“Contos de fadas distorcidos” é como chamo aqueles filmes estranhos que conseguem seguir o molde das fábulas somente para o darem um sopro de vida sinistro, peculiar. É o tipo de coisa que vimos Tim Burton executar em filmes como Edward Mãos-de-Tesoura (1991) e O Estranho Mundo de Jack (1993), recentemente Juan Antonio Bayona com o excelentíssimo Sete Minutos depois da Meia-Noite (2017) e, na minha opinião, com mais sucesso que os últimos, Guillermo del Toro, que determinou um novo nível na minha categoria imaginária ao dirigir O Labirinto do Fauno (2006).

É difícil não comparar o último trabalho deste diretor, A Forma da Água, com seu antecessor ‘espiritual’, e de modo algum o faço de forma negativa. Com roteiro de Vanessa Taylor, começo dizendo que A Forma é uma narrativa simples, que livre das várias camadas de significado oculto que podemos encontrar em O Labirinto (uma das forças do filme), permite ao expectador apreciar não o que a história mantém oculto, mas a maneira delicada como desenrola o romance improvável de Elisa (Sally Hawkins), uma moça muda, e uma criatura humanoide, um híbrido entre homem e anfíbio (Doug Jones).

Chamo-o de simples porque, de imediato, entendemos que é um daqueles filmes nos quais o verdadeiro monstro é o ser humano (o que qualquer trailer deixa bem explícito), mas que é sua capacidade de amar que pode vencer até o mais sinistro dos obstáculos. O interessante é como a relação entre a zeladora, Elisa, e a criatura, mantida prisioneira pelo ambicioso Coronel Strickland (Michael Shannon), toma proporções visuais em cada ambiente, em cada sequência de imagens, na intensidade com que Hawkins expressa sua determinação apaixonada por uma muito bem utilizada língua de sinais e na delicadeza selvagem que Jones concede ao Anfíbio.

O filme constantemente nos faz ter a impressão que se passa embaixo d’água, no interior de uma caverna lodosa ou nas margens de um riacho que espera paciente pela chuva, literalmente uma experiência imersiva. Sua complexidade está justamente em como consegue tornar o romance em um espetáculo estético além de nos fazer ignorar o quão absurdo possa parecer, uma vez que nos apresenta as estruturas sociais monstruosas frente à sombra da Guerra Fria como uma realidade mais absurda ainda. É um mundo que devora a todos: Elisa, o Anfíbio, Zelda Fuller (Octavia Spencer), por ser zeladora e negra, Giles (Richard Jenkins), que luta para expressar sua sexualidade, e o próprio Coronel, cujo comportamento opressivo resulta de uma sociedade que exige-lhe que o seja.

O que mais me chamou a atenção, no entanto, é como o filme consegue ser tanto a homenagem de del Toro ao filme O Monstro da Lagoa Negra (Jack Arnold, 1950), quanto uma espécie de compilação de elementos reutilizados da própria cinematografia de del Toro, todos refinados com maestria, desde a semelhança gritante entre a criatura de A Forma com o personagem Abe Sapien da franquia Hellboy, até sua ligação afetiva com a protagonista, muito semelhante a O Labirinto, mas, diferente deste, que por tratar de uma criança mantinha essa relação a um nível subentendido, explora-a com uma abordagem erótica mais direta, estranhamente sensível.

Listado entre os 10 melhores filmes de 2017 pelo American Film Institute, A Forma da Água já rendeu a del Toro dois Golden Globe, 12 indicações ao British Academy Film Awards e é um dos nomes de destaque no Oscar de 2018, tendo previsão de estreia no Brasil para 1 de fevereiro.

O trailer você confere a seguir: