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Revoadas do Uirapuru – Contos na Paris dos Trópicos
Parte 20: Memórias de dias que nunca aconteceram
Manaus, 25 de novembro de 2015
Helena estava sentada confortavelmente na sua sala. Havia terminado o ultimo gole de pinot noir chileno e estava prestes a se levantar, teria uma reunião em poucos minutos na sede dos Wanders. Mas antes que pudesse descansar a taça, um barulho de bicada de pássaro no vidro da janela atrapalhou sua concentração.
Ela se levantou e foi em direção à janela da varanda. O Uirapuru agora estava em cima da mesa e olhava para ela.
– Se você está aqui então existe algo muito importante que preciso saber, não é? – Helena sentou apreensiva, olhando nos olhos do pássaro cada vez mais perto.
– Eu tenho uma mensagem para você. – Foi a frase que Helena ouviu em sua mente. Ela então se aproximou cada vez mais, fitando sem cessar os olhos do Uirapuru.
Helena estava em uma sala totalmente branca, sentada em uma cadeira extremamente confortável. Ela conhecia bem o lugar, já esteve ali antes. Estava no centro de memórias esquecidas. Era um pequeno espaço atemporal para onde iam todas as memórias dos Wanders que deixaram de existir em virtude de suas viagens.
Ao se virar, viu que uma moça com seus vinte e três anos, cabelos ondulados castanhos compridos até o ombro, vestindo uma calça jeans e uma blusa branca de alças finas estava sentada voltada para ela.
– Olá, Helena! Como é bom te rever!
– Até onde eu sei, memórias não interagem. – Helena estava intrigada.
– Sim. Mas eu não sou uma memória de uma pessoa simples. Eu sou a memória de alguém que salvou o mundo.
Helena sentou. Eram raros os momentos em que ela desconhecesse algo que tivesse acontecido. E a surpresa desse momento trouxe a ela uma nostalgia de épocas antigas. Uma época em que as coisas eram simples e Wanders não existiam. Seu coração então aqueceu e uma leve dormência percorreu todo seu corpo.
– Para começar, devo dizer que eu sou uma memória de alguém que quis gravar essa memória. Como quem deixasse uma mensagem. E essa mensagem é para você. Nesse exato dia, desse exato ano, nesse exato momento você me conheceria. Eu despertei meus poderes Wander. Na minha realidade, o Primeiro estava desaparecido. Apenas um Wander despertava por vez e a única coisa que impedia o mundo de acabar era o Primeiro que usava seu poder para sustentar o planeta de sua destruição. – E assim Milena continuava, o branco da sala era tomado por imagens mostrando os acontecimentos conforme eram relatados.
– Mas isso você não sabia, Helena. Você achava que a humanidade acabaria em pouco mais de quinze anos. E pra isso, foi atrás de uma solução. Uma resposta. Uma cura. Então você me levou para a estufa de Julia, a deixou inconsciente e me fez entrar em sua mente para pegar seu segredo. Eu fui a única que conseguiu. E com o segredo adquiri poderes que nunca antes um Wander conseguiu. Encontrei o Primeiro e tive acesso a todos os acontecimentos da história da humanidade. Mas ao chegar ao momento em que a batalha em que o Primeiro se sacrificava, descobri que o inimigo era minha própria mãe.
– Eu então fui para o momento em que minha mãe entrou em coma e entrei em sua mente e a matei. Sacrificando minha existência para que nada disso tivesse existido. Entenda, Helena. Eu não tive uma vida tão significante. Trabalhei minha vida toda. Não vi tantos filmes quanto gostaria. Não vi as séries que gostaria de ter visto. Ou comido as comidas que gostaria de ter provado ou conhecido os lugares que desejei tanto conhecer. Eu apenas sobrevivi por toda minha vida. Na infância e até boa parte da minha adolescência me apoiei no pior ser humano que já existiu pelo único fato de ser a única família que eu tinha.
– Eu consegui salvar aqueles que morreram para salvar o mundo. Consegui evitar que Julia morresse. Impedi que Psiônicos e Wanders entrassem em guerra. Salvei o Primeiro e assim o mundo inteiro.
– Veja, Helena. Eu nunca tive amigos de verdade. Apenas colegas circunstanciais que dividia momentos. E mesmo que tivesse, nenhum deles acreditaria. Por isso, um milésimo de segundo antes de impedir minha mãe, eu fiz essa memória para você. Porque eu quero que alguém saiba tudo que aconteceu. Eu não quero que minha existência tenha simplesmente apagado. Eu quero que alguém se lembre de mim. Eu quero que você se lembre de mim.
Helena chorava silenciosamente. Nunca foi de demonstrar qualquer forma de sentimento. Mas aquilo tudo era demais até para alguém como ela. A única pessoa escolhida por Julia. A única que conseguiu salvar o mundo teve sua existência completamente apagada. Como se nunca tivesse existido. Esquecida pelo mundo que ela salvou.
