Atenção: Esta é 14a. parte do Revoadas do Uirapuru. Para ver todos os outros capítulos de Revoadas do Uirapuru, clique aqui.

Revoadas do Uirapuru – Contos na Paris dos Trópicos

Parte 14: Respostas

Manaus, 25 de novembro de 2015

Acordei ainda tonta com o som de música clássica. Estava em um sofá vermelho extremamente confortável, daquele de três lugares. Não entendo muito de tecido, mas ele era muito mais confortável que minha própria cama.

Olhei ao meu redor e estava em uma sala incrível. Parecia uma casa de boneca. Cada item em seu perfeito lugar combinando perfeitamente as cores e estilos. Entendia um pouco de Feng Shui e sabia que a ordem e posição dos móveis não era acidental, foi um trabalho minucioso, escolhido criteriosamente. Era tudo tão perfeito… Uma impressão tão “clean” que por alguns minutos acreditei estar em um filme ou seriado.

Acredito que só uma das cadeiras da sala de estar deve custar dez vezes mais que meu aluguel. Tudo era muito moderno. De qualquer forma não era uma casa como a que cresci. Sempre preferi lugares mais simples, lugares sofisticados me faziam me sentir como um peixe fora d’agua. E era exatamente assim que me sentia.

Tudo parecia um sonho até perceber que isso tudo era real, o incomodo por não pertencer aquele lugar me fez lembrar o que aconteceu antes de chegar ali. Aquele homem… todo aquele sangue… não conseguia sentir a menor pena ou remorso. Mesmo nunca tendo causado a morte de ninguém antes. Incrível como meu senso de justiça conseguia tornar minha ação plausível.

Logo em seguida lembrei-me daquela mulher que disse se chamar Helena e não lembro de mais nada depois disso. Devia ser a casa dela. De qualquer forma levantei rapidamente, peguei o abajur, que era a única coisa que poderia usar como arma, e fui pra trás do sofá ficando de costas para a parede.

Não havia ninguém na sala. Mas devia haver alguém nos demais cômodos. Hesitei. Olhei pela janela. Havia uma piscina enorme do lado de fora com cascata, um solarium com algumas plantas. E acima dele o céu totalmente estrelado. Lembrei nesse momento que nunca mais parei para olhar as estrelas.

– Sabe, daqui a vinte anos não será mais possível olhar estrela nenhuma no céu. Triste, não? – ouvi uma voz feminina vindo do corredor. Levantei o abajur em posição de defesa.

– Você não acha que se quisesse fazer algo com você teria feito enquanto estava desmaiada? – insistiu Helena. Abaixei a guarda. – Sente-se! – ela insistiu. Vindo em minha direção com uma garrafa de vinho e duas taças.

– Eu sei que você tem muitas perguntas e estou aqui para responder todas. Mas antes quero elogiar sua habilidade! Eu levei duas décadas para controlar a corrente sanguínea e os impulsos nervosos de outrem. Você está de parabéns! E sim! Não me olhe com essa cara… Você sabe do que estou falando… Você viu os fios vitais. E você soube como controlá-los como se fosse algo espontâneo… nato. – Ela estendeu uma taça de vinho para mim e depois sentou.

Peguei a taça e sentei. Pelo menos por hora iria fazer o jogo dela. Ela parecia ter respostas e eu muitas perguntas.

– Comece me dizendo quem é você! – comecei com a pergunta fundamental.

– Oh, minha querida… Essa é provavelmente a pergunta mais complexa de todas… Entre várias coisas, e acredite quando digo várias, sou também a responsável por guiar os iniciados. Você é uma Wander: uma pessoa capaz de vagar pelo tempo e espaço pelos olhos de outras pessoas. Mas até hoje suas viagens eram aleatórias.

– Você não tinha controle pra onde ia. E aposto que nesse exato momento você está começando a perceber que aqueles “sonhos” específicos na verdade aconteceram sim. Mas para conseguir controlar pra onde ir você precisa desse amuleto. – Helena estendeu um amuleto pequeno, muito parecido com um pingente. Era negro com círculos brancos e runas.

– Então quer dizer que com esse amuleto posso vagar por qualquer época que eu escolher?

– Sim. Na verdade o único impedimento é que você não pode voltar no corpo da mesma pessoa no mesmo dia e época que já habitou anteriormente. Mas fora isso, sua mente e esse amuleto podem te levar a qualquer lugar sem restrições basta você dizer essas quatro palavras em tupi antigo: gûyrá nhe’eng gûatá Îy

– Então posso ir pra qualquer época usando minha mente?

– Sim. Você pode.

– E só posso vagar usando minha mente?

– O que você quer dizer?

– Minha dúvida é: posso apenas viajar usando minha mente ou posso também vagar usando meu próprio corpo?

– Minha cara, isso seria teletransporte… Entenda… vagar pelas eras usando a mente é algo que conseguimos “ludibriando” algumas regras do plano astral. Já transmutar o corpo físico é algo simplesmente IMPOSSÍVEL.

– Entendo. Eu realmente gostaria de mais detalhes sobre esse processo de viajar pela mente. Mas acho que provavelmente eu não entenderia. Entendo um pouco de viagem astral mas acredito que seria algo diferente. não ajudaria em muito. Eu acho mais importante entender como consegui ver os tais fios vitais que você se referiu agora. Isso não tem nada a ver com viajar usando minha mente.

