Atenção: Esta é a 24a. parte do Revoadas do Uirapuru. Para ver todos os outros capítulos de Revoadas do Uirapuru, clique aqui.
Revoadas do Uirapuru – Contos na Paris dos Trópicos
Parte 24: Os Dois Segundos Preferidos de Heitor
Manaus, 16 de julho de 1992
Heitor estava na Ponta Negra sentado na areia, olhando o pôr do sol. Tentando entender o que fazer de sua vida. Beirava seus vinte e cinco anos e tinha um emprego comum em uma loja de sapatos. Ele sempre achava estar vivendo no momento errado.
Jamais se encaixou em nenhum curso que fez ou se quer em um emprego que tenha trabalhado. É como se estivesse sempre esperando que algo grandioso acontecesse. Pelo menos era assim que ele preferia acreditar para justificar todos os fracassos de sua vida.
Vivia sempre a sensação de estar vivendo na época errada. Não se adaptava a vida comum de estudar, trabalhar, casar, ter filhos, envelhecer, se aposentar e esperar a morte chegar. Ele sentia que aquilo não era para ele… Como se não fizesse parte do comum, do ordinário.
Seus pais o chamavam de vagabundo o tempo todo e o pressionavam a trabalhar logo que completou dezoito anos. Não demorou muito para pressioná-lo a tomar um rumo na sua vida quando trancou seu terceiro curso na universidade. Antes dos vinte já estava morando sozinho em uma quitinete no Bairro do São Jorge.
E todos os dias que podia ele ia para a Ponta Negra observar o pôr do Sol como o fazia naquele exato momento. A praia estava praticamente deserta. Poucas pessoas estavam por ali naquela quinta-feira. Exceto por uma moça que aparentava ter sua idade. Estava a menos de vinte metros dele e parecia igualmente perdida.
Ele nunca foi de dar em cima de nenhuma garota ou até mesmo conversar com desconhecidos(as). Mas ela era tão bonita: Branca, caucasiana, magra, de cabelos loiros longos e ondulados. Tinha traços delicados no rosto. Ela usava um vestido florido de verão e parecia não se importar em sujá-lo. Tinha expressões fortes nos olhos. Era fácil deduzir que tinha personalidade forte e não se importava com a opinião dos outros em caminhar sozinha e toda suja de areia. Embora fosse fácil perceber que nada disso tirava sua beleza.
E isso o intrigava. E o impelia a falar com ela. Não sabia dizer se estava movido pela sensação de que algo lhe dizia que era seu destino falar com ela ou se era apenas a voz do desespero em fazer algo diferente em sua vida. Se arriscar por alguma coisa pelo menos essa vez.
Ele se aproximou.
– Hoje está um pôr do sol belíssimo! – Ele tentou iniciar uma conversa.
– E não são todos? – Ela respondeu sem muito ânimo.
– Não. Nenhum é mais bonito como o de hoje.
– E por que você acha isso?
– Porque você está aqui. – Heitor se tremia por dentro. E ao mesmo tempo estava seguro. No máximo que poderia acontecer era ele levar um fora e seguir sua vida normalmente. Estava mais acostumado a rejeição do que imaginava.
Ela sorriu involuntariamente por dois segundos antes de fechar-se novamente. Durante toda sua vida, independente da realidade que tivesse, até seu último dia, seu último sopro de vida, aqueles foram os dois segundos preferidos de Heitor.
– Eu me chamo, Laís – Ela tocou a areia ao seu lado sinalizando para que sentasse. E assim eles conversaram por horas. E pareceu aos dois que conversaram por séculos. O tempo ali parecia ser irrelevante e corria de forma especial pros dois. Eles conversaram sobre tudo e descobriram ser mais parecidos do que imaginavam. E aos poucos ela se abria mais a ele. Se sentia mais leve cada vez mais. Não demorou muito para contar coisas que não contava a ninguém.
Despediram-se um pouco antes da meia noite. Ambos precisavam voltar às suas vidas. Embora precisassem de uma pequena desculpa para permanecerem ali até o dia amanhecer. Mas combinaram de se ver no dia seguinte. Ele a ajudaria a fazer algumas compras. E quando se despediram eles se entreolharam e sabiam que nunca mais ficariam mais de algumas horas separados até o fim de suas vidas.
Manaus, 17 de julho de 1992 – 1ª. Realidade
Encontraram-se na frente do Supermercado Hiper C.O. no horário combinado. Compraram o que ela tinha que comprar e seguiram para a casa dela. Ele nunca havia ficado tão feliz na vida em fazer comprar. Ele não parava de falar. Acreditava que qualquer minuto com ela seria o último. Imaginava que em algum momento ele diria alguma besteira que a faria desistir dele e sumir de sua vida. E assim ele fazia o que podia para se dedicar ao máximo e ela de espantou com tanta dedicação. Algo que nunca viu antes de forma tão real e autêntica. E assim se entregou também.
Manaus, 28 de junho de 1993 – 1ª. Realidade
Heitor corria em direção ao Hospital Santa Júlia. Sua filha, Milena, tinha acabado de nascer. Ele nunca esteve tão emocionado em toda sua vida. Chorava rindo ao ver sua filha mexer as mãozinhas e sorrindo. Ele passou horas ali sentado com ela nos braços observando cada movimento seu.
Manaus, 03 de agosto de 1996 – 1ª. Realidade
Heitor estava cuidando do corpo inconsciente de Laís enquanto ela vagava. Ela tinha despertado seus poderes Wander há poucos meses e desde então suas vidas mudaram drasticamente. Ele havia parado de trabalhar para cuidar dela. Levou algum tempo para entender tudo que estava acontecendo com ela e toda aquela história de Wanders e viagens no tempo usando a mente. Mas tudo ficou crível quando ela começou a acertar os números da Mega-Sena. Isso trouxe conforto a ponto dele não precisar mais trabalhar e apenas cuidar da pequena Milena e Laís.
Manaus, 29 de janeiro de 1997 – 1ª. Realidade
Havia dois dias que Laís estava inconsciente. Esse foi o maior tempo que ela ficava vagando ininterruptamente. E isso preocupava demais Heitor. Ela não pertencia mais a sociedade Wander. Já tinha algumas semanas que ela tinha sido expulsa e ela nunca contou a ele o motivo. Helena que por todos esses anos era a melhor amiga de sua esposa, agora era inimiga jurada.
Ele não entendia o que estava acontecendo, mas Laís sempre dizia que quanto menos ele soubesse era melhor. De qualquer forma, ele não poderia fazer nada para ajudar.
Era próximo ao meio dia quando alguém tocou a campainha. Ele foi ver quem era. Ao olhar pelo olho mágico, viu que um olho o olhava também. Ele ficou paralisado imediatamente. Em seguida sentir que alguém estava controlando seu corpo. Ele foi forçado a abrir a porta. Sua vizinha de duas casas rua abaixo entrou fazendo-o fechar a porta em seguida.
Ela o fez sentar no sofá da sala e puxou uma cadeira sentando de frente para ele. Heitor sabia que aquela não era sua vizinha. Um Wander a estava controlando.
– O que você quer? Eu sei que não é a minha vizinha Lucia. Sei que um Wander está aí dentro. – Heitor conseguiu dizer com extrema dificuldade.
– Pelo visto você é mais esperto do que imaginei. Permita que me apresente. Me chamo Helena e eu tenho certeza que você já ouviu falar de mim.
Heitor estava extremamente surpreso. Jamais imaginaria que Helena os encontrassem. Nada estava no nome deles. Haviam utilizado nomes falsos em tudo que precisasse registrá-los desde quanto Laís deixou a Sociedade Wander. Apenas Milena não havia mudado de nome, embora só na escola dela soubessem onde ela morava. E foi aí que ele percebeu como Helena os encontrou.
– Você não faz idéia do que a sua maldita esposinha foi capaz. Eu poderia explicar, mas isso seria irrelevante uma vez que eu tenho outros planos para você.
O espanto em Heitor se tornara desespero enquanto ele tentava se mover olhando para o quarto.