Helena levantou, caminhou em direção de Milena e a abraçou forte. Tão forte que absorveu para sua própria essência a lembrança de Milena.
– Não se preocupe, Milena. Eu jamais vou te esquecer.
Helena acordou e o Uirapuru já tinha ido embora. Ela foi para o carro. E seguiu em direção a reunião enquanto pensava numa maneira de salvar Milena. Mas não havia. Não existia uma opção em que o mundo e Milena seriam salvos. Ela e sua mãe estavam totalmente ligadas ao destino da humanidade. Foi um sacrifício legítimo.
Ela desviou o caminho. Não podia ir lá agora. Precisava ir até Julia. Mandou uma mensagem que iria se atrasar e foi em direção ao Tarumã.
Ao chegar na estufa de vidro de Julia, Helena correu em direção a ela e ambas se abraçaram.
– Eu imagino que deve existir um motivo para esse abraço repentino. – Julia comentou curiosa.
– Existe algo que quero compartilhar com você. – Helena respondeu chorando antes de largar os braços de Julia.
Helena a soltou. Pegou as mãos de Julia e colocou nas suas têmporas. E em questão de segundos Julia viu em sua mente tudo que havia acontecido. Estava em choque. Afastou-se alguns passos e sentou.
– Nós éramos inimigas?! O que será que aconteceu para que ficássemos uma contra a outra?! Por séculos Psiônicos e Wanders são aliados. Nada até hoje quebrou isso. Mas em uma outra realidade isso aconteceu. – Julia estava assustada. – Mas admiro alguém ter merecido minha escolha. Ela deve ter sido uma garota muito especial. E ao que parece a mãe dessa moça era alguém extremamente poderosa. E eu sei que você não veio aqui apenas para um abraço.
– Sim. Eu preciso que você proteja meu corpo. Eu preciso saber mais.
Julia conhecia Helena o suficiente para saber que ela já tinha um plano. Então não a deteve. Elevou o corpo de Helena a um metro do chão que agora deitava e o protegeu de qualquer forma de detecção ou interferência física e mental. E assim, tudo estava pronto.
Manaus, 17 de julho de 1992
Helena estava no estacionamento do supermercado Hiper C.O. e viu a mãe de Milena ir em direção a entrada. Não tinha tempo para reparar em que corpo estava, mas parecia ser de uma funcionária do supermercado que chegava para trabalhar.
Helena analisou a mãe de Milena de todas as formas possíveis. Usando todas as habilidades que tinha. E viu que aquela mulher naquela data era apenas uma pessoa normal. Deduziu que ela despertaria seus poderes posteriormente.
Sentiu-se tentada a descobrir quando aquela mulher despertou seus poderes. Sabia que era entre essa data e dois de outubro de dois mil e quatro. Poderia buscar no Santuário Wander a data específica e se ocorreu depois do nascimento da filha, ela poderia salvar Milena.
Mas Helena sabia que era muito arriscado mexer tanto assim com a realidade específica de uma Wander que dirá duas delas. Ela era a pessoa que melhor sabia disso. Mas poderia tentar. Só dessa vez. Uma última vez.
Seria algo simples. Descobrir o dia que aquela mulher despertou seus poderes e impedir esse evento. Assim ambas seriam salvas e Milena nunca perderia sua mãe.
Helena concluiu seu pensamento enquanto viu a mulher parar na entrada e cair morta alguns segundos depois. Ela sabia que não deveria impedir isso. Essa era a realidade atual. Isso precisava acontecer. Impedir isso impediria o mundo de ser salvo.
Ela precisava entrar na outra realidade, na que foi desfeita. Na realidade alternativa em que Milena estava viva e a sua mãe também até a batalha de dezesseis de fevereiro de mil novecentos e oitenta e oito. Mas para vagar por essa realidade alternativa ela precisaria da ajuda do Uirapuru.
Helena já estava decidida. Sabia exatamente o que tinha que fazer e já estava pronta para voltar quando se sentiu presa. Não conseguia mais controlar a funcionária do supermercado. Também não conseguia voltar. Estava presa dentro do corpo da funcionária.
Começou a ouvir passos. Uma presença masculina a julgar pelo andar e altura parou atrás dela. Usava o mesmo poder dos Wanders para fazer as demais pessoais desviar os olhos deles. Ele se aproximou mais e disse:
– Eu realmente não esperava que minha filha fosse capaz de matar minha futura esposa. Isso mudou sensivelmente todos os meus planos. Mas felizmente recebi Helena, a primeira dos sete grandes Wanders como prêmio de consolação.
Manaus, 25 de novembro de 2015
Julia percebeu que Helena começava a se debater. Como quem lutasse para voltar. Algo estava definitivamente errado. Precisava chamar ajuda urgentemente. Pegou então seu celular e ligou. Uma voz masculina atendeu.
“Liam, Helena está em perigo!”