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Revoadas do Uirapuru – Contos na Paris dos Trópicos
Manaus, 25 de novembro de 2015
Estávamos a caminho da sede dos Psiônicos para conhecer seu líder. Helena disse que ele poderia nos ajudar. Não era muito longe dali, meia hora de caminhada talvez, mas eu sabia que era o mesmo lugar que havia visto há pouco.
Caminhávamos em meio à mata em total silêncio. Quatro deles traziam Julia nos ombros. Haveria alguma espécie de cerimônia para seu funeral. O clima era uma mistura de luto e trégua. Todos abrindo mão de seus interesses pessoais em prol de algo maior. Ou seja, parecia natal pra mim. Mas sem o tio do pavê e a tia perguntando dos namoradinhos.
Nesse momento todos olharam pra mim. Claro! Todos estavam lendo os pensamentos dos outros ali. E pareciam me recriminar por pensar essas besteiras diante de algo tão grande.
Eu precisava descontrair. Falo besteiras quando estou nervosa. Quebrar a tensão, alívio cômico ou como prefira chamar. “Tough crowd” pensei. Ninguém riu. Nem um sorriso sequer.
Nota mental sobre Psiônicos No. 01: Eles não tem senso de humor.
Eu sabia que precisava ser menos idiota nesses momentos. Eu sei o quão doloroso é perder alguém tão especial quanto a Julia. Até mesmo para mim que a conheci por menos de dez minutos e que já a fez se tornar alguém extremamente especial. E sei que carrego parte dela comigo. Um vínculo que nunca tive com ninguém em toda a minha vida.
Mas eu nunca soube lidar com luto ou muito menos com situações de extremo nervosismo como por exemplo salvar o mundo. E pra mim não a via como alguém que morreu.
Ela estava comigo. Era parte de mim. Não era mais só eu dentro de mim. Éramos duas. Eu olhava para o seu corpo e via apenas uma casca. Um invólucro.
Sem falar que eu me sentia extremamente poderosa. Sentia que poderia fazer qualquer coisa. Era algo simples. Eu só precisava ir para o evento mencionado pelo Primeiro e impedir que seu inimigo antecipe o fim do mundo.
Eu já tinha o elemento surpresa. Era só chegar lá. Localizar a batalha e destruir o tal inimigo. Simples. E todos estariam salvos. Na verdade não entendia que ajuda esse “líder” poderia me dar que fosse algo tão necessário. Fazia isso apenas para obedecer Helena. Por puro respeito. Uma vez que sabia e sentia que havia me tornado mais poderosa que ela.
Chegamos na “sede”. Parecia uma casa simples. Dois andares. Telhas de barro, janelas de blindex com molduras brancas. No andar superior uma varanda com um Para Peito de ferro e blindex também.
Nota mental sobre Psiônicos No. 02: eles são tarados por vidro.
Essa era a visão que qualquer pessoa poderia ter da casa, mas eu via mais. Como uma imagem opaca em cima de outra imagem. Na realidade, por trás desse manto ilusório havia uma pirâmide Asteca. Como aquela que vi na mente de Julia.
Entramos e Julia foi logo levada para dentro. Os que sobraram me guiaram para a parte superior. Helena ficou na sala. Quando os degraus acabaram os Psiônicos abriram as duas portas que me separavam do único cômodo que havia naquele andar.
Ao abrirem a porta eu vi um senhor que aparentava ter seus oitenta anos com longa barba e cabelos brancos em posição de meditação no centro da sala. E ele seria apenas mais um velho meditando se não fosse o fato dele estar flutuando imóvel a meio metro do chão.
As paredes estavam repletas de pinturas astecas e no chão havia um grande tatame de palha trançada. O velho usava uma espécie de poncho de um tecido fino e delicado. Era vermelho vivo e nas pontas haviam inscrições em tinta preta.
Seus olhos permaneciam fechados e ele parecia não ter me notado. Mas a esse ponto eu já sabia que não entraria em contato com ele por nenhum método “tradicional”. Os demais ficaram e entrei sozinha.
Sentei de frente para ele. Não era tão sofisticada a ponto de saber meditar. E nunca fui adepta a esse tipo de frescura. Sentei da maneira mais confortável que podia e me concentrei.
Não precisava sequer fechar meus olhos ou usar as palavras de evocação em Tupi antigo para vagar. Eu não precisava estar totalmente inconsciente. Eu conseguiria entrar no plano dos Psiônicos e ainda sim ter noção do que estava ao meu redor.
E foi assim que entrei em contato com o velho. Como num piscar de olhos me vi dentro da Pirâmide Asteca. Não havia sequer saído do lugar, mas minha mente estava nessa segunda camada da realidade.