– Sim. Eu sei que ela está lá. Eu poderia ir agora até o quarto de vocês e matá-la. Seria a coisa mais fácil do mundo. Mas ela não merece algo tão simples. Ela não merece morrer em paz. Ela merece sofrer pelo resto da vida dela. E eu sei como fazer isso. Eu só preciso “dar um jeito” em você. E eu já sei muito bem o que fazer. O que acha de passar o resto dos seus dias preso na mente de um louco do Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro? Jamais imaginei o que seria estar preso na mente de um louco sem ter poderes Wanders para sair de lá. Mas não se preocupe! Eu vou prendê-lo tão fundo na memória desse louco que ela jamais conseguirá tirá-lo mesmo se um dia o encontrasse. Mas chega de conversa, não é. Vamos lá?
Manaus, 31 de janeiro de 1997 – 1ª. Realidade
Laís finalmente conseguiu fugir da prisão mental de Helena. O primeiro som que ouviu foi o choro de sua filha. Um choro fraco de alguém já sem forças. Ela também estava fraca, seu corpo estava extremamente debilitado quando ela acordou e se movimentou lentamente e com extrema dificuldade em direção da sala de estar.
Ao chegar à sala, ela caiu de joelhos. Sua filha estava chorando abraçada com o corpo inerte de Heitor, ela parecia estar ali há mais de um dia. Milena sem muitas forças foi até sua mãe e a abraçou com as poucas forças que ainda tinha.
– Mamãe, porque o papai não se mexe? – Milena não parava de chorar.
Ela olhou Milena melhor, estava debilitada. Milena não havia feito nada nesses dias senão tentar acordar os dois. E Laís não conseguia imaginar o sofrimento de uma criança em passar todo esse tempo sozinha, desesperada e desamparada. E assim Laís chorou também. Tudo isso era demais para as duas.
Milena se aproximou do corpo do marido. Tocou a fronte dele. Percebeu que a mente dele havia sido arrancada de lá. E como ele não era um Wander, seu corpo morreu instantaneamente.
Ainda tremendo de raiva, ódio, frustração e muita dor, Laís tocou as têmporas do rosto de Milena e apagou a memória de Heitor da mente de sua filha. E conforme ela apagava, Milena ficava mais calma e logo dormiu.
Laís começou a ser consumida em ódio. Ela queria explodir em fúria. Queria destruir todos os Wanders que já existiram. Ela queria acabar com todos eles. E principalmente Helena. Mas ela sabia que não podia ser impulsiva. Ela não podia se dar esse luxo. Ela precisava de um plano.
Manaus, 06 de fevereiro de 1997 – 1ª. Realidade
Alguns dias se passaram. Laís e Milena recuperaram suas forças. Haviam mudado de casa e Laís criou proteções contra Wanders. Nenhum deles jamais as localizariam nessa nova casa. E Laís tinha finalmente um plano: Ela voltaria para algum tempo no passado e conseguiria uma amostra do material genético de Heitor e o congelaria em uma clínica especializada até 2031. Ela sabia que Helena não a rastrearia até tão longe no futuro. Laís então vagaria até essa data e engravidaria a sua hospedeira. E assim nasceria outro filho de Heitor.
Ela não queria envolver Milena. Sua filha já havia passado por traumas suficientes. Ela amava demais Milena e faria de tudo para nunca envolvê-la nisso.
Laís iria instruir essa criança do futuro. A ajudaria a despertar seus poderes Wander e contaria tudo sobre Helena. Ela faria a criança se infiltrar na Sociedade Wander e quando chegasse na fase adulta e se tornasse poderoso o suficiente, mataria Helena de uma vez por todas.
Laís nunca mais foi a mesma. Ela passou a vagar cada vez mais em busca de cada vez mais poder. Ela queria poder suficiente para derrotar o Primeiro. Ela sabia que os Wanders perderiam grande parte do poder se ela o derrotasse.
Mas essa busca por poder a fez ficar cada vez mais distante de Milena. Raramente a via, mas tinha ciência que esse era o preço a se pagar se ela queria se vingar da assassina de Heitor.
E sempre que podia, Laís vagava até o dia 16 de julho de 1992 e vivia mais uma vez o momento em que ela e Heitor se conheceram.