– Concordo! Na verdade você foi a primeira iniciada a conseguir tal façanha. O principio é simples: como vagamos no corpo de outras pessoas, acabamos “dividindo” algumas coisas do hospedeiro. Assim, é possível acessar algumas lembranças da pessoa. E essa “comunhão” permite acessar qualquer parte do corpo do hospedeiro. A maioria não consegue expandir essa compreensão a tal ponto. Raros conseguiram e mesmo assim levaram décadas.

– Primeira? Maioria? Então existem outros?

– Sim. Mas não como você pensa. Eu pertenço a Grande Ordem Wander. Quando o primeiro de nós despertou seus poderes, ele partiu em busca de outros como nós. E aos poucos foram surgindo mais e mais. Graças ao Uirapuru. Você já deve ter visto ele em sonhos. Enfim, e o primeiro juntou todos os Wanders e criou a Grande Ordem. Entretanto alguns se rebelaram almejando poder e riquezas pessoais. Mas entenda, criança… esse não é nosso propósito. Este mundo está doente e ele precisa de nós. Em cinquenta anos tudo que conhecemos será destruído. E nosso objetivo é encontrar uma maneira de impedir o fim deste mundo. Já tentamos diversas formas e até agora sem sucesso. Entende porque não podemos nos dar ao luxo de ter propósitos tão mesquinhos? E devido a essa divergência de pensamento, uma grande guerra se iniciou e felizmente vencemos. Mas os inimigos conseguiram impedir o surgimento exponencial de novos Wanders. Há muito tempo apenas um iniciado surge aos meus olhos por vez. Nossa Ordem sofreu baixas também. Hoje somos sete arautos e você. E infelizmente o primeiro de nós está a muito desaparecido.

– Então quer dizer que se existe apenas um por vez… Meu antecessor está… Morto? – após dizer isso, vi em Helena  um olhar profunda tristeza.

– Sim. Ele se sacrificou por mim. Liam Castro tinha um bom coração e era muito inteligente. Mas existiu um inimigo extremamente poderoso chamado Enis Castiel. Um antigo Wander que queria destruir a Grande Ordem e a mim e ele quase conseguiu.

– Então quer dizer que corro risco de morte?

– Dificilmente. Aqueles eram tempos de guerra. Pra você ter uma ideia eu não consegui dizer nem metade do que disse pra você a Liam. Só conversamos uma única vez. E tudo foi uma grande loucura.

– E quando essa guerra acabou?

– …Ontem.

– O quê? Ontem? Como assim? Esse é o primeiro dia de “paz”? O que garante que outra guerra não comece agora mesmo?

– Eu! Eu garanto isso. Enis era o último. Acredite em mim. Mas acho que essas respostas são suficientes por enquanto. Descanse. Em uma hora sairemos. Preciso levar você a um lugar. Agora que a guerra acabou, precisamos voltar ao nosso objetivo principal.

– Se o mundo vai acabar daqui a cinquenta anos e eu posso fazer algo a respeito, então eu farei. Uma hora? Vou ajustar meu despertador para as 21h. Preciso descansar mais um pouco.

– Entendo. Descanse. Você vai precisar. – Helena voltou para o corredor desligando as luzes.

Peguei o celular e pesquisei por Liam Castro no Facebook. Só havia um em Manaus. No seu perfil várias pessoas o marcaram e escreviam em seu mural como se ele tivesse morrido. Era ele. Abri as fotos e tinha uma em que ele estava no Jack’n’Blues. Olhei a data… 24 de maio de 2014. Vamos lá, sr. Liam Castro.

Manaus, 24 de maio de 2014

Estava um barulho quase ensurdecedor da banda que tocava absurdamente mal no Jack’n’Blues e eu estava sentada bem na frente. O vocalista que era um gordo nojento metido a gostoso usando uma jaqueta jeans numa Manaus de seus 36 graus célsius à essa hora da noite mostrando seu nível “avançado” de inteligência.  Até que ele agarrou a menina que estava ao meu lado pelo cabelo e a beijou contra sua vontade. Era hora de sair dali.

Estava no corpo de uma mulher que ao olhar para baixo percebi ser muito bonita. E de inesperado bom gosto para roupas. Seus cabelos eram loiros, pintados… óbvio. Lisos graças à tecnologia das escovas definitivas. Mas não podia perder tempo analisando minha hospedeira. Precisava encontrar Liam. Não parecia ter muito tempo pra isso.

Até que vi uma moça com traços orientais parecendo ser uma daquelas mulheres de gostos refinados e extremamente inteligente por trás daqueles enormes óculos e olhar crítico sorria em uma conversa extremamente animada e alheia a tudo que tivesse ali naquele bar. Percebi que Liam estava com ela. E parecia igualmente animado.

Ele parecia tão feliz. Como quem estivesse se divertindo, vivendo sua vida da melhor forma que podia. Vi ele sendo gentil com o garçom. Assim como foi gentil ao juntar um papel que havia caída da bolsa de uma mulher ao lado dele. Ele parecia ser mesmo uma pessoa de bem.

Não demorou muito e ele foi embora e ao passar por mim me olhou e parou por alguns instantes como se me reconhecesse de alguma forma. Como quem tivesse algo em comum. Como duas pessoas ligadas por uma dádiva.

Mas ao ver que ele é uma boa pessoa e sendo alguém assim tão feliz e sabendo de seu fim trágico. Vejo que essa dádiva é na verdade uma grande maldição.