter feito a sua “entrada” USB um pouco tarde. Ainda que fosse dislexo.

É verdade que sua infância foi solitária, por sempre ser taxado de “idiota” pelas outras crianças com entrada d-hand, que se julgavam mais espertas e inteligentes. Mas o que o seu avô lhe ensinara, ninguém podia ensiná-lo. Nem um tutorial ou modelo aplicável feito pela USB.live poderia.
Ele aprendera a desenhar, e agora desenhava Lia.

Sem nenhuma entrada no pulso, nenhuma conexão. Era só ele, o lápis e Lia. E toda vez que desenhava Lia, sorria.

-Pô, Guilherme! Que aplicável que tu usou pra fazer esses desenhos?! Foi o desenheEMmente? – Era o que perguntavam os colegas de faculdade, quando passavam por Guilherme desenhando sozinho na árvore central.

-Éééé… Não. Não usei nenhum não. Aprendi pequeno.

-Caramba! Queria que os meus pais tivessem usado um aplicável desses em mim quando pequeno.

-Mas eu nunca usei aplicável nenhum, cara!

– Ah, fala a verdade! Esse deve ter sido bem carinho esse, hein? Comprou de quem? De alguém de arquitetura? Design? Engenharia?

-Eu aprendi com o Vô. -Vô? Onde eu baixo esse aplicável?

E era nesse momento da conversa que Guilherme normalmente levantava e ia embora. “Meu filho, que graça tem nascer sabendo tudo?” – Dizia seu avô. “Como funciona a vida, como funciona o mundo?! Todo mundo que tem esse negócio já nasce metido… Mais deixa estar, morro e um treco desses eu não uso.”
“Acho que é por isso que me e me chamaram de idiota na escola” – Respondia Guilherme ao avô. – Ô meu netinho, não fique triste. Aprender por si só às vezes é mais gostoso. Se você não aprende, não erra. E se não erra, vai sempre acertar. O importante é não desistir e vencer. O importante é perseverar! Agora venha. Venha com o vovô, vamo desenhar.”
Para Guilherme, aquilo que o avô dizia não fazia muito sentido, mas sempre ouvia calado mesmo assim, em respeito ao homem que admirava.
E passavam tardes e tardes desenhando. O Avô, paciente, ensinando a Guilherme tudo o que aprendera sem nenhum desses trecos e Guilherme, atento, escutando e absorvendo.

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Uma das propostas mais geniais do d-hand, era a de que você poderia aprender qualquer coisa automaticamente sem precisar treinar, praticar ou mesmo se esforçar.
Por exemplo, se você gostasse muito de uma cantora, você poderia baixar um “aplicável” que o faria cantar as mesmas músicas com a mesma voz mixada da mesma artista.
Bastava baixa-lo em qualquer computador, verificar se havia espaço na memória cerebral para instalá-lo e conectá-lo ao pulso. É claro que isso gerou muitos processos, boicotes e controvérsias, uma vez que os agentes e produtores destas mesmas cantoras acusavam de plágio qualquer um que saísse na rua cantarolando com a voz tratada no Auto-Yune de suas clientes. Então, a USB.live que “solucionava problemas humanos para humanos” logo arrumou uma solução para mais um problema seu. Elevou a preços altíssimos o custo dos aplicáveis singLIKEyoursinger, além de torna-los muito mais “pesados”, de modo que, quem o comprasse, não só gastaria uma quantia imoral de dinheiro mas também ganharia a incrível habilidade de cantar apenas músicas pop, dando um belo tchauzinho para as outras habilidades cognitivas.


Todo Amor do Mundo Cabe em 8gb é um conto de ficção científica disfarçado de romance, ambientado em Manaus futurista (pero no mucho). Cada capítulo será publicado semanalmente aqui, no Mapingua Nerd.