E ao olhar para o velho eu vi um ser com forma humana, mas sem pele, preenchido apenas por estrelas. Muito parecido com o Primeiro, mas parecia haver menos estrelas em seu corpo. Talvez a quantidade de estrelas mostrasse o tamanho do poder que cada um detinha.
– Sim. Você acertou perfeitamente. – Uma voz senil ecoava pelo lugar. – A quantidade de estrelas representa o tamanho de nosso poder. Alguns como eu e o Primeiro Wander possuímos universos inteiros dentro de nós. Enquanto outros apenas uma constelação. Mas sabe o que é mais bonito em tudo isso? Todos possuem estrelas. Todos possuem alguma espécie de poder. Embora nem todos usem com propósitos benévolos ou altruístas. E é por isso que existe essa distribuição: para manter o equilíbrio.
– Imagino que eu esteja aqui por isso: Preciso de informações, certo?! E é por isso que Helena me trouxe até você. Imagino que depois do Primeiro você seja o ser mais poderoso existente.
– Você fala em poder como se fosse algo absoluto. Mas não é. Entenda uma coisa: Em um confronto, por exemplo, não é a quantidade de poder que determina um vencedor. Entenda, mocinha. Não é a quantidade de poder que define quem vence, mas sim sua estratégia. O Primeiro Wander é o ser mais poderoso, mas ele tinha uma fraqueza que seus inimigos não tinham: o mundo. Todos nós precisávamos ser protegidos por ele. O Primeiro precisava medir cada ação e cada gesto. Qualquer ação que não fosse meticulosamente pensada poderia colocar a vida de alguém em risco.
– E é isso que você, mocinha, precisa saber: O poder pode cegar você. Mas você não pode jamais se dar o privilégio de agir livremente. Você carrega a responsabilidade de todas as vidas desse mundo e de todo o universo. Você detém tanto poder dentro de sí que um movimento errado e tudo que conhecemos deixará de existir se desfazendo em poeira cósmica.
Eu não tinha parado para pensar sobre isso até então. Eu realmente sentia que poderia destruir tudo ao meu redor. Assim como havia feito aquele homem implodir, poderia fazer isso com o universo em uma grande implosão.
Na verdade era bem simples: assim como eu vi os fios vitais das pessoas, eu agora via que todos eles estavam conectados ao universo. Embora antes, assim como os demais Wanders, eu só podia manipular os fios individualmente, agora com o poder que tenho poderia usar força demais e puxar toda sua extensão. Era como se ao arrebentar um fio tão fino como uma linha de agulha, eu pudesse cortar todos os fios que ligam o universo.
Era por isso que estava aqui. Esse senhor precisava me mostrar isso. Eu precisava ver o risco e a responsabilidade do poder que havia em mim. E nem mesmo Helena saberia como.
– Eu imagino que o senhor também não sabia da última batalha do Primeiro Wander e nem de seu paradeiro, certo?
– Precisamente, Milena! Eu não posso ver além da minha linha temporal. Não posso vagar pelas eras, não posso ver o que aconteceu no passado além do que é de conhecimento geral. Eu sou um Psiônico, não um Wander. E agora você entende que é até mais poderosa que eu.
É extremamente frustrante não haver ninguém que possa me dar qualquer detalhe sobre essa batalha. Eu teria que descobrir sozinha. Nem o Primeiro quis me contar. Será que ele fez isso para ver o meu potencial? Como um teste? Ou será que ele achou que não seria necessário? Lamentava ter tido tão pouco tempo com ele.
Eu sentia que poderia ir pra qualquer lugar em qualquer época já existente, mas não podia voltar para onde o Primeiro Wander estava. Era como a única porta fechada. Imagino que estar lá naquele momento com ele deve ter implicado em consequências que ele teve que lidar.
Sinto que qualquer coisa que faça é como se estivesse sempre pisando em ovos. Como se cada ação gerassem consequências. É impossível ser neutra. Impossível fazer algo bom sem que alguém tenha que pagar por isso.
De qualquer forma eu já havia aprendido com esse senhor psiônico sobre a responsabilidade do meu poder. Eu já estava finalmente pronta para salvar o mundo.
Manaus, 16 de Fevereiro de 1988
Eu estava na praça da saudade. Era aqui que aconteceria a última batalha do Primeiro Wander. A praça estava cheia. Era carnaval e todos estavam na rua. Isso só dificultava as coisas. O barulho era ensurdecedor e eu tinha dificuldades para me me locomover e mais ainda em me concentrar.
Quando consegui finalmente conseguir alguma espécie de concentração, decidir procurar pelos fios vitais. Assim poderia rastrear o Primeiro e consequentemente seu inimigo.
Não demorou muito para que visse um dos fios vibrarem com mais intensidade do que todos que já senti. Era um homem e ele estava correndo. E havia outro fio extremamente intenso que corria atrás dele, era uma mulher e ela era absurdamente familiar.
Aquela era minha mãe.